África do Sul: a vitória das instituições
Depois de uma era sombria, sopram ventos de mudança nos corredores do poder.
Durante dez anos, os sul-africanos só tiveram más notícias. Há meses, definiam assim o clima político-social: “Isto vai piorar, antes de ficar muito pior.” Com a queda de Jacob Zuma, o novo Presidente, Cyril Ramaphosa, foi “elevado ao estatuto de Messias nos media e na imaginação popular”, comenta um analista. Pareceu um golpe palaciano na cúpula do Congresso Nacional Africano (ANC), mas trata-se de uma operação de “saneamento” que reabre a história da África do Sul.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Durante dez anos, os sul-africanos só tiveram más notícias. Há meses, definiam assim o clima político-social: “Isto vai piorar, antes de ficar muito pior.” Com a queda de Jacob Zuma, o novo Presidente, Cyril Ramaphosa, foi “elevado ao estatuto de Messias nos media e na imaginação popular”, comenta um analista. Pareceu um golpe palaciano na cúpula do Congresso Nacional Africano (ANC), mas trata-se de uma operação de “saneamento” que reabre a história da África do Sul.
Eleito em Dezembro presidente do ANC, Ramaphosa concluiu com brilho a operação de deposição do ex-Presidente Jacob Zuma. É uma vitória da democracia sul-africana, na medida em que provou a força das instituições e a resistência da sociedade perante a rede de corrupção e desprezo da lei encarnados por Zuma.
O acima analista citado, David Everatt, da Universidade de Witwatersrand, adverte que depois de Mandela não haverá outro Messias. E Ramaphosa não o é. “Depois de abrir o champanhe, os sul-africanos precisam de se convencer de que é um mero mortal.” E a sua agenda não é invejável.
Herda uma economia estagnada, uma sociedade polarizada e um partido dividido. Propõe-se pôr termo à cultura da impunidade e ao saque do Estado que foram as marcas dos anos Zuma. “A economia foi subjugada pelas ramificações do labirinto de corrupção e ‘captura do Estado’, que se entranharam em todos os aspectos da vida pública” e dentro do ANC, resume Everatt. A situação social começa a lembrar os tempos de caos e de violência do início dos anos 1990.
De Zuma a Ramaphosa
Sublinha o jurista Richard Calland, da Universidade do Cabo: “O primado da lei e um sistema judicial independente mantiveram firmemente, apesar das pressões, um interminável fluxo de casos de acusação de teor político.” A sociedade civil usou todas as instituições para desafiar Zuma. Um símbolo: o último dia de Zuma como Presidente — e não foi coincidência — começou com as notícias de que a mansão dos seus poderosos cúmplices, a família Gupta, tinha sido assaltada pela polícia e tinham sido feitas detenções.
Horas antes de se demitir, Zuma ameaçou o ANC na televisão. Ramaphosa não se impressionou e manteve o voto de desconfiança no parlamento. “Zuma percebeu que o jogo estava perdido e caiu em cima da sua própria espada”, diz Calland. “O homem, mais do que um Messias, mostrou que sabe mover múltiplas peças de xadrez ao mesmo tempo — e vencer.”
Como resistiu Zuma a 783 acusações de corrupção, a uma condenação do Tribunal Constitucional, à sua impopularidade e ao desastre eleitoral do ANC nas eleições regionais de 2016? Não era apenas um hábil manobrador. Controlava a maior rede clientelar do país e, através dela, a maioria dos dirigentes do ANC. Nos congressos, muitos votos se compravam e o partido instaurou um duplo sistema de distribuição de empregos e contratos públicos.
Como derradeira arma, e à maneira de Mugabe, tentou responder ao descontentamento com um populismo antibranco. O balanço do seu mandato é a queda livre do PIB, a explosão da dívida e o aumento do desemprego e das desigualdades sociais. E, mais grave, a tentativa de corrosão da legalidade.
Segundo os analistas, a “primeira prioridade” do novo Presidente é a “limpeza” do Estado, marcado pela corrupção a todos os níveis. É uma condição da sua credibilidade política, nacional e internacional, e só possível enquanto goza de uma espécie de estado de graça — ou enquanto as “máfias” se não reorganizam.
Tem depois os desafios económicos e sociais. Basta lembrar uma taxa de desemprego de 27% — e de 65%, no caso dos jovens. Houve grandes progressos na educação e na saúde, porque os pontos de partida eram muito baixos, mas os indicadores sociais permanecem desastrosos. E a violência continua a ser endémica.
Um clima de optimismo trazido por Ramaphosa poderia fazer subir a taxa de crescimento de um para 3 ou 4%. Mas, para reduzir as desigualdades, seria necessária uma taxa de 6%. Ao mesmo tempo, para atrair investimento, o novo Governo deverá diminuir o défice.
A desigualdade não é apenas uma questão de justiça, mas eminentente política. A África do Sul é dos países mais desiguais do mundo, em que 10% da população controla 60% do rendimento e 95% da riqueza. A minoria branca é destacadamente a mais favorecida. Mas também, entre a população negra, cresce o fosso entre os pobres e a “nova burguesia negra”, em rápida expansão e largamente parasitária do Estado.
A crise do ANC
Há outro problema por trás dos eventos desta semana. O ANC não é um partido como os outros. Assume-se como uma frente de libertação nacional que, em nome do passado, tem o direito natural de governar. “O partido de libertação sempre acreditou ser sinónimo dos verdadeiros interesses do país”, escreve o analista Daniel Silke. Numa forma extrema, declarou há dois anos o então secretário-geral, Gwede Mantashe: “Deus deu ao ANC a sua bênção para dirigir a África do Sul.”
Mas adverte Silke: “Enquanto o ANC parece continuar a pensar no paradigma de fusão entre partido e Estado, os sul-africanos vêem-no crescentemente como contraditório com a boa gestão do Estado.” A confusão entre os interesses do ANC com os da África do Sul acelerou a “crise de credibilidade do partido”. Abriu-se uma “crise existencial no ANC”, anotou em 2012 Adam Habib, da Universidade de Witwatersrand, durante a crise do massacre dos mineiros de Marikana: “O partido de libertação passou a ser visto como arquitecto de um regime económico que se voltou contra o povo. (...) Ficaram subitamente nervosos.”
As eleições regionais de 2016 foram lidas como a continuação do declínio eleitoral do ANC: 70% dos votos em 1994, 62% em 2014, 54,4% em 2016. Os números parecem excelentes, mas fizeram soar os alarmes: o ANC pode vir a perder a maioria absoluta. É o que Ramaphosa tentará evitar em 2019, embora defendendo uma separação entre o partido e o Estado.
“A África do Sul necessita desesperadamente de uma alternativa relevante, credível e não racial ao ANC”, escreve o analista William Gumede. Essa força ainda não nasceu.
De qualquer forma, e para lá de Ramaphosa, a hegemonia do ANC nunca mais será a mesma. O seu direito natural a governar e a sua identificação com o destino da nação pertencem já ao passado.