De Wall Street para Silicon Valley, o poder económico continua de mãos dadas com o político
Nos anos 1990 eram os bancos, agora são as empresas tecnológicas. A seguir à crise financeira internacional, o centro do poder económico passou para Silicon Valley, mas evitar mais regulação mantém-se como prioridade.
“Hoje, o Congresso actualizou as regras que têm governado os serviços financeiros desde a Grande Depressão e substituiu-as por um sistema para o século XXI”. Foi assim que Lawrence Summers, o então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, descreveu a legislação, assinada por Bill Clinton como presidente dos Estados Unidos, que colocava um ponto final na proibição da fusão entre banca de retalho e banca de investimento em vigor desde 1933, abrindo a porta à criação de instituições financeiras de grandes dimensões.
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“Hoje, o Congresso actualizou as regras que têm governado os serviços financeiros desde a Grande Depressão e substituiu-as por um sistema para o século XXI”. Foi assim que Lawrence Summers, o então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, descreveu a legislação, assinada por Bill Clinton como presidente dos Estados Unidos, que colocava um ponto final na proibição da fusão entre banca de retalho e banca de investimento em vigor desde 1933, abrindo a porta à criação de instituições financeiras de grandes dimensões.
Estávamos em 1999 e, com a Grande Depressão já distante, os responsáveis políticos norte-americanos aceitaram nesse dia a ideia de que uma crise igual à de 1929 não iria acontecer e que, por isso, se podia dar aos bancos a liberdade que ainda lhes faltava para usar as inovações financeiras que lhes permitiriam expandir os seus negócios.
Agora, com muitos economistas a culparem essa decisão pela nova crise financeira que abalou o planeta em 2008, tornou-se muito claro aquilo que empurrou os políticos em Washington a seguirem o caminho da desregulação na banca foi, em larga medida, o esforço persistente e sistemático de persuasão feito pelo sector financeiro em Washington. Wall Street gastou muitos milhões de dólares para convencer Casa Branca e Congresso, conseguiu-o e o resultado foram muitos milhões de dólares de lucros em vários anos seguidos e a criação de condições para uma enorme crise.
Ainda sim, isso não impede que, com a crise financeira de 2008 também a começar a cair no esquecimento, os bancos estejam actualmente, mais uma vez, a tentar (e a conseguir) convencer os políticos a caminhar no sentido de uma menor intervenção do Estado. A grande diferença é que, desta vez, foram ultrapassados nesse esforço por outros actores, dispostos a gastar ainda mais na defesa dos seus interesses, e também focados em garantir que a regulação do Estado não lhes limita o crescimneto: as empresas tecnológicas de Silicon Valley.
De Este para Oeste
Pela dimensão do esforço que cada um dos sectores tem feito para influenciar os decisores políticos - seja através do lobbying, seja pelo financiamento de campanhas eleitorais - é possível perceber como a balança do poder económico tem vindo a inclinar-se progressivamente do sector financeiro para o sector tecnológico.
Nos final do século XX, quase tudo se concentrava em Wall Street. Com uma capacidade financeira quase ilimitada, os grandes bancos norte-americanos juntaram-se para atingir um grande objectivo: acabar com a legislação que, no auge da Grande Depressão, foi introduzida nos Estados Unidos para evitar que uma nova crise viesse a acontecer.
Ao longo dos anos, vários passos foram sendo dados. Logo nos anos 1980, uma das grandes vitórias que o sistema financeiro conseguiu foi convencer as autoridades reguladoras a não forçar o registo no balanço dos bancos dos produtos financeiros que eram inovadores na altura, como os swaps e outros derivados. Na prática, isso permitiu que esses produtos, muito complexos mas quase totalmente desregulados, fossem transaccionados em autênticos mercados sombra, não permitindo que se conhecesse a verdadeira exposição ao risco que as instituições financeiras estavam a assumir com esses negócios potencialmente muito lucrativos.
Isso, no entanto, não chegou. Ao longo dos anos 1990, o alvo dos bancos foi o acto Glass-Steagall, de 1933, que impedia que os bancos de retalho pudessem ser ao mesmo tempo bancos de investimento. Isso não só contribuiu para que os bancos não se tornassem “demasiado grandes para ser salvos”, como evitava que as instituições financeiras arriscassem as poupanças dos seus clientes em apostas arriscadas nos mercados financeiros.
Os bancos fizeram várias tentativas, em 1995, 1997 e 1999. E foi nesse último ano que, com Bill Clinton na presidência, a legislação acabou mesmo por ser reformulada.
Aquilo que se seguiu foi um período na história norte-americana (e também europeia) em que o processo de financeirização da economia acelerou ainda mais. A dimensão de mercados financeiros pouco transparentes e pouco controlados como o das titularizações dos créditos imobiliários atingiram uma dimensão que ultrapassava muitas das grandes indústrias tradicionais. E, assim, quando essa economia sombra rebentou, a economia real foi toda atrás.
Depois de 2008, quando o Lehman Brothers faliu e o sistema financeiro mundial colapsou, os grandes bancos perderam muita da sua influência junto do poder político. Com as economias em crise e o desemprego a disparar, apontar a culpa aos bancos tornou-se quase indispensável para qualquer político e muitas medidas de mais regulação foram anunciadas, tanto nos EUA como na Europa. Algumas delas, mas não todas, passaram do discurso à prática.
Ao mesmo tempo, no meio da crise, outros gigantes económicos consolidavam a sua posição. Google, Facebook, Amazon e Apple tinham passado a ocupar, em conjunto com a Microsoft, lugares cimeiros entre as maiores empresas do Mundo, tornando-se dominantes em mercados como o das buscas de internet, redes sociais, comércio online, software e hardware.
Destas e doutras empresas surgia, parecia, uma espécie totalmente nova de líderes económicos. Não eram os executivos engravatados, de meia idade e sérios de Wall Street, eram os descontraídos, modernos e jovens inovadores de Silicon Valley.
Além disso, o mundo precisava de histórias positivas e estes novos líderes empreendedores forneciam mesmo isso: os banqueiros cinzentos e gananciosos iam desaparecer e no seu lugar apareciam inovadores dedicados a dar às pessoas produtos e serviços que elas precisavam, descobriram agora, para ser felizes.
Com o tempo, inevitavelmente, essa imagem de “bons da fita” foi começando a descolar-se das empresas tecnológicas, à medida que estas se tornaram cada vez mais máquinas de fazer dinheiro. E ao nível dos negócios, com a entrada destas empresas em bolsa, as práticas assumidas tornaram-se em tudo semelhantes às de Wall Street. Na Rua K, onde estão instaladas as grandes firmas de lobbying de Washington, os clientes mais desejados deixaram rapidamente de ser os bancos para passarem a ser todas as empresas tecnológicas que davam sinais de ter sucesso (e muitos milhões para gastar).
Não foi só com os sucessos da banca nos anos 1980 e 1990 que as empresas tecnológicas aprenderam a importância de influenciar aquilo que é feito pelo poder político. Os erros cometidos pela Microsoft no final do século passado também serviram de lição. Depois de ter ganho muito rapidamente quota de mercado a empresas como a IBM, a firma de Bill Gates foi nessa altura relativamente pouco agressiva no lobbying que fez em Washington, não contrariando a imagem de monopolista que tinha começado a ganhar. Isso acabou por lhe sair caro, sendo forçada pelos reguladores a abrir espaço a novos concorrentes. Google e Facebook, que aproveitaram esse espaço para assumir elas próprias uma posição de liderança em vários mercados, dedicaram-se depois a fazer tudo o que fosse possível para não lhes acontecer o mesmo que aconteceu à Microsoft.
A Google, que gastou 80 mil dólares em 2003 em lobbying, gastou em 2016 mais de 15 milhões de dólares e apenas na primeira metade de 2017 mais 9,5 milhões. Em 2016, as cinco maiores tecnológicas – Google, Facebook, Microsoft, Apple e Amazon, gastaram 49 milhões de dólares em lobbying, o dobro de Wall Street.
E depois há ainda as portas giratórias que fazem com que alguém que antes tinha responsabilidades políticas ocupe agora um cargo de gestão nas empresas, ou percorra o caminho exactamente inverso. Da mesma forma como o Goldman Sachs começou a ser chamado de “Government Sachs” pela quantidade dos seus executivos que ocuparam cargos públicos antes ou depois de terem estado no banco, também as empresas tecnológicas não tiveram problemas em contratar no sector público. De acordo com os dados publicados pela organização Campaign for Accountability, nos EUA, a Google emprega actualmente 183 pessoas que anteriormente trabalharam para o Governo Federal, enquanto no sentido inverso, 58 ex-funcionários da empresa ocupam agora cargos no sector público.
O que quer Silicon Valley?
“Os bilionários e CEO de Silicon Valley são libertários, e parceiros dos irmãos Koch [um dos maiores financiadores do Partido Republicano nos EUA desde os anos 1980] na defesa de impostos baixos e de desregulação, quando falam com os republicanos. E são fumadores de marijuana e activistas dos direitos dos homossexuais quando estão com os democratas”, afirmou ao The Guardian o professor da Universidade de Illinois e especialista na area da política económica da comunicação, Robert McChesney.
É uma definição que mostra como, ao contrário do que acontece com os banqueiros de Wall Street, a forma como este novo poder económico interage com o poder político não é totalmente linear.
Isso é bastante evidente na relação de Silicon Valley com Donald Trump. Tem sido evidente a forma como os líderes das empresas tecnológicas entram em conflito com o presidente norte-americano e a sua visão do mundo, nomeadamente quando estão em causa questões como a imigração ou as preferências sexuais, por exemplo. E logo nas eleições, 97% das contribuições feitas pelas tecnológicas foram para Hillary Clinton.
Mas ao mesmo tempo, foi indisfarçável o entusiasmo desses mesmos líderes com a política económica mais significativa que a Casa Branca conseguiu passar à prática até agora: o corte de impostos. Não é de espantar, as empresas têm muito a ganhar com o corte de 35% para 21% no imposto sobre os lucros e com a possibilidade de fazerem regressar a baixo custo os mais de 450 mil milhões de dólares que acumularam nas suas sucursais fora dos EUA.
É fácil de perceber que, na hora de tentar influenciar o rumo da política em Washington, aquilo que acontece aos impostos tem mais importância do que questões como a imigração. De acordo com a organização Public Citizen (que apoia o Partido Democrata), a Microsoft tinha a trabalhar para si 81 empresas especializadas em fazer lobbying em Washington e a Amazon 64, unicamente dedicadas às questões fiscais.
Para além dos impostos, outros temas fulcrais para as tecnológicas são a neutralidade da internet, as regras relativas à privacidade dos seus clientes e a imposição de multas por práticas anti-concorrenciais.
Se é verdade que a defesa de uma economia em que a intervenção do Estado é mínima fez desde o início parte da ideologia predominante entre os empreendedores de Silicon Valley (com o libertário Peter Thiel como principal símbolo), a forma como os gigantes tecnológicos tentam agora que os políticos os deixem funcionar livremente parece mais motivada pela vontade de manter intactas as suas posições dominantes de mercado.
O Facebook, por exemplo, já mostrou estar disposto a ir muito longe para derrotar todos os novos concorrentes que surjam. Quando apareceu o Instagram e o WhatsApp comprou-os. Quando apareceu o Snapchat – e recusou-se a ser comprado – combateu-o usando todas as suas próprias inovações.
Do lado das tecnológicas, mantém-se contudo um esforço bastante grande para que as pessoas continuem a ter uma ideia deles completamente diferente da que têm de Wall Street, de que é exemplo o mea culpa recentemente feito por Mark Zuckerberg relativamente a algumas das práticas do Facebook, mas esse tipo de estratégia tem limites. Se é verdade que, ao contrário da banca, não correm grandes riscos de serem considerados culpados por uma grande crise económica e financeira futura, estas empresas assistiram, durante o último ano a uma perda progressiva de popularidade por questões como a influência exercida em eleições, os abusos ao nível da privacidade ou as práticas anticoncorrenciais, com multas avultadas a serem aplicadas na Europa.
Parece evidente que os Estados mostram vontade de reagir. "As empresas tecnológicas são um animal completamente diferente das outras empresas e os reguladores ainda não perceberam muito bem como lidar com elas. Entre a caricatura positiva que traçam de si próprias e as acusações de que agora estão a ser alvo, a verdade está algures no meio. E penso que o melhor não é pura e simplesmente travá-las, porque isso impede que continuem a fazer as coisas boas que fazem”, defende, em declarações ao PÚBLICO, Anja Manuel, uma ex-conselheira na Casa Branca que trabalha agora para empresas como a Ripple, uma prestadora de serviços de pagamento através de plataformas de blockchain.
A dúvida fica em saber-se se, numa altura em que Wall Street está quase a conseguir mais uma vez reverter a regulação mais restritiva aplicada a seguir à crise, todo o esforço de lobbying de Silicon Valley vai agora ser recompensado.