I speaks English
A oralidade, o som, são absolutamente essenciais na consolidação de uma língua. E, incompreensivelmente, encontram-se ainda silenciados na sala de aula.
Não, não é um erro. Ou, pelo menos, não segundo os meus explicandos. Quando lhes peço que me conjuguem o verbo speak na primeira pessoa do singular, dizem-me, quais guerreiros galantes, “I speaks English”, esperando, coitados, que eu acredite.
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Não, não é um erro. Ou, pelo menos, não segundo os meus explicandos. Quando lhes peço que me conjuguem o verbo speak na primeira pessoa do singular, dizem-me, quais guerreiros galantes, “I speaks English”, esperando, coitados, que eu acredite.
O ensino de inglês nas escolas é, em muitos aspectos, frustrantemente inconsequente. O contacto com a língua inglesa é executado através de módulos frequentemente desarticulados, tendo, como suporte conceptual, textos tantas vezes superficiais, em forma e conteúdo, que assentam sobre temas mainstream pouco desafiantes. Acresce que, em Portugal, a aprendizagem da língua é feita, fundamentalmente, através do enriquecimento gramatical, aprendido com regras de aplicação inscritas em esquemas, que vêm descontextualizadas da aplicação real. E a aplicação real de uma língua é a palavra escrita e a palavra dita, em que a gramática é apenas uma ferramenta para que se atinjam a compreensão e expressão plenas. A oralidade, o som, são absolutamente essenciais na consolidação de uma língua. E, incompreensivelmente, encontram-se ainda silenciados na sala de aula.
Ninguém utiliza uma língua em teoria. A língua usa-se na prática, falando-a ou escrevendo-a. Em contexto de conversação entre amigos, explicitação de pontos de vista em debates, cooperação em empresas ou discussões académicas, as línguas estrangeiras aprendem-se para serem úteis em contexto real. De que vale aleatoriamente saber dizer cama, pasta de dentes, despensa, telhado, secretária ou estojo? Sem serem integradas num discurso sólido em fluência, auxiliam pouco o seu utilizador a expressar-se como o faria na língua-mãe. Quando inicio os meus alunos em conversação, inclusive do ensino secundário, é penoso ver o esforço com que dolorosamente articulam qualquer frase complexa, apesar de, efetivamente, conhecerem uma porção substancial dos termos que é esperado dominarem.
Cada um de nós aprende a respetiva língua materna ao vivê-la. E é ao saborear o som das palavras e a sua linha escrita que melhor a incorporamos. Uma língua deve ser explorada. Devem poder dizer-se palavras mal, para que se possa dizê-las melhor de seguida. Aos jovens, dos vários anos lectivos, deve ser dado espaço e tempo, nas aulas, para que falem as línguas. Devem poder experimentar os sonoridades e sotaques peculiares de “throughout the entwined conscious breaths”. Desola-me ver os meus alunos enfadados com as suas aulas de inglês, aborrecidamente atulhadas de carril metódico, sem qualquer vida, quando, em simultâneo, decoram letras de canções inglesas ou compreendem caprichosamente os diálogos nos jogos de consola. De resto, no mundo de hoje, o inglês longe está de um capricho, pouco se trata de se gostar mais ou menos de o aprender, ele é parte do mundo, parte do modo como a vida vai. E aprendê-lo é uma necessidade. Num mundo que nos obriga a debater com todos, a produzir raciocínio e a expressar pensamento, uma língua é apenas útil quando acompanha, de perto, a qualidade do nosso intelecto. O tão afamado e pertinente verbo português “desenrascar” esgotou. Não basta dominar apenas um inglês que satisfaça, que cative o turista ou que não nos deixe à fome nas ruas de uma outra metrópole. Num tempo em que queremos um mundo interdisciplinar, em que queremos ser europeus e interculturais, em que comunicamos com as gentes de todo o globo, em que a partilha é mais do que momentânea e ocasional, o inglês tem que ser não apenas uma língua comum, mas de comunhão. A língua com a qual dizemos o queremos dizer.
Insisto que não é possível esperar que durante aulas de hora ou hora e meia, 25 a 30 alunos consigam pôr em prática o que quer que aprendam. Aprender uma língua é expressá-la. É ser obrigado a falá-la e a escrevê-la. É ter essa necessidade. Nas condições de ensino em Portugal, muito simplesmente, não dá. Não há santos graals na educação, mas há pequenos retoques que ajudam. Reduzir em metade o número de alunos em aulas de línguas estrangeiras, criando o sistema de turnos, como de resto é já praticado com disciplinas de experimentação científica, ajuda a criar espaço e tempo para que se desenvolvam actividades, em que todos os alunos se possam expressar e desenvolver as suas competências. Sessões menos lotadas potenciam a desinibição dos alunos, além de permitirem uma melhor manobragem por parte dos docentes para organizar actividades interactivas, como debates ou simulações de entrevistas, que estimulem a oralidade. Assim, as regras essenciais de gramática e a diversificação vocabular conhecidas nas aulas teóricas têm uma oportunidade para se consolidarem e encetarem um verdadeiro processo de aprendizagem. Cabe à escola identificar e aplacar falhas na sua capacidade de formar e o ensino de uma língua é trabalho especialmente exigente. Quando o pequenote nos diz “I speaks English”, temos que saber que lhe podemos responder “You don’t, but you certainly will”.