Ninhos de falcões e outras demolições
Em tempos de erosão do Estado e das coisas públicas, as políticas e o dinheiro de todos deviam aplicar-se em coisas realmente necessárias.
Depois da Expo 98, mais uma pipa de dinheiro para Lisboa e negócios chorudos para privados, região deprimida com a mania das grandezas desde os afonsinhos, decidiu-se fazer uma expo dos pequenitos para um magote de cidades ganharem umas frentes de água (se não houvesse, inventavam-se), muito ambiente e o santíssimo centro histórico. Era o programa Polis, mais uma iniciativa centralizada no sítio do costume e um pacote de projectos com coisas estilo Barcelona e outras estilo cosmopolita a contrastar com as antiguidades do centro histórico e parques de estacionamento. Muito dinheiro, parcerias com privados e prioridades duvidosas. Não se me ocorre dizer outra coisa; como se não entendia o que era a urbanização, sacralizava-se a “cidade” e, num seu pequeno filete, fazia-se uma intervenção tomada como exemplar. Era o projecto urbano, coisa difícil de replicar em todo o espaço urbanizado por manifesto excesso de gasto por metro quadrado.
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Depois da Expo 98, mais uma pipa de dinheiro para Lisboa e negócios chorudos para privados, região deprimida com a mania das grandezas desde os afonsinhos, decidiu-se fazer uma expo dos pequenitos para um magote de cidades ganharem umas frentes de água (se não houvesse, inventavam-se), muito ambiente e o santíssimo centro histórico. Era o programa Polis, mais uma iniciativa centralizada no sítio do costume e um pacote de projectos com coisas estilo Barcelona e outras estilo cosmopolita a contrastar com as antiguidades do centro histórico e parques de estacionamento. Muito dinheiro, parcerias com privados e prioridades duvidosas. Não se me ocorre dizer outra coisa; como se não entendia o que era a urbanização, sacralizava-se a “cidade” e, num seu pequeno filete, fazia-se uma intervenção tomada como exemplar. Era o projecto urbano, coisa difícil de replicar em todo o espaço urbanizado por manifesto excesso de gasto por metro quadrado.
Ficava assim resolvido o paradoxo: durante séculos ou milénios toda a urbanização era cidade, intra-muros, magote densamente construído com seus castelos e casas do poder, ruas e avenidas; de há umas décadas para cá, a maior parte da urbanização não é cidade; em vez de se resolver a questão adaptando os conceitos às realidades, não; as cidades são sagradas e eternas; ficou então estabelecido que cidade é o núcleo velho e alguns bordos confinantes e que o resto é coisa feia, sem nome, caótica, a especulação e isso. Qualquer bode expiatório serve para fazer de conta que há uma explicação. A cidade ficou blindada: tudo o que não se ajustasse ao que se dizia que era, fazia ricochete a grande velocidade na muralha imaginária e ia para a vala comum da urbanização genérica e pronto (dantes ia para o campo que era o “outro” da cidade).
Fique pois a dita cidade. Faz-se de conta que a árvore é a floresta e toca de gastar à tripa forra, descriminando os espaços históricos (os outros estão fora da história) para que a lavoura imobiliária privada venha aproveitar mais-valias que o dinheiro público generosamente espargiu. Os outros que continuem nos seus lugares feios, com seus centros comerciais, armazéns, fábricas, estradas, casas e vias rápidas e tudo que é o normal da urbanização mais coisa menos coisa. Quando quisessem vir à cidade, a verdadeira, a civilizada, encontrariam as coisas belas, as ruas granitadas, as floreiras, os candeeiros, o ambiente sustentável e ciclável, as estátuas, as ruas de peões, melhor do que ir ao Portugal dos Pequenitos ou à Disneylândia.
Para tornar isso possível far-se-iam demolições estéticas custasse o que custasse e como o Prédio Coutinho, construção alta, teve o azar de não ser catedral, castelo ou edifício assinado por uma estrela do firmamento arquitectónico, vinha abaixo. Estávamos no ano 2000 e muita gente pensava que o mundo ia acabar. Não acabou e passado este tempo todo o gasto de dinheiro público na birra do Coutinho já deve estar próximo dos 30 milhões. Uma bagatela. Havia de calhar logo num dos mais interessantes programas Polis do magote. Ainda bem que a demolição não prejudica os falcões peregrinos que podem ir nidificar para a St.ª Luzia que é local de peregrinação. Pronto, nem tudo é mau.
Por se prestar a qualquer argumento ou discurso tecnicista ou surrealista, por viver de palavras elásticas que servem para falar de tudo sem nada dizer, por se poder colonizar com qualquer questão, por se prestar a negócios mais ou menos escuros, por ser o bombo da festa para quem quiser denegrir a acção política, por isso tudo, o urbanismo tornou-se um dispositivo de produção de discursos, regulamentos e acções as mais delirantes. Era melhor acabar com ele mas ficava-se sem este assunto para animar salões, campanhas eleitorais e facebooks. Continue, pois.
O que eu queria dizer é que em tempos de erosão do Estado e das coisas públicas, as políticas e o dinheiro de todos se deviam aplicar em coisas realmente necessárias. A política urbanística fazia parte dessa res publica. Não haverá em Viana do Castelo onde gastá-lo? Já experimentaram ir visitar o hospital e ver em que condições funciona? Não era de aplicar lá uns trocos? Agora diz que o gabinete de arquitectura que tinha projectado o mercado que iria para o terreno do Coutinho (por sinal, profissionais premiados, estimados e apreciados pelas suas obras) foi despedido e trocado por outro (não se sabe porquê) para se aplicar intensamente em construir mais uma atracção para a disneylândia histórica.
Estou mais agoniado que a Senhora d’Agonia. Quero uma mordoma com os peitos ourados. Por falar nisso... e o Prédio Coutinho feito arte urbana com uns cordões, filigranas, rendas, riquezas de Viana para a selfie do turista?