Russos dão luz verde a cessar-fogo na Síria, falta saber quando começa
Conselho de Segurança da ONU aprovou por unanimidade a suspensão das hostilidades em todo o território. Bombardeamentos da última semana tiraram a vida a pelo menos 500 pessoas
Minutos depois de o Conselho de Segurança das Nações Unidas ter aprovado por unanimidade a imposição de um cessar-fogo de 30 dias na Síria, o Observatório Sírio para os Direitos Humanos comunicava um novo raide aéreo por cima de Shifouniyeh, em Ghouta Oriental, levado a cabo pelas forças de Bashar al-Assad e os seus aliados russos.
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Minutos depois de o Conselho de Segurança das Nações Unidas ter aprovado por unanimidade a imposição de um cessar-fogo de 30 dias na Síria, o Observatório Sírio para os Direitos Humanos comunicava um novo raide aéreo por cima de Shifouniyeh, em Ghouta Oriental, levado a cabo pelas forças de Bashar al-Assad e os seus aliados russos.
Ao contrário do que possa parecer, o relato desta organização com sede no Reino Unido e observadores no terreno foi condizente com o que se passou este sábado na sede da organização mundial, em Nova Iorque. Isto porque embora a resolução aprovada implicasse a suspensão “sem demora” das hostilidades, a sua entrada em vigor foi tudo menos clara, conforme ficou comprovado na troca de palavras entre os representantes dos Estados Unidos e Rússia.
A embaixadora norte-americana, Nikki Hailey, exigiu que a suspensão das hostilidades tivesse efeito imediato, mas o representante russo, Vassili Nebenzya, assegurou que tal só será possível mediante “compromissos concretos” com as facções opositoras a Assad. A imposição do prazo de 72 horas para o início do cessar-fogo, que constava na proposta inicial, foi mesmo retirada do texto inicialmente redigido pela Suécia e pelo Kuwait.
A decisão do Conselho de Segurança acontece quase uma semana depois do início dos violentos bombardeamentos sobre os enclaves rebeldes nos arredores de Damasco e tem como principal objectivo permitir a entrada das equipas de ajuda humanitária nos territórios em conflito – incluindo a região de Ghouta Oriental – e a retirada de todos os feridos.
A votação tinha sido alvo de sucessivos adiamentos – o último dos quais na sexta-feira – muito por culpa das exigências de Moscovo a favor da não-aplicação da trégua contra os combatentes do grupo jihadista Daesh, da Frente Al-Nusra e de outros grupos “que estão a bombardear os bairros residenciais” da capital da Síria, Damasco. A pressão russa deu resultado e a resolução excluiu os “indivíduos, grupos, empresas e entidades” associadas àqueles grupos.
A demora na procura de um compromisso no Conselho de Segurança apenas contribuiu para prolongar a chuva de bombas sobre as proximidades de Damasco controladas pela oposição ao regime de Assad até ao próprio dia da aprovação da resolução.
Este sábado o Observatório Sírio registou a ocorrência de pelo menos cinco raides aéreos contra Douma, Harasta, Mesraba, Hammouriyeh e meia dúzia de outras vilas e aldeias em Goutha, onde se calcula habitarem perto de 400 mil pessoas. A organização referiu que os ataques foram perpetrados por aviões russos e sírios, mas Moscovo nega qualquer envolvimento directo.
De acordo com o Observatório, os bombardeamentos já mataram cerca de 500 civis – incluindo 126 crianças – e deixaram feridos mais de 2400. Do número total de mortes, os Capacetes Brancos – com são conhecidos os voluntários da Defesa Civil Síria – calculam que pelo menos 350 ocorreram nos primeiros quatro dias do ataque, embora admitam estar a fazer uma contabilização por baixo.
“Talvez sejam muitos mais. Não conseguimos contar o número de mártires ontem [sexta-feira] ou no dia anterior porque os aviões de guerra estão a percorrer os céus”, conta à Reuters um porta-voz do grupo, Siraj Mahmoud.
Milhares de civis encontram-se escondidos no meio dos destroços, transformados em autênticos bunkers, e contam os minutos para a chegada da ajuda humanitária, numa altura em que a maioria da região está sem acesso a energia e água potável e os medicamentos e alimentos básicos escasseiam.
As crianças, contam as testemunhas, são os que mais sofrem. “A situação é dramática. Temos aqui um número elevado de crianças entre os seis meses e os cinco anos sem nada para comer”, relata um activista no local, citado pelo Guardian, que revela que entre os mais novos há quem “não coma há dois dias consecutivos”.
O massacre naquela região cercada pelas forças de Assad desde 2013 espoletou um intenso coro de críticas junto da comunidade internacional contra Moscovo – com Estados Unidos, Alemanha, França e Turquia à cabeça – mas os russos, a par dos seus aliados sírios, insistiram na ONU que os bombardeamentos apenas têm como alvo os grupos terroristas islâmicos que se escondem em Ghouta Oriental e que, acusam, têm liderado ataques com morteiros contra Damasco e utilizado civis como escudos humanos nas suas acções agressivas.
Os rebeldes que combatem na Síria são um grupo bastante heterógeno, composto pelas mais variadas facções, muitas delas de índole islamista. Com dez a 15 mil membros, a coligação Jaysh al-Islam é o grupo maior, logo seguido pela Faylaq al-Rahman, aliada do Exército Livre da Síria e, em tempos, da Hayat Tahrir al-Sham, um grupo liderado pela Frente Al-Nusra, nascida na Al-Qaeda.
Pese a aprovação da resolução, os avanços e recuos dos últimos dias e a falta de clareza quanto ao início concreto do cessar-fogo, voltaram a por a nu as dificuldades das Nações Unidas e particularmente dos Estados que compõem o Conselho de Segurança, em chegar a um compromisso que possa trazer paz a um território que se encontra em guerra civil há sete longos anos.
François Delatter, embaixador francês na ONU, confessou que a ineptidão da organização em ajudar a população síria coloca em causa a sua própria credibilidade e apela a uma concertação de esforços, envolvendo todos os actores, que possa servir como demonstrações de força da comunidade internacional. “A tragédia síria não pode também tornar-se no cemitério das Nações Unidas”, declarou à BBC.