Nem “novo”, nem “normal”
A constatação da persistência da precariedade no mercado de trabalho não pode ser um convite à resignação perante o facto.
Apregoa-se em vários sectores da sociedade Portuguesa que a precariedade vivida na contemporaneidade, e sobretudo pelos jovens, é “o novo normal”. Em consequência, a compreensão desse “pecado”, cometido no mercado do trabalho mas que contamina todas as esferas de uma vida, sai muito enfraquecida.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Apregoa-se em vários sectores da sociedade Portuguesa que a precariedade vivida na contemporaneidade, e sobretudo pelos jovens, é “o novo normal”. Em consequência, a compreensão desse “pecado”, cometido no mercado do trabalho mas que contamina todas as esferas de uma vida, sai muito enfraquecida.
Tal afirmação, que começa por ser um resultado de uma incapacidade de descodificar os dados empíricos disponíveis, acaba por se tornar uma prática perigosa de “self-fulfulling prophecy”, na qual a interpretação transforma, ou pode transformar, a realidade interpretada. Com frequência, resulta ainda mais de exercícios ensaísticos e da fast science (e da pseudo-ciência) do que de análises sistemáticas de dados sobre as vidas e as trajetórias dos indivíduos, mas sobre isso não me debruçarei hoje.
O “fetiche pelo presente”, partilhado por muitos especialistas e interessados nestes temas, impede tanto uma interrogação consistente do “passado” como um entendimento sustentado do “futuro”. Impede a constatação de que a precariedade não é “nova” e não é normal. Nem é inevitável.
De facto, se olharmos para o passado recente, isto é, para as gerações passadas de jovens adultos, verificamos que o fenómeno da precariedade dos vínculos contratuais, da informalidade da economia, do trabalho não pago dos “ajudantes familiares”, dos homens e das mulheres “a dias”, não é uma novidade do mercado de trabalho. Resultados desta natureza podem ser verificados em dados longitudinais. Apesar destas evidências, alguns especialistas preferem apontar o copo meio cheio, as diferenças e as mudanças – que as há – das novas formas e experiências da precariedade. Evitam olhar para o copo meio vazio e não resistem à tentação de gritar “eureka” cada vez que uma percentagem se altera numa determinada categoria de precariedade de uma década para outra. Tais resultados podem ainda ser confirmados por estudos qualitativos capazes de dar expressão às experiências de precariedade vividas em contextos históricos diferentes. A precariedade não é, portanto, novidade. Muito menos o é em Portugal, onde a economia informal é desde há muito um traço distintivo da sociedade. A precariedade no mercado de trabalho também não constitui um fenómeno propriamente “novo”. O mesmo sucede com o processo de permanência estável ou definitiva no seu interior. A constatação da persistência da precariedade no mercado de trabalho não pode ser é um convite à resignação perante o facto. Bem pelo contrário. A sua longa constância é cada vez menos aceitável. Precisa de ser combatida sem hesitação.
Um outro aspeto tem concorrido para esta série de mal-entendidos. Por exemplo, as janelas de observação para a vida dos jovens adultos tendem a ser muito pequenas. Quando estes passam a fronteira dos 30 anos, geralmente a análise dos dados estatísticos e das biografias é interrompida. A suas histórias e trajetórias deixam de ser contadas. É mais fácil anunciar simplesmente: “E viveram precários para sempre. O Fim”.
Mas o término de uma investigação não coincide com o fim da vida dos indivíduos. Se a análise longitudinal tivesse uma tradição mais sólida em Portugal, e os estudos sobre juventude disso beneficiassem, os resultados de um estudo qualitativo, ainda em curso, junto de jovens adultos em Portugal seriam certamente corroborados por outras pesquisas. Em 2009, 52 jovens adultos “comuns’”, de “classe média”, na altura dos 26 aos 32 anos, participaram em entrevistas centradas nas suas biografias. Foram convidados a refletir sobre as suas trajetórias e planos profissionais, conjugais, habitacionais e parentais. Ao estudar as vidas destes indivíduos, é possível identificar as formas variadas através das quais eles tentaram contrariar a sua condição precária de longa duração. A precariedade não é “normal” para sempre. Se vivem em condições precárias tempo demais? Sim. Mais do que no passado? É possível. Mas encaram essa realidade como normal, indefinidamente no tempo? Não. Reagem e não se acomodam, ao contrário do que declaram alguns argumentos que procuram contaminar o debate público, mais por razões ideológicas do que por qualquer espécie de sustentação científica.
Tal como o desemprego de longa duração e outras formas continuadas de exclusão social, a acumulação de dificuldades e desvantagens sociais é uma bomba-relógio. Os indivíduos conseguem suportar e “normalizar” estas experiências de precariedade durante algum tempo. Conseguem continuar a apostar numa determinada profissão ou posto de trabalho até um certo ponto. Sofrem assédios morais e injustiças de diversa natureza no trabalho até ao limite das suas capacidades. Mas há limites, variáveis consoante as condições sociais dos indivíduos, a duração da precariedade, o agravamento das condições de e no trabalho, entre outros aspetos. A experiência da precariedade passa a ser insustentável. Deixa de ser “normal”. “Já chega”.
Para muitos, a precariedade acumulada e de longa duração foi um gatilho para grandes decisões e mudanças nas suas vidas. Muitos dos jovens adultos entrevistados entre 2009 e 2016 mudaram de profissão, desempregaram-se, voltaram a estudar, denunciaram situações de injustiça nos seus locais de trabalho, abdicaram de rendimento provenientes destes trabalhos precários. Frequentemente, não sem antes entrarem em depressão e terem esgotamentos, ou viverem de forma sistemática com elevados níveis de ansiedade. Mas, mais adiante na vida destas pessoas, a precariedade acaba mesmo por ter os dias contados, pelo menos para um número considerável de casos.
Não se pretende aqui celebrar a resiliência dos indivíduos nem, muito menos, empurrar para estes a responsabilidade de travar processos complexos, macroestruturais, políticos e ideológicos de precariedade. Pelo contrário. Pretende-se, sim, dar visibilidade aos processos de precariedade de longa duração, revelando com clareza e de modo fundamentado as situações limite a que estes têm sido sistematicamente sujeitos. Essas situações “normais” são inaceitáveis.
Paremos de dizer que a precariedade é o “novo normal”. Paremos de concorrer na adivinhação do próximo fenómeno social problemático e de alimentar profecias travestidas de veredictos (pseudo)científicos. E sigamos o mote de John Oliver relativamente à eleição de Trump, repetindo vezes sem conta “isto não é normal, isto não é normal”. É injusto e inadmissível. Também por que não é “novo”.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico