Separamos o lixo. Limpamos a consciência. Mas algo muda?
Perante questões ambientais graves, como nos últimos tempos com os plásticos, equacionamos o problema a partir da mudança individualizada dos comportamentos. Isso chega?
Separam lixos, não utilizam plásticos, racionam água, consomem biológico, têm casas de energias renováveis ou andam de carro eléctrico. Há cada vez mais pessoas assim. Dizem praticar um estilo de vida ecológico. Por norma pertencem a classes privilegiadas. Dizem não estar contentes com o mundo e afirmam incorporar esse desejo de mudança.
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Separam lixos, não utilizam plásticos, racionam água, consomem biológico, têm casas de energias renováveis ou andam de carro eléctrico. Há cada vez mais pessoas assim. Dizem praticar um estilo de vida ecológico. Por norma pertencem a classes privilegiadas. Dizem não estar contentes com o mundo e afirmam incorporar esse desejo de mudança.
Algumas delas fazem parte das minhas sociabilidades, admiro-lhes a perseverança, embora creia que a mesma não produz alterações se não formos mais longe, interrogando a própria raiz do sistema e o papel das grandes empresas, do capital globalizado e do Estado na produção e na regulação. Não basta mudar hábitos se não questionarmos a cadeia de produção e consumo, ou o paradoxo de vivermos em sociedades que assentam em ideias de desenvolvimento durável, sempre com a miragem do crescimento económico, ao mesmo tempo que existe consenso – ok, com excepção de Trump – de que vivemos tempos de degradação ambiental.
Quando lhes digo isso exaltam-se. Argumentam que se todos agíssemos como eles a mudança seria possível. Nas últimas semanas, a propósito das campanhas de sensibilização para o muito grave problema do plástico, tenho-me lembrado deles. Do que fui registando aconselha-se a mudança de comportamentos no sentido de reduzirmos o uso de plástico (garrafas, sacos, palhinhas ou cotonetes), apontando-se para a responsabilização dos cidadãos com as suas escolhas. O que estranhei, mais uma vez, é o enquadramento do problema a partir de um prisma comportamental, ético ou cultural, com a dimensão política a ser esquecida, quando o que está em causa são as nossas escolhas colectivas enquanto sociedade.
Não estou a dizer que não se deve fazer reciclagem ou racionar água ou evitar os plásticos. A sensibilização ambiental pode ser fomentada a partir destes princípios que também pratico. Mas é bom que, por um lado, tenhamos noção que os efeitos das acções individuais, mesmo multiplicadas por milhões, são residuais. E por outro tenhamos noção dos efeitos perversos desta teia. Os Estados dizem aos cidadãos: se não separar os lixos estará a contribuir para a degradação ambiental do planeta. E estes, sentindo-se culpabilizados, co-responsáveis e tendo fé que podem ser agentes da mudança, acedem ao chamamento.
Resta saber se não estaremos a distrair-nos do essencial, a adiar o confronto com a raiz do problema criando a ilusão de que o estamos a resolver, quando no fundo, nesses gestos, limpamos apenas a consciência. Ao mesmo tempo partilhamos a penitência com grandes empresas e Estados — afinal, os principais causadores dos problemas que queremos combater e os que podem fazer a diferença reparadora, nesse gesto acabando por domesticar a hipótese do protesto activo dirigido contra esse poderes.
Passam o tempo a dizer-nos para mudarmos os nossos comportamentos, mas em nenhum momento se interroga se é possível modificar os fundamentos que os motivam. Ninguém diz que não existe um problema ambiental urgente. Pelo contrário. Ele é capaz de ser mais sério do que pensamos. E é por isso que não podemos adiá-lo, assistindo ao seu afastamento do terreno das soluções políticas onde deve ser equacionado.
Seria bom clarificar. Até porque hoje em dia sempre que certas práticas de produção e consumo são postas em causa, os enunciadores do liberal-capitalismo não só se defendem, como se apropriam e constroem a sua própria visão alternativa do tema.
E o que nos transmitem? Dizem-nos que não temos de prescindir ou de corrigir nada de muito profundo, sendo possível criar equilíbrio entre crescimento económico infindável, preservação do meio ambiente e justiça social. Ou seja, dizem-nos que nenhuma mudança dolorosa é necessária desde que exista progresso sustentável, consumo ambientalmente correcto e partilha de responsabilidades. Uma retórica que convence muita gente.
Mas que mantém tudo na mesma, porque estamos sempre a agir sobre as consequências e não sobre as causas. Actuar sobre as causas implica desmontar a duplicidade de um sistema que, com uma mão, acumula e centraliza capital, contribuindo para a destruição do planeta, e com a outra aconselha um estilo de vida ecológico que está apenas ao alcance de um minoria e que acaba por assentar nos mesmos alicerces do que supostamente se pretende combater, inculpando de caminho a grande massa dos restantes, solicitando-lhes que assumam as suas responsabilidades, distraindo-nos do verdadeiro foco do problema.
Não sou eu que o digo. Há cada vez mais vozes a formular que para estabelecermos um novo modo de interacção com as questões ambientais é necessário uma profunda mudança politica e económica e uma cooperação supranacional de forma a protegermos os bens comuns naturais e culturais. É aí que a verdadeira mutação se poderá desencadear. Quando digo isto aos meus amigos do ambiente chamam-me idealista. Eu respondo-lhes que sonhadores são eles porque com o seu estilo de vida limitam-se a alimentar o que é preciso interrogar, iludidos de que estão a contribuir para a mudança. É preciso pensar mais além.