Racismo está a marcar a campanha para as legislativas italianas

Italianos vão votar com olhos postos na imigração e na segurança. Depois de um crime contra africanos, a direita condenou tanto o atacante como as vítimas

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É Itália e claro que já houve escândalos de dinheiro, com deputados do Movimento 5 Estrelas expulsos. É Itália, Silvio Berlusconi está de volta e claro que já disse o impensável, como reivindicar o “fim da Guerra Fria”. Mas se há tema a marcar a campanha de uma das mais imprevisíveis eleições de sempre em Itália trata-se da imigração e do racismo.

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É Itália e claro que já houve escândalos de dinheiro, com deputados do Movimento 5 Estrelas expulsos. É Itália, Silvio Berlusconi está de volta e claro que já disse o impensável, como reivindicar o “fim da Guerra Fria”. Mas se há tema a marcar a campanha de uma das mais imprevisíveis eleições de sempre em Itália trata-se da imigração e do racismo.

Macerata é o nome das bocas de toda a gente. No dia 3 de Fevereiro, Luca Traini disparou sobre seis africanos de diferentes nacionalidades nesta cidade do centro do país, antes de se deixar prender, segundo a polícia “lúcido e determinado, consciente do que tinha feito”, sem mostrar quaisquer remorsos.

Traini, de 28 anos, tentara sem sucesso concorrer a umas eleições locais nas listas da Liga Norte (que para a campanha das legislativas de 4 de Março perdeu o “Norte”), partido xenófobo e anti-imigração, e tem ou teve laços com os partidos de extrema-direita Força Nova e CasaPound. Em casa tinha uma cópia do Mein Kampf, de Hitler.

Há uma Itália que se manifestou há duas semanas e voltará a fazê-lo no próximo sábado contra este crime e contra o racismo. Mas também há o país que tem medo da imigração dos últimos anos (600 mil pessoas desde 2013) e viu nos disparos de Traini uma forma de justiça a Pamela Mastropietro, italiana de 18 anos assassinada no fim de Janeiro por um suspeito nigeriano — o seu corpo foi encontrado desmembrado nos arredores de Macerata.

Há quinze dias, os protestos aconteceram um pouco por todo o país, mas não se viram nas ruas candidatos ou dirigentes partidários. Um sinal dos tempos, numa altura em que 70% dos italianos diz sentir-se inseguro (eram 55% em 2003) e 30% afirma que é a imigração que determinará o seu voto.

Pietro Grasso (ex-juiz anti-máfia), líder de um pequeno partido, Livres e Iguais (que junta, entre outros, ex-membro do Partido Democrático, de centro-esquerda), é a grande excepção e pertence-lhe a iniciativa de realizar uma manifestação nacional antifascista em Roma, no dia 24. “O antifascismo é um valor fundador da nossa Constituição”, escreveu no Twitter.

Enquanto os restantes líderes do centro-esquerda, como Matteo Renzi, tentam não se envolver no tema, a direita e a extrema-direita não hesitam em cavalgar nos receios dos italianos. Matteo Salvini, líder da Liga, diz que “enquanto italiano” se sentiu “envergonhado pelas manifestações” contra o racismo. Attilio Fontana, candidato da Liga na Lombardia, afirmou temer “que a raça branca desapareça” por causa de “tantos imigrantes”, frase que depois tentou explicar como um lapso.

Renzi e membros do actual Governo do PD já pediram a Salvini que baixe a retórica. Mas as vozes que mais se têm feito ouvir contra o discurso da Liga vêm da Igreja Católica. “É preciso reagir a uma cultura do medo, mesmo se às vezes esta é compreensível, não se pode transformar em xenofobia nem podemos evocar discursos sobre a raça que pensávamos enterrados para sempre”, afirmou o cardeal Gualtieri Basseti, actual presidente da Conferência Episcopal Italiana. “Não é fechando as portas que se vai melhorar a situação do país”, acrescentou, na abertura do Conselho Episcopal Permanente.

Salvini chegou a condenar os disparos de Traini, claro, mas responsabilizou os imigrantes pelo “caos, raiva” e “tráfico de droga, roubos, violações e violência” que trouxeram. E nunca mais parou de se referir a “uma invasão” que é preciso “travar”. Claro que o líder do partido que em tempos soltou porcos nos terrenos onde estava prevista a construção de uma mesquita também quer encerrar as mesquitas existentes e descreve o islão como “incompatível com os valores, direitos e liberdades” dos italianos.

Expulsar 600 mil pessoas

Se estas eleições são imprevisíveis, não só por causa dos três blocos, as duas coligações mais óbvias, uma à direita, outro no centro-esquerda, e o M5S por outro lado, mas também por causa da nova lei eleitoral nunca testada, a verdade é que há vários cenários em que a Liga pode entrar num governo.

O mais provável seria em coligação com a Força Itália, de Berlusconi — político que não pode ser eleito, por causa de uma condenação por corrupção, mas que se apresenta de novo como “salvador” da nação, o único capaz de impedir o M5S de governar e de “moderar” Salvini. Até o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, o recebeu, agora na pele de “europeísta convicto” que pode impedir a Liga de pôr em causa o euro.

O acordo entre a FI e a Liga (que inclui os Irmãos de Itália, de Giorgia Meloni, e outros grupúsculos de extrema-direita) é que quem tiver mais votos escolhe o presidente do governo. E Berlusconi não pode parecer fraco face a Salvini. “Já não há segurança no nosso país. A cada 20 segundos é cometido um crime, a cada quatro minutos há um roubo numa loja e a cada dois dias há três assaltos a bancos”, enumerou o veterano político, depois de defender que 600 mil imigrantes (dos 680 mil no país) devem ser expulso. Também ele culpou as vítimas, descrevendo os imigrantes como “uma bomba social pronta a explodir”.

O M5S, com posições mais próximas da esquerda nuns temas e de direita noutros, tem-se mantido afastado como pode desta discussão e nas suas principais promessas de campanha os imigrantes nem são referidos. Mas o partido nascido em 2009 é conhecido por tiradas populistas sobre vários temas, e a imigração não escapa. O jovem candidato a primeiro-ministro (31 anos), Luigi di Maio, já descreveu as ONG como “taxistas de imigrantes”, meses depois de ter afirmando que “Itália importou 40% dos [seus] criminosos da Roménia, enquanto a Roménia importa as empresas e o capital de Itália”.

Um discurso de ódio

Oficialmente, houve 803 crimes de ódio contra imigrantes ou estrangeiros em 2016 (foram 71 em 2012), mas os activistas dizem que os números reais são bem superiores. Enquanto isso, as ONG que lidam com imigrantes queixam-se de problemas para se estabelecerem em cidades médias ou pequenas.

Salvini, Berlusconi, Di Maio, o último vai ficar à frente nas eleições e pode ser primeiro-ministro. É um caminho cheio de obstáculos, como será o de qualquer líder para chegar ao lugar. Nem o Movimento 5 Estrelas nem o conjunto da direita (à frente enquanto coligação, com todos os partidos bem atrás do M5S) nem muito menos o centro-esquerda terão maioria para formar governo. Mas a não ser que seja preciso voltar às urnas é quase certo que Salvini, com o seu país do medo, terá uma palavra a dizer, unindo-se a Berlusconi ou ao M5S, com quem a Liga mantém contactos há anos.

Rula Jebreal, jornalista, escritora e analista política palestiniana, com dupla nacionalidade (israelita e italiana) e 24 anos de vida em Itália, conta que actualmente recebe mais ameaças de morte quando vai discutir imigração às televisões italianas do que quando aparece “na CNN a denunciar o racismo do Presidente Trump”.

“O fascismo está bem e cresce em Itália. Traini pode ter puxado o gatilho, mas os disparos foram inspirados pelos políticos mainstream da direita, liderados por Berlusconi, que tentam esconder o fracasso em oferecer perspectivas de economia decente incitando ao ódio”, escreve no Guardian. Para Jebreal, o ataque de Macerata “não é de todo uma aberração, é o produto de um discurso político marcado por um racismo crescentemente selvagem que está a tornar uma cultura acolhedora, aberta e vibrante numa mistura tóxica de medo e ódio”.