Acreditaria Marx nos marxistas de hoje?
Os marxistas, como sabemos, acreditam em Marx. Tenho as minhas dúvidas que Marx pudesse acreditar em muito do que hoje passa por marxismo do mais purista.
Uma coisa que até os mais ferozes críticos deveriam reconhecer a Marx e a Engels: eles sabiam como começar e acabar um manifesto. Do Manifesto do Partido Comunista, publicado fez anteontem 170 anos, toda a gente sabe o início: “Um espectro ronda a Europa; é o espectro do comunismo”. E toda a gente sabe como acaba: “os trabalhadores não têm nada a perder a não ser as próprias grilhetas, e têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos!”.
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Uma coisa que até os mais ferozes críticos deveriam reconhecer a Marx e a Engels: eles sabiam como começar e acabar um manifesto. Do Manifesto do Partido Comunista, publicado fez anteontem 170 anos, toda a gente sabe o início: “Um espectro ronda a Europa; é o espectro do comunismo”. E toda a gente sabe como acaba: “os trabalhadores não têm nada a perder a não ser as próprias grilhetas, e têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos!”.
Desde então muitos manifestos — políticos, culturais, artísticos e outros — foram escritos. Manifestos futuristas, modernistas, surrealistas e pós-modernistas. E desses pouca gente sabe o início e o fim.
Mas, e no meio? Que diz o Manifesto Comunista no meio?
Curiosamente, o Manifesto Comunista começou por ter a sorte que têm quase todos os manifestos. Foi publicado em meia-dúzia de jornais e depois quase esquecido por década e meia. Só quando em 1872 foram presos e julgados (por se oporem à Guerra Franco-Prussiana) dois velhos companheiros de Marx e Engels, August Bebel e Karl Liebknecht, é que os seus acusadores em tribunal se lembraram de ir buscar o velho texto para provar um ponto contra os acusados: que eles não eram leais à nação. Para o demonstrar, os acusadores foram buscar outra das famosas frases do Manifesto: “os trabalhadores não têm pátria”.
Década e meia depois, um dos elementos mais lembrados do manifesto (que acabou por lhe valer o primeiro dos seus vários renascimentos) era o seu radical cosmopolitismo. Com razão, pois era esse um dos seus elementos mais revolucionários, e assim continuou a ser até à Iª Guerra Mundial, quando Jean Jaurès foi assassinado por fazer o mesmo apelo de Bebel e Liebknecht: que os trabalhadores europeus fizessem greve para impedir mais uma guerra na Europa. Isto escandalizava as outras famílias políticas. Os liberais eram nacionalistas: os estados-nação eram essenciais para manter a propriedade e aplicar os contratos. Os conservadores eram imperialistas: acreditavam na ligação entre uma linha dinástica e os seus súbditos. E os socialistas — não apenas Marx nem Engels, mas todos os que levavam a sério as suas raízes iluministas — acreditavam naquilo a que chamavam “a fraternidade universal”. Ainda antes do Manifesto, “Proletários de todo o mundo, uni-vos!” já era a palavra de ordem de muitas associações operárias.
Outro elemento essencial do texto (logo na primeira frase!) era tido por evidente entre os socialistas: que ainda antes da revolução mundial as mutações do século XIX eram uma realidade europeia, que afetava todos os europeus e que precisava de ter como resposta um movimento operário europeu. Mesmo quando Engels vem criticar mais tarde a ideia dos Estados Unidos da Europa, que Victor Hugo defendia, fê-lo não em nome de um regresso às nações, mas de um cosmopolitismo ainda mais radical (e mundial) que seria o da revolução socialista ou comunista.
Como bem sabemos, o Manifesto Comunista propõe uma teoria da história: “toda a história da humanidade até agora é a história da luta de classes”. E a luta de classes é global e de todos os tempos. Hoje em diz fazem-se muitos colóquios sobre a atualidade de Marx, mas faltam alguns colóquios sobre o seu historicismo: o facto de as suas teorias, e por implicação as suas estratégias políticas, terem de ir sempre ao encontro do que se considerava ser o movimento da história, e não contra ela.
Nasci bem perto de vários marxistas, mas fui politicamente educado pelos seus mais aguerridos adversários entre os socialistas: os anarquistas. Entre os anarquistas corria uma frase sobre Marx onde não faltava alguma inveja (nem alguma verdade): “em Marx o que é bom não é novo e o que é novo não é bom” (referiam-se por exemplo, no último caso, à ditadura do proletariado que redundou no “vanguardismo” autoritário leninista).
Hoje dou por mim a pensar numa versão menos sectária desta frase: o que é preservado de Marx tende a ser o menos atual; o que é mais atual é menos recuperado. Nunca fui marxista, e dou por mim a citar frases de Marx a marxistas que delas fogem como o diabo da cruz. Não reconhecem que a visão de Marx sempre tornou obrigatório que a escala da política fosse a escala europeia. Preconizam um nacionalismo económico contra o qual Marx escreveu expressamente. E olhando para a globalização e a tecnologia colocam-se numa posição de entrincheiramento absolutamente avessa ao historicismo de Marx. Não há mal nenhum em discordar de Marx, pelo contrário. É só estranho quem se reclama do marxismo querer discordar destes aspectos essenciais do seu pensamento.
Os marxistas, como sabemos, acreditam em Marx. Tenho as minhas dúvidas que Marx pudesse acreditar em muito do que hoje passa por marxismo do mais purista.