Já nos sentimos mais confortáveis ao ouvir a palavra vagina?
Quinze mulheres dão voz à leitura encenada de Os Monólogos da Vagina. Mais de 20 anos depois do sucesso de Eve Ensler, continua a peça a ser actual?
Quando, em 2000, a actriz Guida Maria trouxe para Portugal a peça Os Monólogos da Vagina, de Eve Ensler, Antónia Barradas era adolescente e foi vê-la com a mãe e uma amiga ginecologista. O texto, uma manta de retalhos baseada em experiências reais a partir de mais de 200 entrevistas, retrata situações da vida das mulheres (ou das suas vaginas), as suas descobertas ou a violência a que são sujeitas. “A peça teve uma influência profunda na minha visão do que era ser mulher e ser feminista”, revela a advogada de 37 anos, especialista em direitos humanos. Agora, é ela quem organiza uma leitura encenada dos Monólogos, em Lisboa.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Quando, em 2000, a actriz Guida Maria trouxe para Portugal a peça Os Monólogos da Vagina, de Eve Ensler, Antónia Barradas era adolescente e foi vê-la com a mãe e uma amiga ginecologista. O texto, uma manta de retalhos baseada em experiências reais a partir de mais de 200 entrevistas, retrata situações da vida das mulheres (ou das suas vaginas), as suas descobertas ou a violência a que são sujeitas. “A peça teve uma influência profunda na minha visão do que era ser mulher e ser feminista”, revela a advogada de 37 anos, especialista em direitos humanos. Agora, é ela quem organiza uma leitura encenada dos Monólogos, em Lisboa.
A decisão de trazer a peça a palco neste ano não é indiferente à morte de Guida Maria, em Janeiro. Este é também o ano que marca o 20.º aniversário do V-Day, movimento criado por Eve Ensler para combater a violência contra as mulheres em todo o mundo. Os Monólogos da Vagina – classificada pelo New York Times, em 2006, como “provavelmente a peça de teatro político mais importante da última década” – está até quarta-feira na Cantina Velha da Universidade de Lisboa. Em palco vão estar 15 actrizes amadoras, na maioria juristas, mas também uma fotógrafa, uma professora ou ainda Catarina Marcelino, a ex-secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade.
Em relação ao cartaz, houve “algumas críticas um bocadinho deslocadas para 2018”, revela Antónia Barradas. Um pouco como aconteceu a Guida Maria, que no início deste século teve dificuldades em encontrar um lugar para apresentar a peça, a advogada também passou por situações “caricatas”. “As pessoas têm reacções inesperadas, e não é uma questão de gerações, é uma questão social. Acho que há pessoas que não estão minimamente confortáveis sequer em ouvir a palavra ‘vagina’.”
Podemos então afirmar que esta obra, escrita a partir de entrevistas a mulheres com diversos perfis, continua a ter a mesma ressonância nos dias de hoje? “É uma peça que fala sobre a vagina como lugar político, e isso está em constante evolução”, responde a jurista. “A forma como é ou não vista, é ou não é tapada, é ou não é atacada, está aqui uma panóplia de conceitos com que se pode jogar sempre e ir evoluindo nesse sentido.”
“O texto é surpreendentemente actual”, concorda Luciana Carmo, de 30 anos, estudante de Filosofia na Universidade de Coimbra e presidente da Associação de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na cidade. A estudante reconhece que “há uma dificuldade em falar sobre o que é ser mulher, sobre qual é a experiência da mulher, sobre o espaço que a mulher ocupa na sociedade”. “Quando olhamos para esse texto, que foi escrito há 20 anos, percebemos como muito ainda está por se fazer – talvez com mais 20 anos de dedicação e de discussão...”
Orgasmo e a doçura do parto
Mais de duas décadas passadas, uma das questões que ainda se colocam é a da linguagem. A advogada Raquel Véstia, 34 anos, recorda que, quando leu os Monólogos pela primeira vez, “as palavras eram quase tabu”, como se não devessem ser ditas. E mesmo agora, nos ensaios para a peça, reparou que muitas estavam inicialmente inibidas ao declamar o texto, pleno de “uma linguagem ousada”.
Palavras, por exemplo, como “cona”, que está no centro do monólogo lido por Mónica Oeiras, de 34 anos. Representante da primeira agência portuguesa de modelos plus size, a Curvy Models, Mónica reconhece que “é uma palavra muito agressiva, muito forte”, mas contrapõe que “os assuntos têm de ser falados abertamente, todas as coisas têm nomes, variadíssimos nomes”.
E, como refere outro monólogo da peça, o que não é nomeado mantém-se “indomado, desconhecido”. Esta vergonha de nomear os genitais resvala para a dificuldade em falar sobre sexualidade e, em particular, sobre o prazer. Aliás, o texto que abre os Monólogos, escrito por Eve Ensler em 1996, poderia ter sido escrito hoje: “Essas mulheres, ao princípio, tinham relutância em falar. Eram um pouco tímidas. Mas assim que começavam, ninguém as conseguia calar. As mulheres, lá bem no fundo, adoram falar em vaginas. Ficam excitadas, sobretudo porque nunca ninguém lhes tinha feito tais perguntas.”
“As pessoas ainda têm pudor em falar de sexualidade, quer no geral, quer da sua própria sexualidade, e não só as mulheres, os homens também”, reconhece a advogada Aurélie Rosado, 34 anos, que participa da leitura do monólogo de abertura. “As pessoas acabam muitas vezes por não descobrir o próprio prazer que podem tirar da sexualidade.”
A mensagem que perdura da peça é o alerta contra a violência de género, mas ao longo dos monólogos também se fala sobre outros aspectos da vida das mulheres, desde o desconforto das idas ao ginecologista – um “relaxe a vagina” seco que continua a ser semelhante ao que ouvirá numa consulta hoje em dia – à vergonha dos próprios fluidos de prazer. E também a descoberta do orgasmo, um “tremor” que se transforma num “terramoto, uma erupção”.
Ouve-se ainda sobre a experiência do parto. Melanie Folini, de 28 anos, fala-nos com doçura sobre um dos momentos que mais marcaram a sua leitura de Os Monólogos da Vagina: a descrição de uma mulher a dar à luz. Está grávida. “É muito tocante, porque tem uma comparação da vagina com o coração. Chorei na primeira vez que ouvi.” Luciana Carmo, que é mãe, também vê neste monólogo um final à altura. “O relato do parto é muito bonito e tem uma parte em que pergunta como pudemos ser tão insensíveis e não reparar como a vagina é também... divina. Ela traz a vida, não é? É capaz de sangrar e de sobreviver por nós, de se sacrificar.”
Violência contra mulheres
A peça guia-nos por questões globais de violência contra as mulheres e raparigas, como o abuso sexual e a mutilação genital feminina. Um dos momentos mais marcantes para Eve Ensler, partilhou a autora ao longo dos anos, foi ouvir as histórias de um grupo de sobreviventes da guerra da Bósnia, que são protagonistas do monólogo “A minha vagina era a minha aldeia”.
E o guião adaptou-se ao longo do tempo, com a integração de perspectivas ausentes, como o caso das mulheres trans, no monólogo “Mataram a rapariga que havia no meu rapaz – ou tentaram”. No elenco desta leitura encenada, encontramos Daniela Bento, engenheira de software, que descreve esta narrativa que “aborda os princípios de identificação que as crianças têm na altura em que começam a descobrir o seu próprio corpo e a necessidade que têm de se identificarem com o corpo do sexo oposto”.
Daniela, uma mulher trans, deixa um possível desafio para esta peça: falar sobre os “homens que menstruam”, referindo-se a homens trans que escolhem manter a sua vagina. Futuramente, acrescenta Daniela, pode ser que a autora considere vir a incluir homens trans – numa peça onde até agora só mulheres estão representadas em palco –, porque “a questão da autonomia do corpo faz com que as vaginas não sejam só para mulheres”, justifica.
Para Aurélie Rosado outros temas actuais que poderiam ser acrescentados ao debate são as questões do assédio, ou também os problemas dos refugiados. Recorda, por exemplo, os muitos campos de refugiados onde a falta de segurança permite que “mulheres e crianças, raparigas mas também rapazes, possam ser raptados ou violentados, quer física, quer sexualmente”.
A advogada reforça, contudo, a importância que a peça e que o movimento V-Day a que está ligada há 20 anos acabaram por ter nos diversos países em que Os Monólogos da Vagina foram apresentados, levando a que práticas que eram consideradas socialmente aceitáveis, como a mutilação genital feminina, começassem a ser questionadas, “ao levar as pessoas a pensarem sobre o efeito que este acto pode ter para a vida das mulheres e das raparigas”.
Para Luciana Carmo, é clara a necessidade de chamar pelo nome o que se evita nomear – as vaginas, os desconfortos, a violência – para, enfim, transformar. “A gente ainda precisa falar sobre as vaginas e sobre a realidade das mulheres, sobre as necessidades das mulheres e sobre os nossos direitos.”
Os Monólogos da Vagina foram encenados por Miguel Simal – “um dos únicos homens envolvidos nesta peça”, aponta Antónia Barradas – e a venda dos bilhetes, dez euros, reverte para a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas. As sessões começam às 19h30 e as reservas podem ser feitas por e-mail vdaylisboamdv@gmail.com.