O bonito, o feio, o janota e o efeito Miles Davis na arquitectura

A fala de um sobrepõe-se, por vezes, à do outro, como o desenho de um sempre se foi sobrepondo ao do outro ao longo de mais de 40 anos de trabalho e amizade. Não é atropelo, é osmose diz um deles. Os dois prémios Pritzker portugueses, à conversa.

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Enquanto espera, Souto de Moura folheia o Guia de Arquitectura Álvaro Siza — Projectos Construídos em Portugal. De trás para a frente e à velocidade de um filme. É uma rebobinagem. Começa no The End e acaba no leão da Metro, o documentário de uma obra até aos tempos de maior frescura, de menor dúvida. Tem o livro do amigo e parceiro de muitos trabalhos, mas é no seu que está a pensar ao simular a rapidez da visão do trabalho global. “Agora cada vez tenho mais dúvidas, tantas.” É então que Álvaro Siza entra na sala e se senta à mesa com um maço de cigarros que há-de fumar durante as mais de duas horas de conversa entre ambos. Como se o cigarro fosse o lápis que lhe falta. Segura-o, aliás, da mesma maneira. Álvaro Siza Vieira, vencedor do Prémio Pritzker em 1992, e Eduardo Souto de Moura, que em 2011 ganhou o mesmo prémio, considerado o Nobel da Arquitectura, falam abertamente da obra de um e outro, usando uma fina ironia e a sem-cerimónia de quem partilha não apenas atelier, o edifício onde vivem, mas uma cumplicidade que lhes permite desenhar no mesmo papel por cima das ideias um do outro. É a desenhar que pensam, inspirados pelo cinema, música, literatura, escultura, fotografia, pintura. Coisas da mesma família da arquitectura, diz Siza, a disciplina que só é arte quando se consegue libertar da sua função, o que nem sempre acontece.

A relação da arquitectura com o real, o belo, o feio, a política, os desafios da profissão, a denúncia da burocracia, o receio da normalização e o elogio ao que se vai fazendo em alguns países de África e da América Latina. Resistência ou apenas atraso tecnológico? Isto e algumas (pequenas) embirrações neste encontro que aconteceu no Porto, em vésperas da publicação do guia Eduardo Souto de Moura, Projectos Construídos em Portugal, uma edição da A+A, cujo lançamento ocorre um ano depois do guia dedicado a Siza Vieira. À semelhança deste, também Souto de Moura verá o conjunto de obras que já realizou nas fotografias de Nuno Cera, numa exposição na galeria da Fundação Millennium BCP, em Lisboa, até 19 de Maio.

Há quantos anos se conhecem?
Eduardo Souto de Moura — Conheci o Siza em 75, estava no quarto ano [de Arquitectura]. Eu e um grupo de colegas convidámos o Siza para trabalhar connosco no SAAL [Serviço de Apoio Ambulatório Local, 1974-76], éramos estudantes. Trabalhava num escritório em frente ao dele e depois o SAAL começou a entusiasmar-me cada vez mais e mudei-me, fui [trabalhar] para o Siza. 

Álvaro Siza Vieira — [acende um cigarro] Eles é que me contrataram. Era preciso um arquitecto sénior e vieram ter comigo.

E.S.M. — Antigamente, havia uma ligação muito sociológica da arquitectura, era ligada às pessoas, ligada à ideologia, e o mito de que havia uma nova arquitectura se houvesse um novo homem e uma nova sociedade. E eu acreditava nisso, na minha inocência. 

Quando é que deixou de acreditar?
E.S.M. — Depois, mas isso é outra história... Trabalhámos anos a fazer inquéritos, levantamentos das casas, núcleos de habitação, a radiografia social do quarteirão. O Nuno Portas foi para ministro da Habitação e fez uma lei que fundou o SAAL. Quem tivesse uma estrutura mais ou menos organizada e provasse uma necessidade, fizesse um dossier, que ele ajudava. Candidatámo-nos e depois não sabíamos fazer projectos porque passámos o curso a discutir dialéctica. [Risos] Tínhamos de arranjar um tipo que soubesse fazer casas. O meu colega Adalberto [Dias] trabalhava com o Siza. E fomos escolher o melhor, já agora. O Siza disse: “Ah! claro!”

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Os dois guias dedicados à vossa obra construída em Portugal estão marcados pela política. Esse projecto foi decisivo?
E.S.M. — O Siza era mais velho, mas foi muito importante. Discutia-se tudo. Quando fizemos o SAAL, havia muitos movimentos políticos. Uma corrente dizia que não se devia fazer nada senão o proletariado ficava burguês e não havia revolução. Era contra os arquitectos tecnocratas que estavam a fazer casas. E depois havia variantes que diziam que se devia fazer, mas respeitar a vontade da população, fazer o que eles queriam. E o Siza lutou contra isso, e bem. Escreveu um texto que tive de ler à assembleia de moradores porque o Siza foi para Madrid. Era sobre este tema e acabava com uma citação do Che Guevara que dizia que a qualidade é o respeito pelo povo. O que quer dizer que a qualidade não é feita pelo povo. Quando se faz feio e mau, é-se fascista, apesar de na arquitectura os fascistas terem feito coisas muito boas. Veja Barcelona, o conjunto de arquitectos modernos de Barcelona apoiaram o Franco. Essa margem entre ética e estética continua a dar que falar. Se formos a ver, os arquitectos de esquerda se calhar são os piores, porque andaram na militância e muitos não exercitaram.

Quando fala da política, fala de um compromisso com o social?
A.S.V. — Sim, no caso do SAAL, esse compromisso era irresistível. Era um momento de grande autenticidade e conflito. Depois fiz habitação dita social — toda a habitação é social — na Holanda e era muito diferente porque não havia essa autenticidade. Era uma reacção a problemas que existiam. Era já o problema dos emigrantes. Foi um período incrível. Mas o debate com os moradores era difícil. Havia ideias diferentes, diálogo cruzado muito complicado.

E.S.M. — Antes da chegada do Siza, tínhamos conversas sobre como é que eles queriam as casas. E demorávamos imenso. Estávamos à procura da casa revolucionária. A nova casa para o novo homem e eles diziam: “Porque é que não faz igual à sua? Você deve viver bem! É burguês?”; “Eu sou”; “Então faça igual”. E depois vinha alguém e dizia: “Façam torres.” Houve sempre uma certa demistificação ao longo dos tempos desses preconceitos que tínhamos e eles não tinham. Eram pragmáticos, não se importavam de viver em torres uns em cima dos outros e queriam casas normais. E nós achávamos que as casas burguesas eram uma alienação e eles queriam era casas burguesas.

A.S.V. — Houve um momento fantástico. Quando comecei o projecto, pensava que se ia discutir a relação da cozinha com a sala, coisas dessas; também se falou muito nisso, mas houve um momento em que os moradores tomaram consciência de que o problema que se estava a tratar não era da casa deles ali naquele sítio, mas o problema da cidade. Por um lado, deu consistência, por outro, foi o fim do SAAL, porque quando o debate chegou à cidade já mexia com interesses profundíssimos e o SAAL foi congelado. 

E.S.M. — Quando se está a discutir casas com os moradores, não há problema nenhum. Quando é preciso discutir expropriações e pagar indemnização, alto lá! Porque aquilo tem vistas muito bonitas para o rio e tal, e aí começaram os problemas.

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Dizia que esse projecto foi o fim da sua ingenuidade.
E.S.M. — Foi, para mim, foi. No fim, a destruição das casas foi um processo muito tortuoso a que me custou assistir. Fizemos 12 casas e havia uma hierarquia das pessoas mais necessitadas e não foram para essas; foram para a direcção da associação. 

A.S.V. — Há um episódio incrível. Quando eu peguei fogo ao cabelo.

E.S.M. — Ahahah. O Siza ardeu no plenário!

A.S.V. — [Gargalhada] Eram para aí 300 pessoas, moradores, e eu estava a discutir um pormenor do quarto de banho. Havia pouquíssimo dinheiro e pouca área. E eu queria pôr um polibã, ocupava menos espaço e dispensava o bidé. Estava a explicar a uma senhora — a participação das mulheres nas assembleias era maioritária, estavam lá, com xaile e tal, e reagiram muito mal ao polibã. E eu explicava [imita com gestos] “A gente senta-se, lava-se, há um esguicho”; e a senhora levanta-se e diz: “Isso não!”; e eu continuei a gesticular e a dizer “olhe que é bom e tal”; e tinha um fósforo na mão e no meio da discussão esqueci-me do fósforo e, às tantas, vejo 300 pessoas a levantarem-se e a avançarem para mim, a senhora com o xaile também. E eu a pensar: “Sei que estávamos em discussão, mas também não estava a ser assim tão chato como isso. Vão-me matar.” E, entretanto, a senhora aterrou o xaile em cima de mim e apagou o fogo ao meu cabelo.

E.S.M. — Ele pensava que era o polibã o motivo de ataque. Eram tempos maravilhosos.

Passados mais de 40 anos, escritórios separados mas trabalham no mesmo edifício...
A.S.V. — Aqui não somos só os dois. Há um grupo de amigos. Sabe, na mesma altura, tivemos todos os mesmos problemas de escritório, de instalações. O Eduardo estava em Matosinhos num escritório muito pequeno. E eu estava do outro lado da cidade, onde era difícil chegar de automóvel a certas horas e a sair, uma rua de sentido único, com muito movimento. O [Fernando] Távora tinha o mesmo problema... Enfim, tínhamos problemas comuns, uma grande amizade, um grande convívio em viagens, etc. Era um grupo muito unido e um belo dia, um de nós, não sei quem — não fui eu —, mas alguém disse: “Porque não nos juntamos?”

E.S.M. — Fui eu, porque estava desesperado. Andei a ver escritórios, eram caríssimos e pensei que se arranjássemos um terreno e construíssemos ficava mais barato do que comprar um grande escritório. Era uma altura caríssima. Havia uma grande especulação nos anos [19]80.

A.S.V. — E viemos para aqui. Essa amizade mantém-se, com a ausência do Távora, infelizmente. As pessoas julgam que é uma espécie de ligação planeada. Por exemplo, eu moro no mesmo prédio que o Eduardo Souto de Moura, um prédio projectado por ele.

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Está bem projectado?
A.S.V. — Disso nunca suspeito.

E.S.M. — Todos lhe perguntam como é viver numa casa do Souto de Moura. Ele andou à procura de casa e achou que a minha era o melhor que andava por aí.

A.S.V. — Mas é um acaso tremendo. O Souto de Moura casou com uma sobrinha minha.

E.S.M. — Que conheci em Marrocos.

A.S.V. — E eu nem me apercebi, quando soube que a minha sobrinha ia casar com ele, caí... não fazia ideia.

E.S.M. — Conheci a minha mulher em Marrocos. Ela perguntou: “O que é que fazes?”; “Sou arquitecto”; “E trabalhas com quem?”; “Com o Siza”; “É meu tio.”

A.S.V. — Eu não tive aí nenhum contributo. E depois, quando precisei de casa, vagou um andar do prédio onde ele vivia. Tinha comprado outra, mas a minha sobrinha perguntou-me porque é que não ia para ali, que aquela praça era um sítio muito bom, e pronto, acabei por ir viver no mesmo prédio.

E.S.M. — São aquelas coisas que acontecem.

O sonho de um arquitecto não é viver numa casa projectada por ele próprio?
E.S.M. — Acho que não.

A.S.V. — Não, não.

E.S.M. — Só vejo defeitos na minha casa.

A.S.V. — Eu devia ser um péssimo promotor.

E.S.M. — Aquela casa era para uma arquitecta que não quis ser ela a fazer para ela. Não sonhava que iria lá viver.

A.S.V. — Fiz uma casa pequenina em Évora, na Malagueira. Mas em parte porque durante anos ia lá todas as semanas e estava farto de hotéis; ficava por vezes em casa de amigos, mas era pesado para eles. Era um terreno muito barato, fiz a casa para dormir quando ia lá, mas por outro lado para ensaiar certas coisas. Por exemplo, coisas que não eram aceites nas discussões com a cooperativa porque achavam mal, feio e tal. Fazia na casa para mim. Depois chamava-os e eles diziam: “Ah, afinal não é mau, não.” Também foi, por isso, experimental.

Qual é a dificuldade de desenhar a própria casa?
E.S.M. — A casa nasce de uma espécie de um confronto entre o cliente e o arquitecto, as nossas convicções e as dele. Desde que se seja educado e ligeiramente culto, as coisas vão avançando e sendo mediadas. A arquitectura nunca nasce de um raciocínio linear, o de que o arquitecto quer assim. Quando não há cliente, não há diálogo, um tipo está no espelho a falar como um tolinho. Não há censura.

A.S.V. — De certa maneira, é um acto de masoquismo. É necessário haver um cliente.

E.S.M. — Um bom cliente é meio caminho andado para uma obra. E depois é uma sensação estranhíssima, porque, para se fazer uma casa ou um bom projecto de arquitectura, é preciso uma certa alienação e ser-se esquizóide; ou seja, é preciso pensar que o mundo é aquela folha e aqueles dois riscos são uma parede. É preciso um treino! E depois o cliente vai lá para dentro. Quando somos nós, verificamos todos os defeitos da casa.

Tem esse confronto com a sua?
E.S.M. — Agora já não tenho, já me habituei e alterei algumas coisas. Mas na altura era um espanto; o meu quarto era um espanto quando percebi que tinha seis metros de vidro e umas portas de correr que não servem para nada, viradas a nascente. Eu corria uma porta com dois metros e 40 de altura e bastavam 80 centímetros para entrar uma luzerna de manhã, perguntava-me porque é que havia de abrir mais, estar a empurrar portas e portas para ter um clarão. Era um problema de coerência de linguagem. Fiz aquilo quando estava na Suíça, porque lá era preciso muita luz. Houve muitas coisas para alterar. Acho que os arquitectos deviam passar uma noite na casa que projectam. É um bom teste. As cozinhas, como é que se abrem os armários. A minha mulher disse que era uma estupidez, a cozinha. Quando se está a cozinhar, deve-se abrir os armários da direita todos para a direita, e os da esquerda todos para a esquerda. Eu fiz dois a dois, o que não dá jeito nenhum, mas pensava que dava... Mas disso ainda não estou convencido.

A.S.V. — Uma vez fui convidado para fazer uma casa em Paris; um senhor que tinha um grande terreno e chamou uma data de arquitectos, para construir lá. Éramos uns 20, todos mais ou menos conhecidos. Fomos visitar o terreno e depois distribuíram os lotes. Numa reunião, o dono de obra diz: “Meus senhores, têm plena liberdade, cada um tem X, não há programa, façam como entenderem, porque quero dar uma hipótese aos arquitectos para criarem o que realmente querem dizer, com toda a liberdade.” Nós começámos a olhar uns para os outros e um mais corajoso disse: “Há um problema, é que nós não temos essa liberdade e com essa liberdade não sabemos o que havemos de fazer.” Não é de generalizar, mas ali, realmente, foi unânime. No fundo, seria um jardim zoológico à vontade de cada um.

É por isso que o arquitecto Souto de Moura diz que a arquitectura não é uma arte?
E.S.M. — Essa é uma discussão eterna.

A.S.V. — A arte é uma conquista. A construção pode não ser arte e pode ser. Nunca discutimos isto tão profundamente, mas há muita gente que diz — olhe, o Nadir [Afonso] dizia isso — que a arquitectura não é arte porque tem uma função. Ele deixou a arquitectura porque não gostava.

E.S.M. — Fez bem.

A.S.V. — Não sem razão. Se tem uma função, já é impuro, já não é arte. Outro conceito é dizer que a qualidade, o carácter de arte é uma conquista, pode-se chegar lá ou não. O exemplo mais citado em relação à arquitectura não ser arte é do Adolf Loos [1870-1933]. É perceber que o Loos estava num momento e num meio em que lutava contra um decorativismo, e nessa luta, muito dura na Áustria dessa altura, interessava-lhe dizer que não é arte para se marcar bem e tornar claro o que se estava a fazer em geral em Viena. Mas se há arquitecturas que são obras de arte, para mim, sem dúvida, são as do Adolf Loos. Era uma estratégia de discussão.

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E.S.M. — Com a verdade me enganas, não é o que se diz?

A.S.V. — Reconheço que é outro motivo de arte; é um serviço claramente muito directo; e para um pintor ou para um escultor também é um serviço, mas é muito aberto.

Ser utilitário é o que faz a diferença?
E.S.M. — Tem de ser utilitário. Depois o belo pode chegar. 

A.S.V. — Mas não é só utilitário. Quando fazemos um projecto com determinada função, o objectivo é libertar-se dessa função. É preciso cumprir, mas chega um momento em que o salto é uma libertação em relação ao que é pequeno, em certa medida, daquela função.

Ou seja, não sendo à partida arte, pode chegar-se lá através da construção.
E.S.M. — Isso é o que eu digo. Não é à partida, mas pode. Quando o Picasso decide fazer à partida Les Demoiselles d’Avignon [1907], quer fazer arte, não quer fazer nada de útil para ninguém. É uma explanação dele próprio.

A.S.V. — Ele tinha um grande cliente, que era um cliente não directo: o povo espanhol no actuar da ditadura. 

E.S.M. — Não estou a falar da Guernica [1937]. Um selim e um guiador numa bicicleta não é arte, mas quando o Picasso faz um touro com o selim e o guiador já é arte. É a diferença. A arquitectura pode ser arte, basta virar tudo ao contrário.    

A.S.V. — Há uma coisa interessante que se nota há algum tempo: há muitos escultores a fazerem o que pode ser considerado arquitectura.

E.S.M. — Isso é uma moda. E há um cansaço.

Cansaço de arquitectura?
E.S.M. — Sim. Conheci um, o Donald Judd, na Suíça. Ele estava a falar com outro tipo sobre o Siza num hotel, eu ouvi e fui cumprimentar. Ele explicava que ia deixar de ser escultor e o outro a convencê-lo a vir ao Porto ver o Museu de Serralves. Depois perguntou-me se eu era arquitecto. Na altura não sabia se havia de continuar a ser arquitecto ou não; estava sem trabalho e era muito cansativo estar a dar aulas; gostava de ser fotógrafo, pensava que era uma actividade que não dependia de ninguém, e a arquitectura corria mal porque os outros falhavam. E ele disse: “Olhe, eu estou na arte e estou a pensar ao contrário. Tenho uma solidão quando estou em frente a uma chapa de alumínio; não sei se hei-de cortá-la em oito, se em sete, se em seis e se hei-de comprar uma chapa com 8 mm, com 4 ou com três e ninguém me diz nada. Na arquitectura há discussão. Não aguento mais este silêncio da escultura.” Foi uma das coisas que me fizeram continuar.

Mas há momentos de solidão na arquitectura.
E.S.M. — Há, mas é meia hora. É quando estamos a fazer os croquis.

Começa sempre pelo desenho?
[Olham um para o outro.]

A.S.V. — Começa por conhecer o que é que se tem de fazer e onde, e um pouco o contexto. Mas ao mesmo tempo já estou a fazer o desenho, desde o primeiro momento.

E.S.M. — Ao telefone.

A.S.V. — E às vezes são um disparate. Mas é necessário. É como tecer uma camisola, apanhar a ponta da meada para depois ir... Eu começo logo a desenhar. Ao mesmo tempo trabalha a razão e outra coisa em paralelo até que se fundem.

Apanhar o tom é depois?
E.S.M. — Acho que sim. As orquestras atrás do pano fazem ihhh ohhh pop piii, à procura do tom. O tom são os croquis, para encontrar o registo do que vai ser. O projecto é a procura do tom com que se há-de fazer a obra. 

Ouvi-vos aqui falar de que a arquitectura acabou. Acabou ou é apenas um desabafo?
E.S.M. — Está para acabar. Há outra disciplina tão ou mais interessante, com mais desafios, mas a arquitectura com que eu fui formado acabou, as condições mudaram. Não estou a dizer que no meu tempo é que era bom. Havia uma disciplina que tinha um suporte académico cujos pressupostos hoje não existem. O tempo, não há tempo. A formação clássica hoje não interessa, a estética, as proporções. Hoje é tudo legislação, tanto de pé-direito, tanto disto, tanto disto... Está a surgir uma nova disciplina que faz parte de um conjunto de disciplinas em que cada um trata do seu tema, depois existe um project manager que deveria coordenar tudo, mas que no fundo só coordena para ficar mais barato. E aquela coisa do autor que coordena tudo é cada vez mais difícil. As novas gerações já estão a responder a isso e bem, porque já foram educadas assim, já tiveram uma formação diferente, já viajaram, têm uma cultura global. Mas para mim é complicado e para o Siza que tem mais 20 anos deve ser muito mais.

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A.S.V. — No geral, é isto que ele disse. Este é um campo limitado, mas pode estar a haver uma reacção. O que se vai passar em África, por exemplo, e em muitos países da América do Sul. A dada altura, fez-se arquitectura com grande qualidade, artesanal, na Suíça, em Ticino. Quando aqui começava esta tendência de industrialização, em Ticino havia provavelmente o melhor trabalho artesanal na altura, isto há quantos anos?

E.S.M. — Trinta. Os operários eram portugueses.

Quando se debate a arquitectura hoje, o que deve estar em cima da mesa?
E.S.M. — Acho que deve haver um regresso às necessidades básicas. A arquitectura nasce para resolver problemas. As emoções e a estética vêm sempre depois. Nunca podem estar à partida. Penso que há sintomas numa nova geração de um certo regresso a uma simplicidade desprendida de um formalismo que houve nas últimas décadas. Nota-se essa frescura. 

O bem feito e o belo entram em que fase?
A.S.V. — Entram na arquitectura com A grande. Há uma ideia inicial que pode ser muito vaga, pode ser muito errada, depois é submetida à crítica que hoje tem vários intervenientes, porque é um trabalho de equipa em que a coordenação é a chave da materialização de qualidade. Por outro lado, também há muito a ideia de que o arquitecto faz uma imagem. Não é só ideologicamente, é mesmo a prática. Depois vai tudo para as mãos de um engenheiro que põe de pé o edifício. E o que é preciso para pôr de pé o edifício? São ideias relativamente a materiais, técnicas, etc. Depois vem o engenheiro do ar condicionado e mete umas grelhas, depois vem mais um especialista em não sei quê. Se esta coordenação não surge no início do projecto, é uma manta de retalhos ou o acumular de ideias feitas aplicadas automaticamente. De modo que a beleza vem da coordenação.

E.S.M. — O Renascimento dizia que a beleza era a relação das partes. Esta questão que o Siza está a falar de que se trabalha por fragmentos é verdade. A arquitectura deixou de ser uma disciplina unitária. Pode-se dizer que é humanista, ligada ao Renascimento, ou clássica. Antigamente, havia uma disciplina no curso que o Siza teve e eu não, que era a Coordenação das Três Artes não era?

A.S.V. — Integração das Artes. 

E isso era?
E.S.M. — Pintura, escultura e arquitectura.

A.S.V. — Vem muito da Bauhaus. 

E.S.M. — Agora é tudo fragmentado. Em França faço um esforço e não consigo falar com o engenheiro. Ele mete-me vigas no meio das salas e eu sou impedido, porque eles já sabem que não quero as vigas, e vai ficar mais caro e atrapalhar. É um processo de omissão de autor.

Estamos aqui com dois livros de autor. No guia de Álvaro Siza, escreve-se que nunca explicou convenientemente a sua relação com o território português, mesmo quando disse numa entrevista: “É natural que um caso típico como o meu se produza em Portugal.”
A.S.V. — É mesmo. Em muitas medidas... a arquitectura aqui em Portugal nos anos 50, 60 era muito forte. Era um artesanato de grande qualidade e ainda com um certo atraso em relação à introdução de novas tecnologias, novos materiais. Como quando falamos agora das coisas interessantes a acontecer em África e na América do Sul. Em Portugal, aconteceu na sequência do Inquérito à Arquitectura Popular [1955-1960] em que a contribuição do híbrido e do vernáculo foi bastante forte num período de crítica à arquitectura internacional. Há momentos históricos e geográficos que não são universais, são muito particulares. Posso ter dito isso por essa razão, pensando nessa fase que interessou muito na altura e teve uma grande influência na evolução da arquitectura em Portugal. Mas olhe, neste momento, onde trabalho bem é na China e na Coreia do Sul. 

Porquê?
A.S.V. — Porque há uma coisa muito importante: o dono da obra. Se o dono da obra quer qualidade hoje em dia e está interessado em promovê-la, pode-se obter qualidade. Seja privado ou não. O dono da obra é o arquitecto principal. Não falo propriamente em autoria. A autoria é função de múltiplas influências, experiências, etc. Não vejo o autor como alguém solitário, isolado. Falo da possibilidade de relacionar tudo e coordenar tudo.

É esse o desafio na arquitectura, o de coordenar?
A.S.V. — É o grande prazer.

E.S.M. — E há outra coisa muito importante, a permanência. Daí que as obras fora, por mais que se queira, nunca ficam tão boas como as obras portuguesas. Tem que ver com o acompanhamento. Ao acompanhar, muda-se muito. Pelo menos no meu caso e no do Siza também, acho.

A.S.V. — Quando digo que a arquitectura acabou, quero dizer que o arquitecto está a ser sucessivamente afastado de determinadas responsabilidades. Se há condições para o trabalho de equipa, não me importo nada de perder certas autoridades, mas quando a equipa não funciona é um desastre. Para citar um exemplo recente: acabei uma obra em França [Rennes]. Fui procurado para fazer o projecto, fiz, fui apoiado, aprovou-se, começa a construção e recebo uma carta que, em síntese, dizia: o que nós queremos é o seu talento, deixe-se lá dessas ideias de desenhar pormenores; deixe isso aos especialistas. Na prática, o que queriam dizer com “especialista” era o construtor. É o panorama muito geral na Europa; pelo menos na Europa que conheço.

O que respondeu?
A.S.V. — Que se era assim abandonava a obra, não se construía. E era num país, onde, se não assinasse, não se fazia. Há a ideia de dividir tudo: o arquitecto faz a imagem, depois outro faz a estrutura e o construtor tem a palavra final. Isso tem que ver com dinheiros. Economia por parte do promotor e lucro por parte do construtor. O resultado é este. Na Europa, só fiquei satisfeito na Suíça.

E.S.M. — A igreja em França, estive ontem a ver as fotografias e, desculpe, está bem feita!

A.S.V. — O construtor era bom. Depois, era uma igreja e o arcebispo apoiou-me. Escrevi a primeira carta ao arcebispo; dizia: “Abandono.” Mas os problemas vinham de uma equipa de gestão de obra que estava contra e queria era que o especialista, ou seja, o construtor, dissesse: “As janelas são assim e isto é assado.” É frequente, e não vi isso na Suíça. Não sei se é geral se não é, mas tenho essa experiência e você também.

E.S.M. — A Suíça é um paraíso, mas isso é outra coisa.

E é um paraíso porquê?
E.S.M. — Para os arquitectos. Trabalhámos em Basileia e cada arquitecto tinha um edifício. Era uma avenida e todos, os americanos, suecos, suíços, portugueses, espanhóis, a fina flor, disseram que nunca tiveram condições assim. Mesmo o [Frank] Gehry, que trabalha nos Estados Unidos com vénias, disse isso. Chegam-se a fazer maquetes à escala 1. Quer dizer, em tamanho real. Não é só dinheiro, também há uma cultura de boa vontade e de compreensão... Mas eu não queria que esta conversa ficasse pessimista. Neste momento, há coisas que estão a mudar muito rapidamente e o problema é encontrar uma energia, estão a surgir outras coisas muito interessantes. Mas a mudança é muito rápida e é preciso uma energia brutal. Estamos a correr em cima de um tapete.

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A.S.V. — Lá está, no caso da Suíça, havia um responsável da empresa empenhadíssimo na qualidade da arquitectura e dava todo o apoio.

E.S.M. — E ia até aos pormenores, até às letras. Em que material vai escrever. Eram uma espécie de príncipes do Renascimento. Eu imaginava os príncipes assim.

A.S.V. — O que eu queria era que não ficasse a ideia de que isto é em função de haver muito dinheiro.

E.S.M. — É empenho

A.S.V. — Ou de que a diferença está entre trabalhar para ricos e trabalhar para pobres. Não é esse o problema. Trabalhar com limitações económicas muito grandes não produz necessariamente falta de qualidade. 

E.S.M. — Sim. A França também tem dinheiro e as coisas não acontecem. (Acho que os arquitectos franceses vão-me matar.)

Há pouco falava da disciplina, Integração das Artes...
A.S.V. — Não deu resultados nenhuns porque a ideia era juntar um pintor, um escultor e um arquitecto, mas resultou mal. Normalmente, um edifício com uns quadros e umas esculturas. Nessa altura, no início da Bauhaus e dentro da própria escola, havia um grande convívio na Escola de Belas-Artes. Você já não teve.

E.S.M. — Ainda tive. O meu curso foi o último. Mas não concordo, acho que a escultura melhorou a arquitectura.

A.S.V. — Acho que funciona bem como inspiração. São artes da mesma família.

E.S.M. — Vou-lhe dar um exemplo que é maravilhoso. O Siza fez a [casa de chá da] Boa Nova, que toda a gente conhece, muito bonito e o bar só tinha um quadro, um cavalo do Ângelo [de Sousa], lembra-se?

A.S.V. — Ahh, sim, sim.

E.S.M. — E era uma coisa magnética. A sala é toda branca, havia o mar lá fora e só tinha um quadro. Era um cavalo lindo de morrer. Um dia tiraram [o quadro] e aquilo funcionou como o cair de um dente.

A.S.V. — E retiraram mais. Não tiraram nada à arquitectura, simplesmente aquilo tinha um restaurante e uma sala de chá. Era um sítio belíssimo, a gente podia ir lá tomar um café e aquela vista. E agora não, está fechado. Só vai ao bar quem janta e se uma pessoa quer ir lá beber um café e gozar a visita não deixam. Além disso, posteriormente à abertura, fez-se o mobiliário e não há muito tempo foi substituído.

E.S.M. — Aquilo é monumento nacional.

Há obras suas que já foram demolidas, não existem fisicamente.
E.S.M. — Há?

A.S.V. — Há. Que me lembre era um armazém, ardeu e depois foi demolido. É natural essa mobilidade da cidade. Quando há demolição, pronto, acabou. O que custa é ver alterações bárbaras, ou então uma espécie de meio-termo, que é o caso da Boa Nova, que está lá como eu desenhei, mas no funcionamento eu não estou lá agora. Aborrece-me.

No seu caso, há Braga a desgostá-lo.
E.S.M. — Tinha um café no mercado de Braga que foi demolido e transformado numa discoteca horrível. A discoteca é muito feia e o café era bonito porque era uma antiga casa agrícola com uma eira. Eu gostava, e sem ninguém dizer nada, um caterpílar deitou tudo abaixo. Depois tenho uma experiência macabra, quis ser eu a demolir o mercado que ia ser demolido. Preferi demoli-lo, manipulando o que me interessava que ficasse e deu origem depois a uma escola de dança e música que fiz. E agora o estádio [do Sporting Clube de Braga], onde estão a furar as lajes todas, a meter elevadores e a fazer cafés; e da sala de passagem de uma bancada para outra fizeram um parque de estacionamento.

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Essa obra é a sua grande paixão.
E.S.M. — Acho que foi a obra mais completa, uma obra que só se tem uma vez na vida. Desde manipular a paisagem, plantar 600 árvores, mudar linhas de água, até desenhar as portas e os urinóis. Desenhei tudo. Era bastante coerente, para o bem e para o mal. Talvez seja a minha obra mais publicada, a mais premiada, a mais falada e, sem dizerem nada, estão a partir tudo.

E o que pode fazer?
E.S.M. — Insultei-os, que é a melhor maneira. Perco os brandos costumes, ameacei-os de ir para tribunal e eles disseram que iam demolir.

A.S.V. — Mas essas asneiras vão ser refeitas.

E.S.M. — Eles prometeram que sim, mas já marcaram três reuniões e faltaram às três. Mas isso é o dia-a-dia. A Alfândega [do Porto] é monumento nacional, trabalhei lá 12 anos ou 13 a fazer o Museu dos Transportes, agora o museu acabou porque dá prejuízo, e vão instalar um sistema de ar condicionado quando eu fiz um no sótão, com um sistema sofisticado de filtragem para não fazer barulho. Agora vão furar o telhado numas salas. Portanto, da encosta de Miragaia quando se olhar para a Alfândega, um edifício glorioso, os telhados e pátios vão ficar cheios de abcessos. Já escrevi uma carta.

A.S.V. — Mas para que é o ar condicionado?

E.S.M. — Para se alugarem salas e fazerem eventos.

A.S.V. — Fazem sem ar condicionado, abrem as janelas. A obra que me está agora a agradar é uma pequena capela no Algarve. Não tem nem electricidade, nem água, nem esgotos. É uma maravilha.

E.S.M. — Também estou a fazer uma igreja com terra no chão, erva.

Onde?
E.S.M. — Em Veneza, mas também não tem nada, nem tecto.   

A.S.V. — Mas há coisas que são exageradas. Na Boa Nova já há uns 20 anos que foram feitas umas pinturas e quiseram ar condicionado. É um disparate fazer aqui ar condicionado. Aqui é à beira-mar. Abre-se a janela e é fantástico. Para que é que puseram ar condicionado?! O facto é que é obrigatório, num edifício como um hotel ou restaurante com mais de X metros quadrados, ter ar condicionado. Há sítios onde não é preciso para nada, é uma chatice e em geral não funciona porque ao fim do mês a conta é grande e fecha-se o ar.

E.S.M. — O Bouro [Pousada] tem paredes de um metro e meio e por ser uma pousada de cinco estrelas tem de ter ar condicionado. Acredito que de Inverno seja preciso aquecer Bouro, porque é um frio de rachar. Mas será preciso arrefecer Bouro?

Sendo ou não arte, o vosso trabalho é muito inspirado pela arte. Nesta parede estão referências. Thomas Bernhard, Miles Davis...
E.S.M. — Estas são referências minhas.

Como é que as outras artes vos contaminam na criação?
A.S.V. — São da mesma família. Cinema, a literatura não é bem da mesma família, mas é um parente muito próximo, a pintura, escultura, ballet, música, têm tanta coisa comum... Quando se está a projectar, a determinada altura tem de se ter claro como é entrar naquele edifício, ir ao quarto ou à sala comum, ao quarto de banho, o que seja. O que fazem os cineastas? A câmara segue o espaço com a pessoa, depois faz um travelling, há um ritmo e uma ligação com os movimentos nos percursos e na arquitectura é a mesma coisa. Há uma influência.

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E.S.M. — Não é directa. Olhando para estes dois: este [aponta Miles Davis] tem um efeito surpresa, as pessoas pensam que vai acabar de uma maneira, baixar, e ele sobe [imita um trompete]. Muitas vezes quando trabalhava com o Siza era o mesmo. Isto devia ser assim, mas vamos fazer assim. E lembro-me imensas vezes do Miles Davis, que faz o mesmo. É o efeito de musicalidade do texto. 

A.S.V. — E o efeito de luz que no cinema também há. A penumbra, a luz forte. Para nós, é muito importante.

E.S.M. — Depois de ler Elogio da Sombra [de Junichiro Tanizaki], comecei a filtrar o vidro; antigamente fazia tudo em vidro e estava resolvido. Depois comecei a ler o efeito da penumbra e lembro-me de que comecei a fazer portadas, filtros, estores e a diminuir o vidro. Já funcionava ao contrário. Eram os clientes a dizer que queriam tudo em vidro, “você é o arquitecto que faz tudo em vidro”, e eu “não, eu agora estou muito cansado”. Estou a vir para trás e as pessoas não querem.

A.S.V. — Veja as casas árabes, os palácios... são uma coisa extraordinária. No uso da casa precisamos tanto de zonas com luz muito forte como de penumbra, de descanso, sossego, tranquilidade, etc. Esse doseamento da luz é importantíssimo. Encontra isso no cinema e encontra na música; aí é dado pelo som, não pela luz.

Disse numa entrevista que as janelas são um problema.
A.S.V. — São difíceis.

E.S.M. — É o mais difícil que há.

A.S.V. — Definir onde há janelas. Já me disseram uma vez: “Como é que este arquitecto ainda usa janelas!” A janela tem de se definir jogando com o interior e com o exterior. Só com o exterior é um edifício em composição, mas falta qualquer coisa. Nas casas do Adolf Loos... eu via os desenhos do Loos e não gostava muito e quando visitei a primeira casa em Praga é que entendi. Aquela ligação mágica entre janelas aparentemente dispersas e desorganizadas mas que tinham um mágico ligado, não sendo composição, aquela legitimidade e aquela necessidade da janela aqui e ali, como ela jogava em conjunto, vinha de dentro, dos percursos interiores. Por exemplo, hotéis. Não tenho nada contra os decoradores. Mas, ao desenhar um projecto, necessariamente a gente pensa no interior porque precisa do interior para o exterior e depois vem o interiorista e faz o arranjo interior... é terrível!          

Quando desenham uma casa, não imaginam como será viver lá dentro?
E.S.M. — A vida muda todos os dias [risos]. Já perdi essa inocência, não vale a pena, é tempo perdido. Hoje passei o dia com uma casa que fiz há muitos anos, foi comprada, renovei-a e veio cá o cliente pedir-me para escolher os móveis. Disse que só faria meia dúzia de móveis que acho importantes para a casa e o resto que escolha ele, tem de ter móveis anónimos e antigos, mas tudo misturado. Não vou fazer uma loja!

A.S.V. — Tem de haver espaço para haver uma relação. Não é impor. Há um diálogo. Se é uma casa para uma família.

Já falaram do belo. O que é feio em arquitectura?
A.S.V. — Feio? Bonito também não é bom. 

E.S.M. — O feio é o contranatura. Aquilo que não é natural — não tem nada que ver com a natureza nem com a ecologia. Olha-se e não é natural.

É o efeito surpresa contrário ao provocado por Miles Davis?
E.S.M. — É. Esse efeito é quando se percebe a regra e depois tudo leva àquilo e aderimos pela surpresa. Está tudo bem. E o feio é desconforme. Não vem a propósito.

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A.S.V. — E o bonito também é um bocadinho desconforme.

E.S.M. — Não, isso é o elegante. O bonito, eu gosto. O elegante é que é perigoso.

Elegante?
E.S.M. — Sim, o elegante é o janota. O Siza às vezes está a fazer um desenho e diz, “não, não, é muito janota”.

A.S.V. — Quando dizia que o bonito também não é bom, estava a pensar no janota. 

Havia muita discussão quando trabalhavam lado a lado?
E.S.M. — Não. Era aos poucos. Era assim: “Ahh, nanana, ohoh”, “porque é que não?”; “nananan”...

A.S.V. — Há uma história que eu gosto. Acerca do Serpentine Gallery Pavillion [de Siza e Souto de Moura, 2005, em Arup]. Há um amigo que vai falar com o Eduardo e diz, “isto não parece seu!” E o Eduardo: “Fiz com o Siza.” Mais ou menos na mesma altura, um amigo vem ter comigo e diz: “A obra não parece tua!”; “trabalhei com o Souto de Moura”. Se parecesse minha, para que é que eu ia trabalhar com o Souto de Moura?

Como é o vosso método conjunto?
E.S.M. — Nós temos os papéis e desenhamos um em cima do desenho do outro. Não fazemos cerimónia. [Exemplifica sobrepondo desenhos na folha] Às vezes até vou primeiro ver os sítios e explico com um desenho, e o Siza vem e diz, “mas também podia ser assim” e desenha em cima do meu. E eu digo “não, assim não pode, está ali uma árvore” e redesenho... no Serpentine, temos desenhos dele e meus sobrepostos. Não há nada para ofender, não há nada para provar. 

A.S.V. — Trabalhar em conjunto assim é fantástico desde que não haja cerimónia.

Não fazem cerimónia?
E.S.M. — Nenhuma. Ninguém se ofende. Às vezes há umas piadas irónicas que eu acho graça. Se há uma espécie de uma discussão interna, o Siza diz: “Isso é muito neoplástico, Eduardo.”

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Um e outro têm maneiras de ser muito distintas.
E.S.M. — Acho que sim, felizmente. 

A.S.V. — Isso é engraçado.

Os dois Pritzker portugueses... É verdade que quando recebeu a notícia do Pritzker correu a dizer ao Siza?
A.S.V. — Não foi a correr. Foi pausadamente.

E.S.M. — Telefonei para casa, disse aos colaboradores e depois fui lá acima. “Afinal ganhei isto.”

A.S.V. — E eu fiquei muito chateado; eu era o único e pensei, isto está a banalizar-se!

E.S.M. — Ahahahaha

Vê Siza Vieira como um mestre?
E.S.M. — Não. Ele ensinou-me muito, mas não é mestre. É uma espécie de osmose.

A.S.V. — Nem eu [olho] para ele como discípulo. Aliás, nunca fui professor do Eduardo.

E.S.M. — O Távora marcou-me bastante, na escola como professor — um professor excepcional. Não era um erudito, era uma pessoa que gesticulava. Dizia: “A arquitectura é vida.”

Acha uma boa definição de arquitectura?
E.S.M. — É, mas bem feita. Não é má vida.

A.S.V. — Há uma [história] engraçada. Nós fomos os três para a Colômbia e o Távora numa mesa-redonda diz: “Estamos na continuidade. O Siza é dez anos mais novo do que eu e faz anos a 25 de Junho e o Eduardo faz a 25 de Julho e é dez anos mais novo do que o Siza”, e o Eduardo dá um pulo e diz: “Dez anos? 20!” E comenta o Távora: “Já me lixou o raciocínio.” Ele tinha ali uma cadência de gerações.

E.S.M. — O Siza manda umas piadas. Quando fiz um edifício com uns ferros: “Vá lá buscar o seu Pompidouzinho!”

O Pompidou é um ponto de discórdia entre vós, não é?
E.S.M. — Eu gosto muito do Pompidou. O Siza acho que não gosta.

A.S.V. — Agora gosto mais. [risos] Acho que era muito novo quando disse que não gostava. Não era bem não gostar. Tinha lá estado antes do Pompidou e aquela zona era fantástica. Lembrava-me de ir lá comer a sopa de cebola, que era também fantástica.

E.S.M. — Uma vez, o Siza, a propósito da obra de um arquitecto de que não vou dizer o nome, perguntou-me se gostava da obra ele. Disse que sim. E o comentário: “Desse tipo? Ele faz os elevadores por fora.”

Qual é a obra de Souto de Moura de que mais gosta?
A.S.V. — Gosto de todas.

E.S.M. — Ihhh... Não.

A.S.V. — Gosto, ele agora já está com a mão esquerda, mas a mais fantástica é o estádio [do Braga] porque é a oportunidade de trabalhar com a natureza. Transformar a natureza, respeitando-a.

E qual a de Siza Viera de que gosta mais?
E.S.M. — É a piscina de Leça. Tem quilómetros. A piscina é um tanque que se transforma num recinto que se transforma numa geografia que é a praia toda. É uma coisa mágica.

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Uma obra e a outra têm que ver com a natureza.
E.S.M. — Ultrapassam o objecto do design específico. A grande qualidade da arquitectura é o edifício-objecto ultrapassar a sua função específica e estabelecer novas relações e desenvolver a envolvente.

A.S.V. — Leça tem uma coisa muito bonita e gosto que você goste da piscina de Leça. Há uma coisa em comum, sendo completamente diferente: é que a arquitectura é a arquitectura, a natureza é natureza, e não se pode querer fundir [arquitectura] com a natureza. Há uma relação de diálogo que mantém a autonomia do que é natureza, do que é arquitectura. Funcionam porque são tão diferentes.

Souto de Moura costuma citar aí o Coyote (1974), de Joseph Beuys. A natureza é feroz?
E.S.M. — Cito a propósito do património. O património é desgastante e é um animal que precisa de ser domado. Quando fazemos uma obra nova, temos o vazio e no património temos um programa e o animal não recebe o programa. Esta ideia de fazer hotéis nos mosteiros é uma coisa tola porque há a mania de que os quartos das celas dos frades dão para fazer quartos cinco estrelas. Não é nada. Mas a piscina de Leça é uma obra lindíssima. Há outra obra de que gosto muito do Siza. Se pedirem para caracterizar a arquitectura do Siza, é dificílimo, mas há uma obra que é a igreja do Marco [de Canaveses]. É uma igreja portuguesa. Eu quando ia à missa na aldeia lembro-me do soalho e havia as mulheres sentadas no chão, era forrada a azulejo, tinha o coro todo desafinado, os homens atrás e uma porta grande de onde entravam e saíam para ir fumar. É tudo português. E se for a ver reconheço ali três ou quatro arquitectos: a fachada do Loos; o interior e a parede esquerda inclinada, que é o pavilhão da Finlândia do Alvar Aalto; a janela, do Le Corbusier; e a proporção, do La Tourette. E, no entanto, é uma igreja portuguesa. Isto — e é o que eu acho o segredo da arquitectura dele e nunca falei assim — desmistifica esta coisa do local, regional, universal. Portanto, quanto mais local, mais universal. É o exemplo de que a arquitectura se cruza e é reconhecível. Não sei se concorda.

A.S.V. — Oh, um comentário tão bom tenho de concordar. 

E.S.M. — Mas está lá, não inventei, Siza. O ambiente é todo português. O coro com a entrada pelo lado. O coro em cima, a pia baptismal à esquerda. O soalho não é encerado, era lavado com sabão amarelo. Os azulejos, a via sacra nos azulejos.

A.S.V. — Isso foi muito o resultado da conversa com um teólogo. Havia três teólogos aqui do Porto e o padre, um tipo inteligentíssimo. Foi muito interessante, gostei muito de fazer aquela igreja. Nas discussões, os teólogos nunca chegavam a um acordo. Porque o Concílio Vaticano II mudou tudo em relação à arquitectura, a organização espacial, séculos de arquitectura sublime servem pouco quando o padre se vira para a assembleia. O baptistério, o espaço da pia baptismal... um queria que fosse do lado esquerdo antes de entrar porque dizia que o católico para ser recebido tem de ser baptizado, portanto tem de ser antes de entrar na assembleia. Outro dizia que devia ser junto ao altar para toda a assembleia, que é uma ideia de concílio, de democracia. Não concordavam. No fundo, hoje os projectos nas igrejas são sempre um balanço não tão estável como isso entre os séculos de igrejas maravilhosas e uma alteração profunda. O que aconteceu foi não querer abandonar nem uma nem outro. Do ponto de vista da distribuição de móveis, é muito conservadora e, aliás, foi criticada por isso.

Como escolheram as obras que fazem parte deste guia.
E.S.M. — Comigo foi simples, não escolhi. Foram a minha filha e a pessoa que trata das publicações. Elas já sabem. Há umas que não correram tão bem e não convém mostrar as misérias.

A.S.V. — A mim foi uma proposta que me fizeram e discutimos algumas coisas. 

Revê o principal da obra de Siza Vieira no guia?
E.S.M. — A obra do Siza é infindável. Há muitas coisas que não estão publicadas e eu conheço, e há coisas que deviam ser fotografadas que são pormenores para nós muito importantes, são soluções quase impossíveis de fazer, andam gerações a resolver aquilo e não se consegue e ele conseguiu. Mas isso deveria ser um livro diferente, de excepções. Como o [arquitecto] Manuel Vicente. Gostei pela coragem. Os arquitectos têm de ganhar dinheiro e fazer, por vezes, coisas que não são tão boas. Quando era aluno, ele [Manuel Vicente] foi às Belas-Artes e fez uma conferência a que chamou “Excepções de Verão” e mostrou umas coisas dele assim não tão airosas.

Teria essa coragem?
E.S.M. — Acho que sim, mas tinha de

ser mais velho. Acho que posso ter uma
certa snobeira. Ainda estou à defesa.

A.S.V. — Perguntam-me às vezes e eu não sei dizer.

Não consegue dizer as mais falhadas?
A.S.V. — Não considero nenhuma falhada [risos], a não ser as que foram demolidas, e estragadas, etc., mas isso não depende de mim. Não quer dizer que ache todas grande arquitectura. Por exemplo, a primeira obra... 

E.S.M. — Essa gosta imenso. Foi o primeiro amor. 

A.S.V. — Pois, porque foi a primeira. Aprendi muito. São três casas. Todos os dias ia à obra. Tenho dela grandes recordações. Não acho que seja uma bela obra, mas não a ponho de parte por outra que pode ser considerada mais bonita ou bem realizada. Lembro que um cliente queria uma grande varanda porque ali era o Senhor de Matosinhos. Eu não queria, mas ele insistiu e eu lá fiz a varanda. E no dia do Senhor de Matosinhos toda a família estava a assistir. Quem passava nessa altura eram os grupos das mulheres das fábricas, ainda era o período áureo das conservas. Elas passaram, pararam e começaram a cantar uma moda qualquer da altura em que a letra era “as casas mais feias de Matosinhos” e a família foi toda para dentro.

Há alguma pergunta que queiram fazer um ao outro?
E.S.M. — Ah, tenho uma. Vi ontem a igreja de Rennes [obra de Siza recém-inaugurada], em França. Fez-me impressão ver a igreja no primeiro piso.

A.S.V. — Isso estava no programa. Queriam ter em baixo o centro paroquial. Não foi decisão minha.

E.S.M. — Não lhe faz impressão?

A.S.V. — Nunca tinha visto. Sei que tinha de ter dois pisos.   

A.S.V. — Tenho uma pergunta: que tal vai o teatro de França [projecto de Souto de Moura em Clermont-Ferrand]? 

E.S.M. — É muito complicado. É tão triste. Ganhei o concurso e foi na altura em que saíram livros a dizer que o Le Corbusier era fascista, que tinha colaborado com o Governo de [Philippe] Pétain, e o raciocínio primário foi associar a janela do Corbusier, chamada fenêtre en longueur, ao fascismo e eu tinha as janelas assim e os monumentos de França pediram: “Ganhou, muitos parabéns, mas mude as janelas que nós não gostamos de fenêtre en longueur.”

A.S.V. — Tenho outra pergunta: conhece o poeta Robert Kaufman [1958-86]?

E.S.M. — Não.

A.S.V. — Nem eu conhecia. Ontem vi na [RTP] 2 um documentário sobre esse poeta americano, confesso a minha ignorância, é absolutamente extraordinário.

E.S.M. — Como é que se escreve?

A.S.V. — Assim...

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