Ouviram-se tambores (e la-la-las) ao longe na Berlinale nº 68

Balanço possível de um festival que se esperava em lume brando e acabou por ser bem mais quente do que prometia, abrindo ao som dos tambores japoneses de Ilha dos Cães.

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A Árvore, de André Gil da Mata, foi bem recebido em Berlim DR

A Berlinale de 2018 começou ao som dos tambores taiko tradicionais japoneses que propulsionam Ilha dos Cães de Wes Anderson, o filme de abertura da 68.ª edição do festival alemão. E foi a música que nos continuou a ficar no ouvido ao longo de dez dias de filmes bons, maus, mas maioritariamente assim-assim. Foi a música que traçou o fio condutor que foi de um filme a outro, que ligou os tambores taiko de Anderson à palavra de ordem “melancolia” que recorria, na voz de Blixa Bargeld dos Einstürzende Neubauten, na banda-sonora de Touch Me Not de Adina Pintilie; mas também ao “la la la” inquietante e opressivo que percorreu o requiem pelas Filipinas de Lav Diaz Season of the Devil, e à valsa do Danúbio Azul de Strauss que reconhecemos do ballet sideral do 2001 de Kubrick e que ilustrou os solos de empilhadora de In den Gängen de Thomas Stuber.

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A Berlinale de 2018 começou ao som dos tambores taiko tradicionais japoneses que propulsionam Ilha dos Cães de Wes Anderson, o filme de abertura da 68.ª edição do festival alemão. E foi a música que nos continuou a ficar no ouvido ao longo de dez dias de filmes bons, maus, mas maioritariamente assim-assim. Foi a música que traçou o fio condutor que foi de um filme a outro, que ligou os tambores taiko de Anderson à palavra de ordem “melancolia” que recorria, na voz de Blixa Bargeld dos Einstürzende Neubauten, na banda-sonora de Touch Me Not de Adina Pintilie; mas também ao “la la la” inquietante e opressivo que percorreu o requiem pelas Filipinas de Lav Diaz Season of the Devil, e à valsa do Danúbio Azul de Strauss que reconhecemos do ballet sideral do 2001 de Kubrick e que ilustrou os solos de empilhadora de In den Gängen de Thomas Stuber.

Chegados, então, ao ponto final de uma Berlinale que começou resmungona e contestada... afinal, "tudo como dantes quartel general em Abrantes". Ou seja: se à partida as expectativas iam baixas, à chegada a competição oficial provou trazer uma quota-parte de surpresas estimulantes e mostrou alguma vontade de arriscar com apostas (nem sempre conseguidas) em filmes mais “fora do baralho”. O que não invalidou a sensação de um festival “a meio gás” em termos de entusiasmo, tanto para a imprensa presente como para o público (também houve menos grandes estrelas nas passadeiras vermelhas do Berlinale Palast). Apesar dos 275 mil ingressos já vendidos a poucos dias do fim, as tradicionais filas intermináveis nas bilheteiras centrais não existiram (em parte, mas não apenas devido à ascensão das bilheteiras online).

Berlim tem um problema de calendário – demasiado tarde para os americanos, que têm antes Toronto e os Óscares, e demasiado cedo para os europeus, que preferem esperar por Cannes sobretudo face aos últimos ans –, mas contornou-o com algum jeito este ano. Arriscou trazer à competição alguns filmes que fariam mais sentido em paralelas como o Forum (ainda e sempre montra do melhor e mais arrojado cinema novo que se faz hoje no mundo), como Touch Me Not, Season of the Devil, Damsel dos irmãos Zellner ou The Real Estate da dupla sueca formada por Axel Petersén e Mans Mansson – estes dois últimos arrasados selvaticamente pela crítica como indignos de estar em competição, a par das três horas de Mein Bruder heisst Robert und ist ein Idiot de Phillip Gröning.

Evidentemente, Berlim é um festival “do tema”, mas é importante que acima do tema haja cinema. Isso ficou bem provado no melhor filme que vimos a concurso, Transit do alemão Christian Petzold, que transpõe o romance de Anna Seghers sobre refugiados em fuga ao regime nazi durante a Segunda Guerra Mundial para um “tempo de ninguém” aparentemente contemporâneo, mas que coloca essa dimensão histórica num plano secundário para dar prioridade às personagens, às suas emoções, às suas experiências. Em suma, tudo o que o norueguês Erik Poppe não faz em Utoya 22. juli, ao encenar o massacre de Utoya em plano único e tempo real como puro virtuosismo de câmara, como se a recriação da experiência fosse suficiente para sentirmos o terror existencial (não é, e tem algo de desagradavelmente voyeurista). Ou tudo o que a polaca Malgorzata Szumowska não faz em Mug, ao carregar a traço grosso, e com muitos truques para encher a vista, na metáfora do martírio e da xenofobia com a história de um metaleiro provincial que um acidente desfigura e se torna no pária da aldeia.

Primazia às actrizes

Num ano em que a indústria do cinema tem sido abalada pelos escândalos sexuais, e em que Berlim se quis colar à frase #MeToo, o que se confirmou é que o cinema mundial continua a dar a primazia às actrizes e a dar-lhes papéis onde podem ferrar o dente. Habitualmente há muito mais grandes interpretações femininas do que masculinas em Berlim, e este ano era, como soe dizer-se, “cada tiro cada melro”. Talvez nenhuma, para nós, tenha sido tão comovente como Marie Bäumer possuída por Romy Schneider no simpático mas inofensivo 3 Tage in Quiberon de Emily Atef, mas se é de mulheres de armas que estamos à procura podemos falar de Claire Foy no Unsane de Soderbergh, de Helena Howard em Madeline’s Madeline de Josephine Decker, de Andrea Berntzen em Utoya 22. juli, de Alba Rohrwacher e Valeria Golino no esquecível Figlia Mia de Laura Bispuri, de Ana Brun em Las Herederas de Marcelo Martinessi. Sem esquecer, claro, La Huppert, impecável como sempre no Eva de Benoît Jacquot.

O realizador francês, aliás, abordou num encontro com a imprensa a revolta das actrizes com uma resposta bem curiosa: “Ninguém fez mais pela glorificação e pela assertividade da mulher moderna do que as estrelas hollywoodianas dos anos 1940. Pensem em Katharine Hepburn, em Bette Davis...” “Homem” do festival houve só um, Franz Rogowski, espécie de Joaquin Phoenix alemão que brilhou em dois filmes muito diferentes – como um refugiado pensativo em Transit e como um empregado de supermercado a refazer a sua vida em In den Gängen.

E os portugueses no meio disto? As três longas estavam todas no Forum, secção não competitiva cujos critérios de selecção garantem desde logo o interesse dos programadores e dos críticos internacionais. Mas foi Drvo (A Árvore), de André Gil Mata, que concentrou as atenções, com reacções entusiasmadas como a de Jean-Michel Frodon, crítico da Slate francesa e ex-director dos Cahiers du Cinéma, para quem o filme é “um verdadeiro tesouro revelando um cineasta que, literalmente, escreve com a câmara”; e o programador canadiano Adam Cook cita Tarkovski e a sua ideia de “esculpir com o tempo” a propósito do filme.

Agora, resta saber a decisão do júri. Por aqui, levamos de Berlim um punhado de grandes filmes: Transit, Grass de Hong Sang-soo, Dovlatov de Alexei German Jr., Touch Me Not, o delicioso Museo de Alonso Ruizpalacios, Season of the Devil, Unsane… Às tantas, valeu a pena dar o benefício da dúvida à edição 68 da Berlinale. E levamos os tambores taiko e os la-la-las de Lav Diaz a ressoar.