Da música à televisão, a revolução digital
A cultura da Internet e as transformações tecnológicas marcaram o que se passou nas últimas décadas nos campos da música, cinema ou TV, impondo novos padrões de criação, distribuição e consumo.
Quem não escreveu já um poema? Não criou uma canção entre amigos? Não tirou uma fotografia, achando-a muito artística? Ou fez um pequeno filme? A maioria, certamente. No passado, a maior parte dessas, digamos assim, obras, ficava na gaveta. Nas últimas décadas desembocou directamente na Internet. O consumidor ser simultaneamente criador não é novidade. A diferença é que a esmagadora maioria dessa auto-expressão gerada em ambiente doméstico ficava guardada. Ser artista implicava, para além do investimento num percurso, ter acesso a meios de produção e distribuição. O que antes era filtrado por editoras de discos, livros, estúdios de cinema ou de TV passou a convergir para o espaço digital.
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Quem não escreveu já um poema? Não criou uma canção entre amigos? Não tirou uma fotografia, achando-a muito artística? Ou fez um pequeno filme? A maioria, certamente. No passado, a maior parte dessas, digamos assim, obras, ficava na gaveta. Nas últimas décadas desembocou directamente na Internet. O consumidor ser simultaneamente criador não é novidade. A diferença é que a esmagadora maioria dessa auto-expressão gerada em ambiente doméstico ficava guardada. Ser artista implicava, para além do investimento num percurso, ter acesso a meios de produção e distribuição. O que antes era filtrado por editoras de discos, livros, estúdios de cinema ou de TV passou a convergir para o espaço digital.
Por um lado os meios de produção, através da democratização da tecnologia, tornaram-se acessíveis. Por outro, o nosso papel de consumidores ou espectadores também se alterou. Deixámos de ser meros agentes passivos para nos tornarmos respigadores, gulosos programadores particulares, transfigurados pela proliferação de suportes e por muitas maneiras de ver, ouvir ou ler, a toda a hora, em todo o lado.
Essa democratização e multiplicidade de escolhas geraram mais diversidade e quantidade. Mas a partir de determinada altura percebeu-se também que o excesso de escolhas disponíveis gerava uma sensação de entropia, ao mesmo tempo que as audiências se fragmentavam, com uma cultura de pequenos nichos e cultos, que nem sempre se intersectava.
Como acontece sempre em circunstâncias de mudança, parte do público e alguns dos gigantes da indústria do entretenimento passaram as duas últimas décadas com nostalgia dos dias em que parecia existir uma espécie de unidade cultural na qual todos se reflectiam um pouco. Mas esses dias, é quase certo, não irão regressar, apesar de ao lado das tendências principais se acumularem veios secundários e de, ao mesmo tempo, a Internet ainda necessitar de parasitar os velhos media e de circuitos de legitimação tradicionais para se impor. Assim, não obstante as mudanças dos últimos 20 anos, continuamos num terreno de ambivalências, presentes nos universos da música, da TV e do cinema.
Música: o primeiro embate
A música foi talvez de todas as indústrias culturais a primeira a sentir o embate com essa nova realidade trazida pela cultura da Internet e pelos desenvolvimentos tecnológicos de uma forma geral. Durante muito tempo a Internet foi demonizada pelos gigantes da indústria, devido aos descarregamentos ilegais, mas a partir de determinada altura percebeu-se que as condições de feitura, partilha e distribuição se haviam alterado de forma tão profunda que o que havia a fazer era aceitar a nova realidade.
Foi essencialmente a partir da primeira metade dos anos 2000 que se tornou nítido que um artista ou grupo sem nenhuma estrutura por detrás, por iniciativa própria podia colocar a sua música na Internet e o sucesso, com alguma sorte, podia acontecer. Não foi necessariamente o fim do modelo da música rock (formar uma banda, tocar, conseguir um contrato, gravar um disco e promovê-lo na rádio), mas tornou-se uma forma alternativa de actuar. De repente, a receita do negócio da música (mercadoria, imagem, televisão) foi superada pela vertigem do melómano que descobre com paixão uma banda com a qual se identifica e quer partilhar essa descoberta, propagando-se o culto através do efeito viral.
Hoje, com algum distanciamento, percebe-se que também não vale a pena romancear. É verdade que se tornou possível criar música a baixo custo e promovê-la e que existiram fenómenos nos anos 2000 que beneficiaram imenso da revolução digital (dos Arctic Monkeys aos Arcade Fire, dos Buraka Som Sistema aos Linda Martini), mas, como é evidente, colocar a sua música à disposição no MySpace (a plataforma que inicialmente mais impacto teve), em blogues, no YouTube ou Facebook, por si só, não chega.
Ainda assim é verdade que antes existia essa ideia de tentar impor qualquer coisa ao público, e agora é também o público que acaba por impor as suas escolhas. Passámos de uma sociedade da informação para uma sociedade da comunicação. No início era aquela coisa estranha a que chamávamos "ciberespaço". Depois tornou-se o nosso ambiente quotidiano, no qual hoje passamos parte considerável do nosso tempo.
Muitas das transformações operadas (como a contínua desmaterialização dos suportes musicais) já eram perceptíveis antes do surgimento da Internet, mas o ecossistema digital acelerou todos os processos, com muita experimentação à mistura, com editoras, músicos (como os Radiohead quando puseram um álbum à venda tabelado pelo público, ou como David Bowie e Beyoncé que lançaram álbuns de surpresa, sem aviso prévio) e consumidores tentando-se adaptar-se à convulsão de formas diferentes.
Dir-se-ia que as cifras macroeconómicas deram lugar a um novo pragmatismo – vender menos de mais produtos. Foi assim que também irromperam novos ícones. Mais humanos e não figuras desenhadas a régua e esquadro. Não se obrigando a comunicar para o planeta, como as superestrelas da estirpe de Madonna ou Beyoncé, mas para inúmeros nichos. Dir-se-ia que a célebre máxima de Andy Warhol dos anos 60 ("No futuro todos serão famosos por 15 minutos") havia sido actualizada. Nos últimos 20 anos não só foi possível ser famoso por 15 minutos, como foi possível sê-lo apenas para 15 pessoas, não espantando que as celebridades globais, como as havia nos anos 80, tendam a escassear.
Aliás, na cultura popular digital em termos globais as celebridades nem sempre são as mesmas que são enaltecidas nos meios tradicionais. É como se existisse uma realidade paralela à indústria do entretenimento mais consolidada. A maior parte não move massas. Fazem parte de um novo tempo em que os circuitos profissionais continuam a ser importantes, mas em que é mais fácil contorná-los, acedendo directamente ao consumidor.
O consumidor, esse, rodeou-se nos últimos tempos de discos ou filmes, passíveis de serem experienciados onde e quando lhe apetece, obras de referência de hoje ou de ontem. Uma autêntica e inesgotável babilónia. Uma imersão contínua que tanto pode estimular, como vulgarizar a experiência. No caso da música, essa aparente banalização – é como se tivéssemos deixado de ouvir música realmente para a acumularmos apenas – e o consumo indiferenciado, no computador ou no iPod, teve como efeito paradoxal o regresso da prática comunitária dos concertos.
A experiência de um concerto é irrepetível. Tal como é a audição de música que consegue estabelecer alguma forma de compromisso com a nossa vida, reflectindo-o ou questionando-a, independentemente da tecnologia. O mesmo acontece com a TV ou o cinema. Também aí assistimos a profundas mudanças nas últimas décadas. Hoje vê-se muito mais filmes em casa do que em salas, o que não significa que as mesmas vão acabar, ou que a experiência social do cinema esteja ultrapassada.
Simboliza, isso sim, que tal como na música, também no cinema ou na televisão, nas últimas décadas se multiplicaram as experiências, os modelos, as formas de visualização e distribuição, os ciclos e contraciclos.
A pulverização da TV
De dois para todos – este foi o movimento do espectador português entre 1990. Eram só dois canais, muitas salas de cinema com personalidade, alguns multiplexes a polvilhar o país. Twin Peaks e Roda da Sorte a dar na televisão que vivia lá em casa com um videogravador VHS. Non, ou a Vã Glória de Mandar, O Processo do Rei, Ghost – O Espírito do Amor ou Pretty Woman nos cinemas. Fast forward para 2018 e põe-se a televisão entre aspas e o cinema em vários sítios. As dinâmicas de poder mudaram, entre programadores e espectadores, entre Hollywood e o pequeno ecrã.
E nós? Mudámos? Das histórias que nos contam e das histórias que contam sobre nós reza assim a história: havia uma novela no ar, Roda de Fogo, agora há pelo menos quatro por noite entre os canais privados; nos últimos 28 anos, três décadas arredondadas, as salas de cinemas espalhavam-se pelo país para depois se reduzirem e centralizarem em multiplexes. Os filmes passaram da Pretty Woman para a Wonder Woman. A maciça televisão, tradicionalmente um meio de argumentistas, saúda a visita dos realizadores que vêm da terra onde o cineasta é rei — o cinema. Em 2008 e quando terminava Os Sopranos, havia duas centenas de séries americanas por ano, agora há perto de 500; nos últimos três anos, a RTP produziu mais de 20 séries, seguindo a tendência.
É um momento que faz parte da história da televisão de prestígio — Os Sopranos, uma das mais importantes séries de sempre, foi pensada como um filme, porque um filme seria diferente, livre dos constrangimentos e das fórmulas rígidas que o seu autor, David Chase, experienciava na televisão. "De vez em quando na televisão é inventada uma nova forma [ou formato]: o primeiro concurso, o primeiro talk show de late night. Os Sopranos abriram uma nova forma de contar histórias [embebida no cinema de autor e no grão dos realizadores e argumentistas dos anos 1970]", defende John Landgraf, director do canal premium FX e que em 2015 avisou que estávamos a produzir demasiada televisão. "Peak TV", chamou-lhe memoravelmente, que se tornaria em "too much TV" para espectadores encantados, assoberbados, mas aparentemente nunca saciados.
Agora, uma das palavras definidoras da experiência televisiva dos últimos anos começa por "s" – e não é s de streaming, é s de stress. A televisão deixou há muito de ser sinónimo de um aparelho. Pulverizou-se em centenas de canais, plataformas, cabos, satélites e pirataria. Como previam os teóricos dos media, faz-se de nichos, de canais temáticos, de séries especializadas, de youtubers e binge-watching — o acto de consumir uma série, que naturalmente é fatiada em episódios, toda de seguida, baptizado com o termo "binge", associado aos distúrbios alimentares. Já não se preenchem só grelhas, enchem-se catálogos digitais. E os donos desses catálogos também fazem filmes blockbuster – em 1990, Will Smith estreava-se na TV com O Príncipe de Bel-Air. Há um par de meses, era a estrela do filme Bright, do Netflix.
O zapping leva-nos de novo a Os Sopranos, simbólicos também porque convocaram directores de fotografia do cinema, realizadores-autores e, mais tarde, actores-estrela. Se em 1990 David Lynch era uma surpresa na televisão com Twin Peaks, quando a ela regressou no ano passado com mais Twin Peaks era só mais um de muitos autores do cinema (de Baz Luhrmann a David Fincher passando por Woody Allen ou Steven Soderbergh) neste meio antes desvalorizado e que agora vive uma longa era de ouro que nos mudou, que muda o consumo, que nos reconcilia com os espectadores que fomos há 40 ou 50 anos.
Um desses realizadores que molhou o pé na água televisiva, com Boardwalk Empire ou Vinyl, foi Martin Scorsese, autor que nos anos 1970 mudou o aspecto e o grão do cinema enquanto ruía o studio system. Os anos 1970 foram aquela que muitos consideram ter sido a última era de ouro do cinema, em que a decadência dos grandes estúdios e a convulsão social favoreceu um novo e arenoso território do cinema de autor, variado e arriscado. "Todas as indústrias criativas estão em guerra civil. Os criativos — sejam eles escritores, pintores ou músicos — querem jogar com novas formas de expressão; os capitalistas preferem manter o que resultou da última vez. Mas às vezes os dois lados juntam-se, em condições de igualdade, num equilíbrio gloriosamente fértil. Chamamos a esses períodos as eras de ouro", postulava há meses o escritor britânico Ian Leslie, autor of Curious: The Desire to Know and Why Your Future Depends on It, no Financial Times. Falava da era de ouro da televisão, mas também desses férteis anos 1970.
O seu espectador é alguém que volta a encontrar-se com quem foi numa sala de cinema dos anos 1970 — mas, agora, o seu ponto de encontro é também na "televisão". À volta dela vivem hoje as massas das novelas, das séries criminais ou das comédias familiares, mas também as pequenas comunidades fervorosamente dedicadas aos seus novos autores (os Duffer, Issa Rae, Cary Fukanaga, Tina Fey ou Noah Hawley). O debate cultural dessa década valorizava o cinema de autor; esse espaço pertence hoje em grande parte à ficção de autor televisiva.
Já o cinema hoje é dominado pelo formato inventado pelos tresmalhados da Nova Hollywood — Steven Spielberg e George Lucas —, o blockbuster e o franchise. A sua vitalidade e valor cultural é indiscutível e produzem-se cada vez mais filmes, na Europa, na China, nos EUA. Mas a parte de leão do dinheiro é encaminhada para os grandes espectáculos visuais. Enquanto isso, os filmes de médio orçamento lutam por espaço e reconhecimento e por vezes só têm a sua glória em festas anuais (televisivas) como as dos Óscares. São momentos agregadores raros, porque a televisão e cinema competem hoje pelo seu lugar central na cultura popular, na conversa sincronizada.
Havia algo de estático na forma como consumíamos televisão, um acto ritualizado e doseado. Mas dos canais generalistas e das parabólicas passámos ao cabo, depois ao DVD e ao streaming. Os projectores e as câmaras do cinema migraram para o digital. Entre o cinema e a televisão as imagens aproximam-se como nunca da indústria musical. Coincidiram, nos últimos 30 anos, na abundância. n