As desigualdades nas rotas migratórias: obrigação para uns e "marca distintiva" para outros
Nos anos duros da crise, a emigração foi a escapatória para milhares de trabalhadores portugueses. Mas também aqui as desigualdades foram vincadas: os mais qualificados puderam arriscar novos destinos e valorizar currículos em relativa segurança, os outros ficaram circunscritos aos tradicionais destinos da emigração portuguesa.
A emigração foi, como se sabia, a grande “válvula de escape” nos piores anos da crise social e económica que vergastou Portugal. Mas também aqui sobressaíram nos últimos anos grandes desigualdades consoante o “capital escolar” e de qualificações dos emigrantes portugueses. Para os menos qualificados, a emigração foi forçada, fortemente condicionada pela existência de conexões prévias nos países de destino, factor de desenraizamento e de perda de direitos, enquanto para os mais qualificados foi, pelo contrário, oportunidade e “marca de distinção”.
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A emigração foi, como se sabia, a grande “válvula de escape” nos piores anos da crise social e económica que vergastou Portugal. Mas também aqui sobressaíram nos últimos anos grandes desigualdades consoante o “capital escolar” e de qualificações dos emigrantes portugueses. Para os menos qualificados, a emigração foi forçada, fortemente condicionada pela existência de conexões prévias nos países de destino, factor de desenraizamento e de perda de direitos, enquanto para os mais qualificados foi, pelo contrário, oportunidade e “marca de distinção”.
Os mais qualificados (cuja emigração cresceu mais do que a dos menos qualificados mas que estiveram ainda assim longe de constituir o grosso dos fluxos migratórios para fora de Portugal) puderam arriscar novos destinos e tirar proveito de processos formais de recrutamento e de oportunidades que, como escrevem o investigadores Rui Pena Pires e Cláudia Pereira, no livro "Desigualdades Sociais - Portugal e a Europa", que vai ser apresentado no dia 7 de Março, “tendem a ser activamente promovidas a partir dos países de destino na sequência de políticas que privilegiam, numa lógica de concorrência agressiva, o recrutamento de trabalho qualificado, mesmo quando fecham a imigração aos menos qualificados”.
Entre os emigrantes qualificados é, de resto, “mais provável a emergência de orientações cosmopolitas favoráveis a estratégias de mobilidade territorial alargada”. Tendem a formar uma espécie de “elite cosmopolita”, cujo estilo de vida “celebra a irrelevância do lugar”. Como diz um destes emigrantes, citados pelo investigador: “Vivo na Noruega, mas não vivo na Noruega. Vivo fisicamente na Noruega, mas trabalho numa bolha internacional.”
“À desigualdade no plano das qualificações corresponde uma clara desigualdade no plano das oportunidades migratórias”, constatam. Os investigadores sublinham desde logo que os mais pobres de entre os mais pobres raramente emigram, porque “as migrações, sobretudo as internacionais, requerem recursos e competências de que raramente dispõem”, desde os custos de deslocação às despesas inerentes à fixação no destino.
No patamar seguinte, entre os menos qualificados, a incerteza resultante do abandono de um meio social conhecido, preenchido por rotinas e rituais, em troca de um destino novo e de maior isolamento social inicial, tende a pesar mais do que àqueles – os mais qualificados - cuja capacidade de decifração do mundo é maior. É a chamada “insegurança ontológica associada à desrotinização”, aponta Pena Pires, citando o sociólogo Anthony Giddens. Isto ajuda a explicar que, ainda entre os menos qualificados, o ímpeto migratório tenda a integrar rotas migratórias historicamente estabelecidas, “as quais, por efeito de rede, disponibilizam informação credível e garantem o acesso a mais apoios no destino”. Equivale isto a dizer que os destinos possíveis para os menos qualificados estão longe de ser um “catálogo aberto”.
Mais de metade com ensino básico
Os números conhecidos ajudam a fundamentar algumas destas conclusões. No caso da França, um dos poucos países onde foi possível analisar as qualificações dos emigrantes portugueses recém-chegados, constatou-se que, em 2012, mais de metade (56%) tinham no máximo o ensino básico e apenas 14% um curso superior. Os licenciados eram maioritários, isso sim, nos fluxos que se dirigiam para novos países de emigração: Irlanda (64%), Noruega (55%) e Reino Unido (55%). Estes, como no caso dos enfermeiros, são recrutados para trabalhar lá fora, mesmo quando são ainda estudantes, o que permite concluir que tiram “proveito acrescido dos recursos e processos organizacionais formais de recrutamento do trabalho migrante”. “Quanto mais qualificado for o migrante, mais possibilidade terá de utilizar informação codificada, impessoal, técnica, na identificação de oportunidades de migração”, reforça Pena Pires.
O estudo cita os dados disponíveis para os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico que mostram que, em 2010/11 emigraram 0,17% dos nascidos em Portugal com 15 e mais anos que tinham concluído, no máximo, o ensino básico, 0,33% dos que tinham concluído o secundário e 0,68% dos detentores de um diploma do ensino superior. “Ou seja, a probabilidade de emigração era então tanto maior quanto mais elevado fosse o nível de instrução”.
O facto de a probabilidade de emigração ser quatro vezes superior nos sectores mais qualificados não significa, porém, que os migrantes qualificados constituam a maioria dos emigrantes nesses anos. Ainda assim, Rui Pena Pires conclui que, para os qualificados, mesmo ultrapassada a crise de 2008 e reduzida a intensidade dos factores de repulsão que estiveram na origem do aumento da emigração, o fluxo migratório tende a continuar. Porquê? Porque para estes a emigração tende a constituir-se como “recurso, oportunidade e marca de distinção”.