Os neandertais foram os primeiros artistas a pintar grutas
Apresentadas provas fortes de que os neandertais – e não a nossa própria espécie – é que criaram as primeiras pinturas rupestres em grutas, há cerca de 65 mil anos. Deixaram-nos grutas pintadas em Espanha. Esta novidade científica, que nos leva até à origem da arte e à essência do que é humano, é a capa da revista Science.
Na revista Science, um estudo de uma equipa de 14 investigadores de cinco países – onde se inclui o arqueólogo português João Zilhão – apresenta esta sexta-feira provas robustas de que os neandertais já pintavam grutas, de forma intencional, há cerca de 65 mil anos. Eram portanto artistas das grutas – uma confirmação que surgiu através da datação (com um método recente) de pinturas rupestres em três grutas em Espanha. O que isto tem de extraordinário – e tem muito, razão que levou uma revista científica de prestígio como a Science a escolher o assunto para a capa – é que os neandertais tinham capacidade de pensamento abstracto e simbólico. Tal como nós temos.
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Na revista Science, um estudo de uma equipa de 14 investigadores de cinco países – onde se inclui o arqueólogo português João Zilhão – apresenta esta sexta-feira provas robustas de que os neandertais já pintavam grutas, de forma intencional, há cerca de 65 mil anos. Eram portanto artistas das grutas – uma confirmação que surgiu através da datação (com um método recente) de pinturas rupestres em três grutas em Espanha. O que isto tem de extraordinário – e tem muito, razão que levou uma revista científica de prestígio como a Science a escolher o assunto para a capa – é que os neandertais tinham capacidade de pensamento abstracto e simbólico. Tal como nós temos.
Desde a descoberta do primeiro esqueleto de um neandertal em meados do século XIX, no vale de Neander (na Alemanha) que estes humanos têm sido muito denegridos. Já os descreveram como brutamontes, com poucas capacidades cognitivas, incapazes de comportamentos simbólicos. Muitos desses retratos enviesados foram ficando para trás, com o avançar do conhecimento. Mas a questão que se manteve é se seriam capazes de ter realmente um pensamento simbólico como o exigido para fazer uma pintura numa gruta. Até agora, ainda se duvidava disso.
Primeiro, um pouco de história evolutiva. Os neandertais surgiram há cerca de 400 mil anos. Apenas viveram na Europa e no Médio Oriente, tendo desaparecido há cerca de 28 mil anos. O último local onde viveram, indo recuando do resto da Europa, foi em Espanha e Portugal. Quanto à nossa espécie (Homo sapiens), surgiu em África há cerca de 300 mil (segundo descobertas recentes) e saímos de lá há mais de 60 mil anos. Fomo-nos espalhando pelo planeta, passando no início pela Ásia. Às portas da Europa “apenas” chegámos entre há 40 mil a 45 mil anos. Por isso, ao longo de milhares de anos, coexistimos no tempo com os neandertais e ainda nos chegámos a encontrar, geograficamente falando, na Europa.
Mas se a nossa espécie só chegou à Europa há cerca de 45 mil anos, então as pinturas rupestres com 65 mil anos nunca poderiam ter sido feitas por nós. Precedem a nossa chegada em 20 mil anos. Os autores dessa arte das grutas só podem ter sido os neandertais, os únicos humanos que então viviam na Europa. É este o raciocínio da equipa que fundamenta as suas conclusões na datação de amostras recolhidas em três grutas espanholas. Para tal, os cientistas usaram o novo método de datação por urânio-tório.
O que pintaram eles?
A datação rigorosa das pinturas é aqui uma peça central. Até agora, a atribuição clara da autoria de certas pinturas rupestres aos neandertais tem esbarrado em datações imprecisas, porque as técnicas usadas (como a datação por radiocarbono, inventada em meados do século passado e que permite datar fósseis e outros achados arqueológicos até 50 mil anos) não possibilitavam mais.
No início dos 90, a datação de radiocarbono com espectrometria de massa por acelerador já veio permitir atribuir uma idade à matéria orgânica presente nos pigmentos usados em desenhos negros, explica-se num comunicado de imprensa sobre o trabalho. Ainda assim, havia limitações. “Os resultados foram parcialmente satisfatórios devido a várias contradições e, além disso, este método só pode ser aplicado a pinturas negras feitas com carvão, o que impede a sua aplicação aos motivos traçados com ocre vermelho e ocre negro de manganês e às gravuras”, lê-se.
Ora, nos últimos anos começou a aplicar-se à arqueologia o método do urânio-tório, baseado na desintegração do urânio-234 em tório-230. E, dessa forma, começou-se a desvendar quem foram os verdadeiros pintores de algumas das grutas paleolíticas. Neste método, os cientistas recolhem amostras (poucos miligramas) de pequenas crostas de carbonato de cálcio que se foram acumulando por cima das pinturas, no decurso dos milénios. Nessas crostas mede-se a desintegração radioactiva do urânio – e isso indica quando se formaram esses depósitos, fornecendo uma idade mínima para o que está por baixo deles, ou seja, para as pinturas.
Especificamente, a equipa aplicou o método do urânio-tório a depósitos de carbonato de cálcio existentes tanto por baixo como por cima das pinturas rupestres nas três grutas espanholas, o que permitiu ter uma idade máxima e uma idade mínima para a criação dessas pinturas.
Liderada pelo Instituto Max Planck para a Antropologia Evolutiva (Alemanha) e pela Universidade de Southampton (Reino Unido), a equipa recolheu 54 amostras de carbonato de cálcio nas grutas de La Pasiega (Puente Viesgo, Cantábria), Maltravieso (Cáceres, Extremadura) e Ardales (Málaga, Andaluzia).
E o que pintaram aí? Animais (desenhados a encarnado e negro), bem como (a encarnado) motivos geométricos, mãos impressas em negativo e a aplicação de pigmentos sobre estruturas estalagmíticas típicas do interior das grutas. A impressão de mãos em negativo, ou stencil, colocando a mão na rocha e espalhando a tinta por cima, revela que o processo foi intencional. Não foi a impressão acidental de uma mão numa rocha.
Ora os resultados das datações indicam que as pinturas mais antigas têm pelo menos cerca de 65 mil anos – como um desenho em forma de escada na gruta de La Pasiega, uma mão em stencil na gruta de Maltravieso, ou manchas de pigmentos encarnados nalgumas das cortinas estalagmíticas da gruta de Ardales. Em termos de antiguidade, estas pinturas “destronam” as de Chauvet Pont d’Arc, gruta descoberta em França 1994, com cerca de 32 mil anos. E as pinturas em várias grutas na ilha indonésia de Celebes de 12 mãos em negativo e dois animais, anunciadas em 2014 como tendo cerca de 40 mil anos, segundo datações pelo método urânio-tório.
Na realidade, também “destronam” em antiguidade pinturas noutras grutas espanholas que parte dos autores que agora assina o novo trabalho, incluindo já nessa altura João Zilhão, apresentou em 2012 como tendo entre 35 mil e 40 mil anos. Publicados igualmente na Science, essas datações pelo método do urânio-tório atribuíram pelo menos 40 mil anos a um disco vermelho na gruta de El Castillo (Cantábria), mais de 37 mil anos a uma mão em negativo na mesma gruta, e mais de 35 mil anos a um símbolo em forma de maço na gruta de Altamira. Os cientistas já punham a hipótese dos neandertais como os seus autores. Mas, com essas idades, essa autoria não era irrefutável.
As provas claras chegaram agora, das três grutas já referidas. João Zilhão explica o que viram lá. “No caso de Ardales, trata-se de pintura mural: aplicação de vermelho sobre cortinas estalagmíticas. Não há muito que ver a não ser as manchas de pigmento, que não desenham figura nenhuma porque tão-pouco era esse o objectivo. O objectivo era realçar uma formação geológica natural à qual se atribuiria um valor ritual/simbólico/mitológico”, explica o investigador do Departamento de História e Arqueologia da Universidade de Barcelona e do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa.
“No caso de La Pasiega, trata-se de um palimpsesto onde há, no mesmo painel, motivos de diferentes épocas”, refere o arqueólogo. “O motivo que tem mais de 65 mil anos é o desenho em forma de escada (duas grandes linhas verticais paralelas unidas por traços perpendiculares). Nesse painel há também figuras de animais (muito provavelmente bastante mais recentes), outro signo abstracto (à direita) e nuvens de pontos (acima), para as quais não dispomos de datação”, explica ainda, acrescentando que a mão negativa de Maltravieso está totalmente coberta de calcite e teve de ter um tratamento digital para se poder ver o seu negativo.
“Passam todas as provas”
Ao terem cerca de 65 mil anos, estas pinturas são agora as mais antigas em todo o mundo em grutas. Conduzem-nos às origens da arte e à essência do que é humano, que passa por uma linguagem complexa, por comportamentos complexos, por um pensamento simbólico. “A emergência da cultura material simbólica representa um patamar fundamental na evolução da humanidade. É um dos pilares principais do que nos torna humanos”, frisa precisamente um dos autores principais do trabalho, Dirk Hoffmann, do Instituto Max Planck para a Antropologia Evolutiva, em comunicado. “Artefactos cujo valor funcional não reside tanto no seu uso prático mas simbólico são indicadores para aspectos fundamentais da cognição humana como a conhecemos.”
Falando de objectos simbólicos, os mais antigos remontam a 70 mil anos, encontrados em África e estão associados à nossa espécie. Na Europa, têm sido encontrados objectos de ornamentação corporal (jóias), figuras esculpidas e ferramentas em osso decoradas cuja idade recua até 40 mil anos, igualmente atribuídos à nossa espécie recém-chegada ao continente europeu.
Quanto aos neandertais, havia provas que ornamentavam o corpo. Mais uma vez, as dúvidas persistiram. “Ao longo das últimas duas décadas, ficou claro que usavam objectos de adorno pessoal e pintura corporal. Em relação a estes aspectos, porém, as datações indicavam um aparecimento há menos de 50 mil anos, pelo que alguns autores argumentavam que não se tratava de comportamentos genuinamente simbólicos mas simplesmente de ‘imitação sem compreensão’ de algo que os neandertais teriam observado em sociedades ‘modernas’ vizinhas”, nota João Zilhão. “Chegou a dizer-se que era como o indígena da Nova Guiné que usava um rádio pendurado ao pescoço sem saber para que é que o objecto servia na realidade, ou como a criança que põe o colar de pérolas da mãe por brincadeira sem ter nenhuma ideia do que, para a mãe, significa usar esse colar. Na realidade, essas objecções eram improcedentes porque não há ‘homens modernos’ na Europa antes de 40 mil a 42 mil anos.”
Para João Zilhão, um segundo artigo que a equipa publica também esta sexta-feira, na revista Science Advances, resolve de vez este assunto. É sobre conchas perfuradas e pintadas com 115 mil e 120 mil anos, da Cueva de los Aviones (Cartagena, Múrcia), o que as torna, em termos de objectos simbólicos, 20 mil a 40 mil anos “mais antigas do que qualquer coisa conhecida entre os tais ‘homens modernos’ de África”. “Quando a isto se junta a demonstração de que a primeira arte paleolítica — mãos negativas e signos geométricos — tem mais de 65 mil anos, e portanto só pode ter sido feita pelos neandertais, o resultado é simples: os neandertais passam com distinção todas as provas do exame sobre a existência de linguagem e de pensamento abstracto, simbólico, idêntico ao da humanidade actual. Dito de outra maneira: os neandertais também eram Homo sapiens.”