Romy Schneider está viva e bem de saúde e chama-se Marie Bäumer

A saudosa diva do cinema europeu dos anos 1970 é recordada numa interpretação excepcional em 3 Tage in Quiberon. Bate aos pontos a concorrência, e nem Joaquin Phoenix no novo filme de Gus van Sant se lhe compara.

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Marie Bäumer é Romy Schneider em 3 Tage in Quiberon Rohfilm Factory/Prokino/Peter Hartwig

Barbudo, desgrenhado, displicente, desrespeitoso – ou seria apenas mais um dos números que lhe são conhecidos? Foi assim Joaquin Phoenix na conferência de imprensa berlinense para Não te Preocupes, Não Vai Longe a Pé (competição), onde dá vida ao cartoonista quadriplégico John Callahan na Portland dos anos 1980. É um projecto que Gus van Sant há longos anos procurava montar – o cartoonista, que faleceu em 2010, chegou a trabalhar em vida nesta adaptação do seu livro autobiográfico – e que chega à competição de Berlim depois de uma passagem discreta por Sundance. Mas a assombrosa criação de Romy Schneider pela actriz alemã Marie Bäumer em 3 Tage in Quiberon, de Emily Atef (competição), bate aos pontos a recriação de Callahan por Phoenix e, de caminho, muita da fortíssima concorrência de personagens femininas na edição 2018 de Berlim.

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Barbudo, desgrenhado, displicente, desrespeitoso – ou seria apenas mais um dos números que lhe são conhecidos? Foi assim Joaquin Phoenix na conferência de imprensa berlinense para Não te Preocupes, Não Vai Longe a Pé (competição), onde dá vida ao cartoonista quadriplégico John Callahan na Portland dos anos 1980. É um projecto que Gus van Sant há longos anos procurava montar – o cartoonista, que faleceu em 2010, chegou a trabalhar em vida nesta adaptação do seu livro autobiográfico – e que chega à competição de Berlim depois de uma passagem discreta por Sundance. Mas a assombrosa criação de Romy Schneider pela actriz alemã Marie Bäumer em 3 Tage in Quiberon, de Emily Atef (competição), bate aos pontos a recriação de Callahan por Phoenix e, de caminho, muita da fortíssima concorrência de personagens femininas na edição 2018 de Berlim.

A presença de Não te Preocupes, Não Vai Longe a Pé e 3 Tage in Quiberon em Berlim segue a lógica que diz “festival sem filmes biográficos não é festival que se preze”. (Na secção de gala Berlinale Special, por exemplo, mostraram-se The Happy Prince, de Rupert Everett, sobre os últimos anos de vida de Oscar Wilde, e Becoming Astrid, da dinamarquesa Pernilla Fischer Christensen, sobre a adolescência da escritora Astrid Lindgren). A recriação de figuras reais é maná para prémios de representação, mesmo que o risco para os actores seja o de cair no boneco, de recriar o físico sem agarrar a alma, a personalidade. Felizmente, é um risco ao qual tanto Van Sant e Phoenix como Atef e Bäumer escapam, mesmo que os actores sejam melhores do que os filmes.

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AMAZON CONTENT SERVICES LLC/Scott Patrick Green

Não te Preocupes, Não Vai Longe a Pé (que deverá chegar às salas portuguesas em Junho) tem qualquer coisa de “porto seguro” para Gus van Sant depois do desastre crítico e comercial de The Sea of Trees. É um filme inofensivo, mainstream, produzido pela Amazon, com um elenco de nomes fortes (Rooney Mara, Jonah Hill, Jack Black e velhos amigos como Udo Kier, Beth Ditto e Kim Gordon). É preciso prestar atenção à montagem em alternância temporal (sobretudo na primeira metade) e à câmara de Christopher Blauvelt, sempre à procura de um alvo em movimento enquanto Phoenix tenta escapulir-se de maneira travessa, para reconhecermos algo do “velho” Van Sant capaz de subverter as regras. Phoenix é muito bom como Callahan (não é surpresa), mas foi mais subversivo na sua performance alucinada no pódio berlinense do que Van Sant nas duas horas do filme. Ainda assim, Não te Preocupes, Não Vai Longe a Pé prova que o realizador ainda não está tão morto como se anunciava.

No caso de Romy Schneider, a fasquia é outra. A actriz franco-alemã começou por ser a imperatriz Sissi numa série de melodramas populares de sucesso mundial para se emancipar e reinventar em musa de toda uma geração de cineastas europeus na década de 1970, de Claude Sautet a Andrzej Zulawski. Não é fácil encarnar uma actriz incomparável e uma mulher belíssima que viveu uma vida de tragédias e escândalos: foi companheira de Alain Delon, casou por duas vezes, viveu o suicídio do primeiro marido e a morte do filho aos 14 anos, bebia em excesso e estava viciada em medicamentos. Emily Atef escolheu contar em 3 Tage in Quiberon um episódio verídico pouco conhecido que remonta a 1981: três dias numa estância termal da Bretanha, onde a actriz estava em cura de desintoxicação, altura em que deu a sua primeira grande entrevista à imprensa alemã em anos. Nas fotografias que um velho amigo, Robert Lebeck, tirou para a revista nesses dias, Schneider surge feliz, em paz consigo própria; menos de um ano mais tarde, morria de ataque cardíaco, aos 43 anos, poucos meses após a morte trágica do filho David.

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Rohfilm Factory/Prokino/Peter Hartwig

Atef constrói a sua ficção a partir dos relatos de Lebeck e do jornalista da Stern Michael Jürgs, desenhando uma mulher desesperadamente só, à procura do amor em todos os sítios errados. A história da actriz que perde o norte é um tema narrativo clássico, mas a sensibilidade com que Atef compreende Romy e Marie Bäumer a encarna investe a história com delicadeza e eloquência. Para lá da parecença física, a actriz enverga, literalmente, a personalidade de Schneider, mulher capaz de se embriagar para chegar à alegria que não consegue encontrar na vida, sonhando com um quotidiano banal que lhe permita ser finalmente ela própria, lutando para ultrapassar uma percepção pública demasiado presa à pureza de Sissi e aos escândalos da sua vida romântica. Não é Marie Bäumer que temos à frente durante duas horas, é Romy Schneider – e só isso justifica toda a atenção a este filme tão atento e sensível quanto disperso e pontualmente redundante.