Aquela grande rebaldaria na República Italiana
Dizia Gadda que a Itália vivia, como uma rendeira, do passado. Os políticos italianos vivem agora, como rendeiros, da caricatura que fazem dos estrangeiros. Isso chegará para os levar até às eleições. A partir daí, ignora-se o que mais inventarão.
Serei franco: não sei prever o que acontecerá a partir das eleições de hoje em Itália. Nisso estou bem acompanhado: nem os italianos com quem falo enquanto resido temporariamente no país nem os especialistas em Itália que leio se aventuram muito mais. Aqui há uns meses, nas páginas deste jornal, Jorge Almeida Fernandes escrevia algo deste género: “na semana passada disse-vos que não aconteceria x ou y, esta semana direi que afinal essas são grandes probabilidades; ignoro o que escreverei na próxima semana”.
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Serei franco: não sei prever o que acontecerá a partir das eleições de hoje em Itália. Nisso estou bem acompanhado: nem os italianos com quem falo enquanto resido temporariamente no país nem os especialistas em Itália que leio se aventuram muito mais. Aqui há uns meses, nas páginas deste jornal, Jorge Almeida Fernandes escrevia algo deste género: “na semana passada disse-vos que não aconteceria x ou y, esta semana direi que afinal essas são grandes probabilidades; ignoro o que escreverei na próxima semana”.
Tal como se costuma dizer “gostaria de ser Dante para descrever este inferno”, começo estas linhas pensando que só um escritor como Carlo Emilio Gadda (1893-1973) poderia descrever esta Itália. Gadda foi o autor de Aquela grande rebaldaria da Rua Merulana (Quer pasticciaccio brutto de via Merulana, 1957) romance satírico pseudo-policial escrito em Florença após a guerra mas cuja ação decorre em 1927 para descrever o ambiente do primeiro fascismo. Na sua mistura de dialetos, registos de linguagem e situações sociais, Aquela grande rebaldaria é um monumento a tudo o que havia de estúpido, cruel e ridículo na situação política italiana daquele tempo. Só que Gadda escrevia de memória. Duvido que pudesse imaginar o que agora se passa.
Vejamos: os italianos foram para estas eleições depois de terem dado anos aos seus políticos para escolherem um novo sistema eleitoral. Os políticos, evidentemente, falharam. Discutiram propostas legislativas com nome latino e não se decidiram por nenhuma; o governo caiu e manteve-se em funções porque não havia como escolher um novo. No fim de contas, o Presidente da República decidiu convocar eleições com o sistema rosatellum que mistura o proporcional com o uninominal, privilegia as coligações e parece ter como principal efeito impedir que o Movimento 5 Estrelas governe. Ainda pouco satisfeitos com a situação que criaram, as maiores coligações italianas conseguiram apresentar-se a eleições sem dizerem aos eleitores quem eram os seus candidatos a primeiro-ministro. Da coligação de “centro-direita”, que na verdade vai da direita à extrema-direita e aos fascistóides, o grande mestre de cerimónias foi Berlusconi, que por lei não pode ser primeiro-ministro. Da coligação de centro-esquerda, o grande porta-voz foi Matteo Renzi, que também não pode ser primeiro-ministro porque ninguém parece gostar dele. Os primeiros decidiram anunciar no último dia de campanha que o primeiro-ministro seria Antonio Tajani, presidente do Parlamento Europeu — para grande descontentamento de Matteo Salvini, parceiro de coligação pela antiga Liga Norte separatista, que jura que o primeiro-ministro será ele. Renzi lá pareceu admitir nos últimos dias que o futuro primeiro-ministro da sua coligação seria Paolo Gentiloni, atual chefe de governo. E uma boa parte da elite política italiana sugere mesmo que as eleições sirvam para deixar o atual governo em gestão até que se possam convocar novas eleições. Depois admiram-se que a atitude geral dos italianos seja de apatia. Se as eleições não servem para legitimar um governo, para que servem?
As culpas são tão repartidas que, na impossibilidade de fazerem recriminações mútuas que seja todas credíveis, os políticos italianos recriminam antes os estrangeiros. Durante uns anos o bombo da festa foi a “Europa” e o euro, com a conveniente omissão que nos tempos da última grande desvalorização da lira o poder de compra dos salários italianos caiu para metade e o desemprego triplicou duradouramente — até hoje, com uma pequena melhoria recente. Sobram os imigrantes pobres e negros, de quem os políticos julgam ser mais fácil convencer os eleitores a fingir que deles se pode prescindir, apesar de serem esses imigrantes quem limpa as casas, cozinha nos restaurantes e cuida dos idosos italianos. Entretanto, surgem toda a espécie de sintomas mórbidos.
Dizia Gadda que a Itália vivia, como uma rendeira, do passado. Os políticos italianos vivem agora, como rendeiros, da caricatura que fazem dos estrangeiros. Isso chegará para os levar até às eleições. A partir daí, ignora-se o que mais inventarão.