Pesar a balança: Portugal num novo paradigma de fluxos de capital
Num sistema fechado como é o dos fluxos internacionais de capital, os desequilíbrios são simétricos.
A livre circulação de capitais pode trazer benefícios para o crescimento de um país caso permita canalizar poupanças para fins produtivos. No entanto, uma dependência excessiva dos fluxos de capital pode traduzir-se numa fonte de vulnerabilidade. Através da propagação de choques transfronteiriços, os fluxos de capitais podem perturbar os sistemas financeiros locais, com consequências reais para a economia.
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A livre circulação de capitais pode trazer benefícios para o crescimento de um país caso permita canalizar poupanças para fins produtivos. No entanto, uma dependência excessiva dos fluxos de capital pode traduzir-se numa fonte de vulnerabilidade. Através da propagação de choques transfronteiriços, os fluxos de capitais podem perturbar os sistemas financeiros locais, com consequências reais para a economia.
No relatório Analysis of development in EU capital flows in the global context, assinado em co-autoria com outros investigadores da Bruegel, analisámos os movimentos de capitais na União Europeia num contexto global. Neste artigo, foco-me sobretudo no caso de Portugal e da zona euro.
Num sistema fechado como é o dos fluxos internacionais de capital, os desequilíbrios são simétricos: por definição, se um país poupa mais do que investe, este excedente será absorvido por não-residentes. Nas vésperas da crise financeira global, os desequilíbrios globais tomaram níveis sem precedentes, com alguns países a acumularem grandes somas de ativos face ao estrangeiro, permitindo que outros gastassem consideravelmente acima do que produzem.
Hoje em dia, os desequilíbrios são menores face ao período pré-crise, mas têm aumentado desde 2015. Geograficamente, os excedentes globais deixaram de se concentrar na China e em países exportadores de petróleo. Após a crise, o capital é maioritariamente exportado pela zona euro e pelo Japão, entre outras economias avançadas. Esta transferência de papéis reflete, em parte, os diferentes ritmos e políticas de ajustamento à crise. No caso particular da zona euro, entra em jogo a política monetária acomodatícia como resposta a uma retoma mais lenta do que a registada nos Estados Unidos.
De facto, a zona euro é hoje o principal bloco financiador de capital no panorama mundial. A União Monetária tem registado um excesso de poupanças que cresce desde 2009. Uma situação de equilíbrio entre poupanças e investimento deu lugar a um crescimento significativo do financiamento para o resto do mundo. Por um lado, isto acontece na medida em que os países devedores (Portugal, Grécia e Espanha) passaram de uma posição de importadores para exportadores de capital. Do lado dos credores, países como a Alemanha e a Holanda geram excedentes de poupança cada vez maiores, que, por sua vez, são reciclados sob a forma de transações de capital com o resto do mundo. Como resultado, a sua posição de investimento internacional atinge hoje em dia máximos históricos.
Apesar da relação entre poupanças e investimento da zona euro se ter mantido equilibrada nos anos 2000, é sabido que por detrás desta posição estavam assimetrias importantes entre países, com a periferia a contrair défices significativos e os países core a contabilizarem excedentes generosos. O crescimento global dos fluxos de capital que se seguiu à introdução da moeda única deu-se maioritariamente sob a forma de investimentos de carteira (títulos de dívida) e empréstimos interbancários.
Em Portugal, os bancos foram os principais intermediários destes fluxos, procíclicos por natureza. A sua volatilidade tornou-se evidente em 2010, quando investidores estrangeiros se desfizeram de dívida espanhola, portuguesa e grega. A magnitude dos fluxos de saída da periferia qualificou este episódio como uma paragem súbita no financiamento internacional. O provisionamento de liquidez do BCE ajudou a mitigar a fuga abrupta de capitais privados.
Gradualmente, através de um programa de ajustamento com elevados custos sociais, Portugal tornou-se num exportador líquido de capital no início de 2013, e tem-se mantido estável desde então. Hoje em dia regista uma capacidade de financiamento de 1,5% do PIB. No entanto, a sua posição de investimento internacional mantém-se negativa, em -105% do PIB, dada a dimensão dos desequilíbrios anteriormente acumulados.
Para além disso, a par da grande redução nas posições de passivos relacionados com dívida, os fluxos de entrada e posições de investimento direto estrangeiro continuam a ter um peso pequeno no enquadramento geral. O investimento direto estrangeiro em Portugal aumentou de 18% do PIB em 2009 para 34% em 2017, em termos líquidos. Ainda assim, fica aquém do chamado “outro investimento”, maioritariamente empréstimos transfronteiriços, que representa cerca de 80% de todas as responsabilidades líquidas de Portugal perante o exterior. Isto é importante, já que a composição dos fluxos de capital pode ter consequências para a estabilidade financeira. Os fluxos relacionados com investimento direto estrangeiro, contrariamente a outros instrumentos, são pouco voláteis e representam um menor risco de inversão rápida em período de crise internacional.
O debate europeu em torno de partilha de risco, desequilíbrios na zona euro e composição de fluxos de capital tem como pano de fundo o trabalho que a Comissão Europeia tem desenvolvido para a construção da União de Mercados de Capitais. Diversificar o sistema financeiro através do aprofundamento dos mercados de capitais e de uma menor concentração do financiamento nos bancos reduz a vulnerabilidade a crises financeiras.
É verdade que as pequenas e médias empresas não beneficiam particularmente disto de forma direta, e é verdade que estas compõem uma proporção maior do tecido empresarial nacional que no conjunto da área do euro. Disso é espelho a reduzida dimensão dos mercados de capitais em Portugal. Porém, um projeto desta natureza pode não só aumentar o acesso e diversificar o financiamento para as empresas de maior dimensão mas também, indiretamente, libertar créditos bancários para as pequenas empresas. As famílias podem também diversificar mais os seus investimentos (e ter mais incentivos para poupar).
Porém, mais do que canalizar capital para grandes ou pequenas empresas, este projeto integra a economia portuguesa numa rede em que o risco sistémico é partilhado entre países, tornando-a mais resiliente em crises futuras.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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