Os iranianos perdem a cabeça (enquanto García Bernal rouba um museu)

Berlim parece ter guardado as melhores surpresas do concurso para o fim: Gael García Bernal a roubar um museu, um serial killer de cineastas iranianos e um romance nos corredores de um armazém.

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Toda a gente tem sempre razões de queixa sobre a competição de um festival de cinema, e para somar às queixas habituais que se costumam gerar em Berlim, os filmes que podem fazer a diferença entre um ano mau e um ano bom apareceram de rajada à beira do fim do festival. 

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Toda a gente tem sempre razões de queixa sobre a competição de um festival de cinema, e para somar às queixas habituais que se costumam gerar em Berlim, os filmes que podem fazer a diferença entre um ano mau e um ano bom apareceram de rajada à beira do fim do festival. 

E a melhor surpresa do lote é um filme que ri de — e ri com — todos os lugares-comuns que identificamos com o cinema de festival e de autor, e que é (horror!) uma comédia: o delírio farsante Pig, do iraniano Mani Haghighi, visto numa sessão de grande público onde as gargalhadas não pararam.

Alguém anda a matar todos os grandes realizadores iranianos, cortando-lhes a cabeça depois de lhes gravar na testa a palavra “porco”. Todos, isto é, à excepção de um: Hassan Kasmai (fabuloso Hassan Majooni), que há dois anos está interditado de filmar e é um menino da mamã egoísta e convencido de que é um génio com uma espectacular colecção de T-shirts vintage de heavy metal (AC/DC, Black Sabbath, Kiss). “Deixa estar, prometo-te que o assassino virá atrás de ti,” diz-lhe a mãe que ainda vive com ele. “E se vier eu dou cabo dele.”

Haghighi não é desconhecido dos ocidentais – o anterior A Dragon Arrives! foi visto no concurso de Berlim em 2016 — mas o seu cinema não encaixa na tradição iraniana que mais tem sido “exportada”, a de Kiarostami, Panahi ou Farhadi. E Pig não prima pela subtileza no modo como denuncia num mesmo caldeirão as redes sociais, a mentalidade linchadora da turba, a força das mulheres na sociedade iraniana, o fundamentalismo religioso e as interdições estatais de trabalhar. Mas o humor desta farsa de enganos traz muita água no bico (sobretudo para quem conhece o cinema iraniano) e sabe que rir, às vezes, pode mesmo ser o melhor remédio.

Há muitos risos na primeira metade de Museo, do mexicano Alonso Ruizpalacios, que parte de uma premissa curiosa: e se o tradicional “filme de golpe”, o heist movie onde acompanhamos o planeamento e a execução de um roubo audacioso, pudesse também ser um adeus à adolescência? Aqui entra o roubo verídico de uma série de artefactos arqueológicos num museu da Cidade do México nos anos 1970, improvavelmente levado a cabo por um eterno estudante de veterinária que não sabe o que fazer da vida, como um "manguito" feito à família e às expectativas da sociedade.

O golpe em si próprio é filmado com um virtuosismo quase ofensivo por Ruizpalacios, de quem é apenas a segunda longa depois do bem interessante Güeros, e a primeira hora do filme decorre como uma comédia em câmara lenta, com um humor Godardo-Keatoniano, que pergunta como raio dois "cromos" tão grandes como Gael García Bernal e Leonardo Ortizgris (o cúmplice panhonha) conseguem roubar isto.

Mas às tantas a comédia em câmara-lenta deriva para algo mais doce-amargo: a melancolia terminal do adeus à inocência, a compreensão de que a vida não corre como queremos, e de que o peso da responsabilidade não é algo que se descarte de um momento para o outro. Güeros (que esteve a concurso no IndieLisboa em 2015) fazia adivinhar um autor em potência, Museo confirma-o, mesmo que saiamos da projecção com a impressão de um talento que ainda tem por onde crescer.

Enquanto esperamos o início de outro filme, um jornalista alemão ao nosso lado alinha de maneira muito certinha quais os filmes a concurso com personagens principais femininas ou masculinas (porque a percepção é uma coisa importante e este é um festival que passa o tempo a ser chamado à pedra pela imagem que projecta). Nenhum filme se esteve mais a borrifar para divisões de género do que Touch Me Not, primeira longa oficial da romena Adina Pintilie, com uma larga experiência nas curtas e médias. Foi uma das mais estranhas e fascinantes entradas na competição 2018, um híbrido que recusa definir se é ficção ou documentário e passa o tempo a cruzar essa fronteira, alimentando-se de ambas as formas para explorar uma ideia de intimidade e de identidade ancorada no amor e na sexualidade, desafiando ideais de beleza e sensualidade.

Touch Me Not é um quebra-cabeças que apenas faz sentido uma vez a imagem completa – ao princípio, não sabemos o que esta mulher que não gosta que lhe toquem (Laura Benson) está a fazer com terapeutas, call-boys, enfermeiros, transsexuais, fetichistas (são actores ou representam-se a si próprios ?), até mesmo com a própria realizadora que questiona perante a câmara o que quer fazer. Isso torna Touch Me Not num filme cerebral que exige ao espectador disponibilidade e paciência – mas aqueles que a tiveram serão recompensados pela progressiva descoberta de um objecto absolutamente fascinante.

Uma última surpresa a concurso: In den Gängen, do alemão Thomas Stuber, é uma tocante miniatura sobre gente normal que vive vidas normais na antiga Alemanha de Leste, e sobre o romance tentativo e inefável entre dois colegas de armazém num grande supermercado.

O filme descreve uma pequena comunidade que se forma à volta dos rituais e das rotinas (as entregas, as arrumações, as limpezas, as pausas para o café), uma comunidade que funciona ao mesmo tempo como porto de abrigo e protecção do mundo frio e sujo lá fora. Stuber filma tudo como um ballet geométrico de movimentos dirigidos pela esquadria dos corredores onde os actores (a sempre grande Sandra Hüller, de Toni Erdmann, e Franz Rogowski, numa interpretação que faz lembrar Joaquin Phoenix) gerem discretamente as nuances emocionais das suas personagens. É um filme tão discreto, tão leve, que não se dá por ele, mas que não merece passar ao lado.