Sobre a noite passada: The Walking Dead “tem sempre de ser negro, feio e desumano”

O pêndulo moral continua a oscilar. Spoilers, mortes e perguntas sobre mais mortes — o regresso da oitava temporada de uma das séries mais populares repôs a narrativa, e as emoções, no seu caminho blockbuster?

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AMC/FOX

The Walking Dead continua a ser um blockbuster? Continua a ser uma das duas grandes séries impiedosas, com argumentistas de dedo no gatilho e respectivas vítimas dolorosas? O que se passa com, e em, The Walking Dead, a série mais vista em Portugal na temporada passada, a série que perdeu agora um dos seus sobreviventes mais antigos. É sempre a mesma cantiga?

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The Walking Dead continua a ser um blockbuster? Continua a ser uma das duas grandes séries impiedosas, com argumentistas de dedo no gatilho e respectivas vítimas dolorosas? O que se passa com, e em, The Walking Dead, a série mais vista em Portugal na temporada passada, a série que perdeu agora um dos seus sobreviventes mais antigos. É sempre a mesma cantiga?

O spoiler tem uns meses, mais precisamente dois, mas sim, o grupo de sobreviventes no centro da história da série criada por Robert Kirkman para um comic que deu um blockbuster televisivo perdeu o rapaz que os espectadores viram crescer. Com uma lição sobre como é morrer, como desatar os nós feitos em vida, como fazer uma despedida, como dar um objectivo aos que ficam — Honor, título do episódio que passou na Fox, era o santo e a senha. Honrar a memória de Carl Grimes, o jovem interpretado por Chandler Riggs e por quem, na verdade, a história da série se fez. “Foi sempre tudo para ti”, diz o pai Rick Grimes, o torturado líder dos “heróis”, recapitulando a estrada já percorrida.

“Atlanta, a quinta, a prisão” — temporada um, dois e três, o sonho da civilização a cada passo, uma intriga que ora começava a apaixonar (estreia), que ganhava espectadores (temporada dois), ora conseguia um dos mais importantes vilões e também das primeiras e mais dolorosas perdas (temporada três) e daí partia para audiências satisfeitas e cada vez mais numerosas. Uma raridade na televisão de hoje, acompanhada pelo facto de que quem vê The Walking Dead sentir que tem um compromisso a cada semana, um compromisso televisivo a que os anglosaxónicos chamam appointment viewing e que era isso mesmo para cinco milhões, depois para sete milhões, depois para 13, 14 milhões à medida que as temporadas iam avançando, e depois voltou aos 13 e acabou nos 11 milhões de 2017. Eis-nos chegados ao 9.º episódio da 8.ª temporada e a série que destronou os procedurals como NCIS ou as comédia fidelizadoras como A Teoria do Big Bang em Portugal passou dos 11,4 milhões de espectadores americanos para a casa dos sete milhões.

Nos arcos narrativos da série de zombies que na verdade é sobre a natureza humana perante um acontecimento de quase-extinção, o pêndulo moral de várias personagens tem oscilado. Isolam-se, cedem a tendências assassinas, escolhem a vingança, optam por uma liderança de medo e ego. Nos últimos anos parece ter deixado mesmo os zombies para trás, salvo o ocasional momento de “manada” ou o exemplar pitorescamente decomposto — até agora, em que é precisamente um deles, atraiçoando o impulso de “fazer a coisa certa” do jovem Grimes, que causa a sua desgraça. Ocasião para passar o testemunho, entrando em cena o médico Siddiq, e também a confissão de Carl de pecados antigos, tentando operar uma viragem da bússola de valores na história.

Que continua, em terras vizinhas de um Reino quase sem súbditos, com outras duas personagens do grupo inicial, Morgan e Carol, a manobrar as suas motivações uma vez mais: um abstinente que agora arranca intestinos (“Credo!”, escapa a um dos seus adversários) e uma eremita regressada à gestão das pulsões do seu exército.

“Esta era a aposta emocional significativa que a série procurou durante tantas semanas”, escreve Charles Bramesco no New York Times. “O lado negativo, claro, é que a falta de surpresa ou de um twist torna o episódio subsequente numa lenta e miserável marcha rumo à inevitável conclusão, ocasionalmente pontuada por cenas a fazer coisas que em comparação são excitantes antes de voltarmos ao fim de Carl”, critica Zack Handlen no site AV Club. Richard Rys, do site Vulture, admite: “Ao fim da noite, eu parecia-me com o Rick daquelas cenas intercalares, abalado e a precisar de um colírio”.

A televisão é isto, produtora de obras ou produtos para julgar de forma imediata, ou salvo quando gera essa rara jóia que é um episódio unanimemente aclamado e que, simultaneamente, é um blockbuster. The Walking Dead é isto, um gerador de emoções ora baratas ora com um preço elevado, que passa regularmente por altos e baixos à frente de toda a gente — quando toda a gente está a ver.

Influente e por isso meritória de tanta análise internet fora, marca com A Guerra dos Tronos um tipo de narrativa televisiva agregadora, de nicho de massas, na corda-bamba da forma como gere intriga, expectativa crítica e de audiência e emoções seculares. É, ao mesmo tempo, despudoradamente pop, e pulp. Como lamenta um dos adversários do grupo de sobreviventes, “tem sempre de ser negro, feio e desumano”.

Um pormenor há muito sugerido pelo próprio actor, Andrew Lincoln, e agora pelo epílogo de uma série que se destaca pelo seu jogo constante com as emoções e com os recursos mais primários de espectadores e argumentistas: o líder Rick parece ferido de morte. “É uma coisa real”, disse à Hollywood Reporter o actor sobre a cena de fim de episódio (entre os jogos que os guionistas jogam, houve desde o início desta temporada uma série de cenas no que parecia o futuro e que eram afinal uma visão, uma fantasia). Há dois anos, nas filmagens na Geórgia, Lincoln dizia ao PÚBLICO como a sua personagem, o papel da sua vida, poderia mesmo morrer. “Para que a série possa avançar. Adoro este tipo, mas seria um grande episódio”.

“Não nos alegramos com alguma da dor que infligimos ao público ao manter a integridade da história e com o que as personagens passam. É parte do mundo em que todos estamos a investir”, disse uma vez mais o showrunner Scott M. Gimple à Hollywood Reporter.

A banda continua a tocar, claro, porque há mais sete episódios a caminho na Fox (e no AMC natal dos EUA), e neste caso a banda tocou logo no início do episódio, com incomum protagonismo dos Bright Eyes e sua história de quem se prepara para a morte no tema At the bottom of everything. Outras palavras, para além da letra da banda indie, ecoam sobre a temporada — “My mercy prevails over my wrath”, diz Rick Grimes, ou “a minha misericórdia prevalece sobre a minha ira”. O desfecho será conhecido mais para o fim da temporada, diz Scott M. Gimple. O pêndulo moral em movimento, num blockbuster, sim, que tem garantida mais uma temporada e previstas mais um punhado delas.