Portugal é um exemplo dos "abusos e corrupção" dos programas de vistos Gold

Novo consórcio global anti-corrupção denuncia sistema de compra de passaportes europeus e apela à intervenção da Comissão Europeia. O programa de Autorização de Residência para Actividade de Investimento, lançado por Portugal em 2012, prova como o risco de corrupção pode chegar até ao aparelho de Estado.

Foto
ENRIC VIVES-RUBIO

A experiência portuguesa é um exemplo de como os programas de atribuição de residência e cidadania em troca de investimento que foram desenhados por vários países da União Europeia, e são genericamente conhecidos como Vistos Gold, estão a contribuir para o aumento da corrupção e da criminalidade, até dentro da própria máquina do Estado, denunciou o novo Consórcio Global Anti-Corrupção, esta segunda-feira em Bruxelas.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A experiência portuguesa é um exemplo de como os programas de atribuição de residência e cidadania em troca de investimento que foram desenhados por vários países da União Europeia, e são genericamente conhecidos como Vistos Gold, estão a contribuir para o aumento da corrupção e da criminalidade, até dentro da própria máquina do Estado, denunciou o novo Consórcio Global Anti-Corrupção, esta segunda-feira em Bruxelas.

O programa português Autorização de Residência para Actividade de Investimento, em vigor desde 2012, foi apresentado pelos dirigentes das várias organizações que integram esta nova plataforma (caso da Transparência Internacional) como paradigmático das falhas em termos de escrutínio e transparência destes programas.

O facto de pelo menos onze dirigentes da Administração Pública, entre os quais o antigo ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, terem sido constituídos arguidos num processo de prevaricação, tráfico de influências e corrupção demonstra que “estes programas, que se tornaram um negócio de milhões de euros, estão abertos a abusos, incluindo dentro do aparelho do Estado”, conforme salientou Rachel Owens, directora da Global Witness.

Além do risco de corrupção, na avaliação ao funcionamento do programa português foram encontrados problemas de diligência prévia e supervisão — por exemplo, as instituições bancárias utilizam critérios mais apertados relativamente à proveniência do dinheiro para proceder à abertura de uma conta do que aqueles que o Estado pede para conceder um Visto Gold, comparou o consórcio — e de transparência.

“Os cidadãos têm direito a conhecer as receitas que o Estado está a obter e o valor dos respectivos investimentos, mas também quem são estes novos detentores de passaportes e de onde vem o seu dinheiro. Só assim podem fazer uma avaliação completa em termos de custos e benefícios destes programas”, afirmou Casey Kelso, director de advocacia da Transparency Internacional. “Infelizmente, até agora não foram prestadas quaisquer contas aos portugueses quanto aos benefícios sociais e económicos deste programa”, lamentou Rachel Owens.

Segundo Kelso, um dos efeitos nefastos do programa em Portugal manifesta-se na distorção do mercado imobiliário, que é para onde a esmagadora maioria dos candidatos a Vistos Gold estão a canalizar o seu investimento. De acordo com os números facultados pelas autoridades portuguesas, dos 5717 pedidos de Visto Gold deferidos entre Outubro de 2012 e Janeiro de 2018, 5397 foram atribuídos por investimentos imobiliários, ou seja, a aquisição de bens de valor igual ou superior a 500 mil euros. Os restantes foram concedidos pela transferência de capital no montante de um milhão de euros (311), e ainda pela criação de pelo menos dez postos de trabalho (9).

O Consórcio Global Anti-Corrupção não avançou nomes de investidores estrangeiros a quem Portugal concedeu um passaporte ao abrigo do programa, mas como notou Susana Coroado, da Transparency Internacional Portugal, estima-se que “vários membros da classe dirigente de Angola” terão obtido Vistos Gold com a compra de imóveis, num esquema que a organização reputa de duvidoso. “A lavagem de dinheiro pela via do imobiliário não é um fenómeno novo. Mas depois deste programa, esse risco cresceu exponencialmente”, disse.

Portugal só divulga a nacionalidade dos detentores de Vistos Gold (3645 chineses; 493 brasileiros; 228 sul-africanos; 200 russos e 131 turcos). Mas noutros países, foram publicadas listas com a identidade dos beneficiários: como revelou o Organised Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP), que esta segunda-feira começou a publicar uma série de reportagens a expôr os problemas e fragilidades dos programas de Vistos Gold em oito países da UE, foram atribuídos passaportes a indivíduos que estão a ser procurados pela justiça ou que são abrangidos por sanções internacionais.

“Estes programas, que se tornaram irresistíveis para vários países pequenos, com problemas financeiros e não muito bem governados, são um esquema que permite a uma plutocracia muito dúbia pagar pelo acesso às fronteiras e ao sistema bancário europeu”, notou Jody McPhilips, do OCCRP.

Para Rachel Owens, os Vistos Gold constituem um “risco sistémico” que Bruxelas precisa urgentemente de resolver. “É a segurança dos cidadãos europeus, e a integridade do espaço Schengen, que estão em causa quando indivíduos cujas fortunas assentam em actividades ilícitas podem pagar para ter um passaporte cipriota, húngaro ou português, que lhes permite movimentarem-se à vontade por todo o território da UE”.

Mas há também uma questão quase moral apontada por esta activista: “É chocante ver como estes esquemas agradam aos governos que estão dispostos a abrir as portas da UE a umas centenas de pessoas duvidosas, mas insistem em fechar as fronteiras às populações em situação desesperada que pedem asilo.”