Tão cool que é ser gay
A normalização da homossexualidade, tal como ela é hoje defendida e praticada, renegou completamente a possibilidade de encontrar linhas de fuga à rigidez identitária e, por isso mesmo, tornou-se incapaz de qualquer gesto político.
O assunto convoca-me e desafia-me. Por isso, volto a ele, ao enfático coming out de Adolfo Mesquita Nunes. Retirando-lhe o cálculo político-partidário (que é, no fundo, o que ele tem de mais importante), serviu para reivindicar uma total normalização da homossexualidade, num gesto enfaticamente aplaudido. O que significa “normalização”? Significa realizar o ideal que consiste em tornar a homossexualidade tão integrada e tão assimilada que se torna indiferente, como aquele judeu de que fala Hannah Arendt, que em Berlim foi patriota germânico a 150% e patriota igualmente fervoroso em todos os países onde, sucessivamente, viveu refugiado. Fernanda Câncio, contestando-me, escreveu mesmo um texto no DN intitulado “E se ser homossexual fosse indiferente” (só se percebe bem este título acrescentando o ponto de interrogação que lhe falta). Normalidade, naturalidade, indiferença: o homossexual responsável e respeitável cumpre o seu dever dizendo “eu sou gay”, para imediatamente acrescentar que isso é normal e natural. Se há aí a reivindicação de alguma diferença, isso é apenas uma posição táctica que aspira à pública indiferença. Pressupõe-se assim que a única coisa que distingue um homossexual de um heterossexual é o género do objecto de desejo. Daí, o argumento que ouvimos tantas vezes repetido: “não há nenhum interesse público em saber que o político X é gay, é indiferente saber com quem é que ele vai para a cama”. Felizmente, as coisas são muito mais complicadas. A sexualidade está longe de se reduzir aos actos sexuais, é também, ou sobretudo, um discurso, uma fala, uma linguagem. Neste sentido, não tem nada de natural e torna-se criadora de estilos de vida e formas culturais. Esse potencial criador de cultura e capaz de instituir um universo rico de relações e de formas de vida foi o grande trunfo da homossexualidade, liberta que estava da rigidez e das injunções normativas. Mas a luta pelo reconhecimento ganhou modos de actuação que determinaram o abandono de toda a virtualidade cultural, em favor da aspiração a uma existência completamente assimilada ao modelo heterocentrado. É a lógica despolitizada e desculturalizada da inclusão a 150% na homogeneidade social.
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O assunto convoca-me e desafia-me. Por isso, volto a ele, ao enfático coming out de Adolfo Mesquita Nunes. Retirando-lhe o cálculo político-partidário (que é, no fundo, o que ele tem de mais importante), serviu para reivindicar uma total normalização da homossexualidade, num gesto enfaticamente aplaudido. O que significa “normalização”? Significa realizar o ideal que consiste em tornar a homossexualidade tão integrada e tão assimilada que se torna indiferente, como aquele judeu de que fala Hannah Arendt, que em Berlim foi patriota germânico a 150% e patriota igualmente fervoroso em todos os países onde, sucessivamente, viveu refugiado. Fernanda Câncio, contestando-me, escreveu mesmo um texto no DN intitulado “E se ser homossexual fosse indiferente” (só se percebe bem este título acrescentando o ponto de interrogação que lhe falta). Normalidade, naturalidade, indiferença: o homossexual responsável e respeitável cumpre o seu dever dizendo “eu sou gay”, para imediatamente acrescentar que isso é normal e natural. Se há aí a reivindicação de alguma diferença, isso é apenas uma posição táctica que aspira à pública indiferença. Pressupõe-se assim que a única coisa que distingue um homossexual de um heterossexual é o género do objecto de desejo. Daí, o argumento que ouvimos tantas vezes repetido: “não há nenhum interesse público em saber que o político X é gay, é indiferente saber com quem é que ele vai para a cama”. Felizmente, as coisas são muito mais complicadas. A sexualidade está longe de se reduzir aos actos sexuais, é também, ou sobretudo, um discurso, uma fala, uma linguagem. Neste sentido, não tem nada de natural e torna-se criadora de estilos de vida e formas culturais. Esse potencial criador de cultura e capaz de instituir um universo rico de relações e de formas de vida foi o grande trunfo da homossexualidade, liberta que estava da rigidez e das injunções normativas. Mas a luta pelo reconhecimento ganhou modos de actuação que determinaram o abandono de toda a virtualidade cultural, em favor da aspiração a uma existência completamente assimilada ao modelo heterocentrado. É a lógica despolitizada e desculturalizada da inclusão a 150% na homogeneidade social.
A palavra “gay”, tão cool e higiénica, significa pouco mais do que isto. Por isso é que eu dizia, na semana passada, que Adolfo Mesquita Nunes não tinha nada a assumir e nada a mostrar. Evidentemente, Fernanda Câncio projectou nestas minhas palavras a sua ideia de que eu também estaria a defender a “indiferença” da homossexualidade, quando se tratava exactamente de mostrar que, afinal, a única coisa que restava de tão enfática entrevista era uma linguagem indiferente, vazia. “Não tenho qualquer problema em ser quem sou”, afirmou o entrevistado: são estas proposições identitárias que fazem as delícias da homonormatividade e merecem o aplauso de tanta gente. A ideia de uma homossexualidade substancial, com uma identidade rígida, é a ideia que sempre serviu os opressores. É com base nela que se evoca uma figura quase sempre tão irreal como o unicórnio: a “comunidade gay”. A normalização da homossexualidade, tal como ela é hoje defendida e praticada (através de uma assimilação caricatural às formas de existência dominantes), renegou completamente a possibilidade de encontrar linhas de fuga à rigidez identitária e, por isso mesmo, tornou-se incapaz de qualquer gesto político. É essa coisa inócua, esse fechamento do “não tenho qualquer problema em ser quem sou”, que satisfaz as exigências de uma homossexualidade de facto indiferente, definida apenas por determinados hábitos de consumo e de lazer nos centros urbanos.