ETA, o morto que fala
A ETA vai desaparecer até ao início do Verão, anunciou ontem o jornal Gara. Assim acaba o famoso “mito da invencibilidade”.
A ETA vai desaparecer até ao início do Verão, anunciou ontem o jornal Gara, tradicional porta-voz da organização terrorista. Está na “recta final” o debate, que dura há meses, para encerrar “o ciclo e a função da ETA”, uma proposta “da direcção” que já começou a ser votada. A decisão cabe essencialmente aos presos e militantes libertados. Uma vez aprovada a proposta, “a ETA deixa de existir”. Assim acaba o famoso “mito da invencibilidade”.
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A ETA vai desaparecer até ao início do Verão, anunciou ontem o jornal Gara, tradicional porta-voz da organização terrorista. Está na “recta final” o debate, que dura há meses, para encerrar “o ciclo e a função da ETA”, uma proposta “da direcção” que já começou a ser votada. A decisão cabe essencialmente aos presos e militantes libertados. Uma vez aprovada a proposta, “a ETA deixa de existir”. Assim acaba o famoso “mito da invencibilidade”.
De facto, a ETA já morreu. Pelo menos três vezes. Primeiro politicamente, quando no fim dos anos 1990 fez levantar centenas de milhares de bascos contra o terrorismo. Voltou a morrer, na primeira década do século, quando os juízes e polícias espanhóis e franceses desmantelaram por completo o seu aparelho. Morreu, enfim, quando deixou de poder exercer o ofício que se tornou na sua razão de ser: matar. Aí depôs as armas.
Poder-se-ia acrescentar que a certidão de óbito foi passada pelo seu próprio aparelho legal, que sempre a temeu, lhe obedeceu e foi seu incondicional cúmplice. Em 2011, a “izquierda abertzale” (independentista) apresentou um novo partido, Sortu, cujos estatutos condenam a violência da ETA. Os independentistas legais, os “batasunas”, preocupam-se agora com eleições.
Da ETA, restam 302 presos e uma dúzia de militantes activos. O seu cadastro regista, em 43 anos de terror, entre 856 e 892 assassínios — os critérios variam. Fundada em 1959, começou a matar em 1968. Mas a fase verdadeiramente sangrenta começa com a morte de Franco, com a transição para democracia e a autonomia basca. Só em 1980 cometeu 92 assassínios, um por cada quatro dias.
O maior ramo da organização, a ETA politico-militar (ETA p-m) integrou-se na nova sociedade democrática em 1982. A ETA-militar (ETA-m) depressa passou de um marxismo terceiro-?-mundista para um nacionalismo étnico. Inventou o “mito da invencibilidade”. Não podia derrotar o Estado mas também não podia ser derrotada por ele. O terror visa forçar o Estado a sentar-se à mesa e a negociar as exigências da ETA. É a época dos grandes atentados. A lógica era colocar os espanhóis sob chantagem: “Dai-lhes o que eles quiserem para vivermos em paz.”
Nos anos 1990, esta estratégia está esgotada e, graças à cooperação francesa, o seu aparelho está à beira do colapso. Faz então uma opção suicidária: alargar o conflito e envolver nele toda a sociedade. Ninguém poderá manter-se à margem. Inventa a “kale borroka” para lançar o terror nas ruas bascas. Com esta estratégia, converte a imaginária “guerra Espanha-País Basco” numa quase “guerra civil basca”.
Socialização do sofrimento
Entretanto, a violência passava de instrumento a razão de ser da organização. Escreveu o antropólogo basco Juan Aranzadi: “A violência constitui a certidão de nascimento da ETA e o seu exclusivo e permanente meio de afirmação. A ETA não é uma organização política que pratica a violência, mas um grupo armado que racionaliza politicamente as acções violentas.”
Em 1998, a ETA decretou uma trégua para descansar. Recompõe o aparelho militar, rompe a trégua e lança a ofensiva terrorista de 2000-2002, a do “tiro na nuca”. São dezenas de assassínios — de políticos socialistas a autarcas, de intelectuais a um modesto cozinheiro. Centenas de pessoas só podem sair à rua com escolta. Trinta mil empresários são submetidos a um racket mafioso, o “imposto revolucionário”. Muita gente, a começar por intelectuais e artistas bascos, começa a exilar-se noutras regiões de Espanha.
A isto, os etarras chamavam “a perseguição social” contra os refractários ao nacionalismo. E, mais sofisticadamente, inventam o termo de “socialização do sofrimento”. Os cidadãos, reféns do terror, devem render-se aos desígnios de uma minoria totalitária. O preço foi alto: a revolta da população basca anulou para todo o sempre a mitológica legitimidade nacionalista da ETA, que perdia ao mesmo tempo a cumplicidade de que gozava junto de parte da Igreja e do Partido Nacionalista Basco.
Hoje é indiferente que a ETA se “dissolva”, “desapareça” ou “desmobilize”. Foi escorraçada da história. Fez um comunicado? É já um morto que fala.