As universidades em Portugal: mais um desafio
O novo pacote de medidas do Governo, embora muito bem-intencionadas, podem ser apenas remendos.
Esta semana o PÚBLICO deu nota das linhas gerais de um relatório da OCDE sobre o Ensino Superior português. O Governo avança com um pacote de medidas que, embora muito bem-intencionadas, podem ser apenas remendos. Entretanto, prossegue uma ronda de avaliação institucional promovida pela Agência Nacional de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES). Este artigo é uma contribuição para a discussão que se avizinha novamente sobre as universidades, por alguém que está no sistema desde 1979 e que reconhece o enorme progresso conseguido, especialmente neste século.
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Esta semana o PÚBLICO deu nota das linhas gerais de um relatório da OCDE sobre o Ensino Superior português. O Governo avança com um pacote de medidas que, embora muito bem-intencionadas, podem ser apenas remendos. Entretanto, prossegue uma ronda de avaliação institucional promovida pela Agência Nacional de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES). Este artigo é uma contribuição para a discussão que se avizinha novamente sobre as universidades, por alguém que está no sistema desde 1979 e que reconhece o enorme progresso conseguido, especialmente neste século.
Antes de mais, há que relembrar que o plural na expressão “universidades portuguesas” é coisa recente. Para além da aventura jesuíta de Évora entre o século XVI e século XVIII, a existência de mais do que uma universidade em Portugal é coisa de 1911 quando foram instituídas as universidades de Lisboa e Porto. Durante o século XIX muitas das formações superiores profissionalizantes existiam fora da universidade e fora de Coimbra como as Artes (no sentido moderno), as Engenharias e mesmo a Medicina. Com a primeira República (1910-1926) estas escolas vieram a constituir as novas universidades, processo que só se concluiu com a integração das Artes nos anos 1980 com a absorção das Escolas Superiores de Belas Artes pelas universidades de Lisboa (Técnica e Clássica) e do Porto. Deste modo, a formação profissionalizante instituiu-se definitivamente na universidade.
No último quartel do século XX, já existiam mais sete novas universidades, contando com a ressurreição de Évora e a Universidade Católica. Também se assistiu, desde os anos 1980, a um boom de universidades fora do Estado, as chamadas “privadas”. Neste quadro nasceram também os politécnicos na senda da experiência do Reino Unido do pós-guerra com a dupla função de descentralizar e profissionalizar. Sem quase tempo para respirar, caiu sobre nós o manto de Bolonha.
Antes de avançar mais há que dizer que a designação de “politécnico” como um subsistema que se tornou obsoleto noutros países. A Finlândia passou a chamar-lhes recentemente Universidades de Ciências Aplicadas e o Reino Unido passou a chamar-lhes universidades ou Universidades Metropolitanas já há alguns anos.
Implícita à designação finlandesa está o reconhecimento de dois espaços de ensino superior: o espaço da produção de conhecimento e o espaço de aplicação de conhecimento. De um modo imperfeito, poderíamos dizer que dois estes espaços corresponderiam às designações de “Research University” e “Teaching University”. Uma especialmente vocacionada para a produção de conhecimento, a outra para a transmissão do conhecimento. No nosso enquadramento legal não há espaço para a segunda. Todas as universidades têm que conter investigação. Por arrastamento, também os politécnicos para aí caminharam, embora alguns tenha caído na armadilha do “especialista” que os acorrenta a uma posição “inferior”. A principal característica deste modelo de “Research University” é que, embora produzindo profissionais, não faz dessa produção o seu objectivo principal.
O caminho pela “Research University” torna a universidade melhor. O caminho pela “Teaching university” limita a sua liberdade de criar, inovar e cuidar do conhecimento já acumulado porque se sujeita à “economia” e ao “mercado de trabalho”.
Infelizmente, esta atitude “sem interesse” pelas profissões por parte das universidades foi-se tornando impensável em Portugal durante o século XX. Nos anos 1970 era claro que as “saídas profissionais” já presidiam às opções por cursos. Há que dizer que subjacente a esta evolução há uma política de sujeição. As universidades preparavam os jovens para ser empregados e sobretudo empregados do Estado e não para criarem a sua carreira como donos do seu destino.
O recém-publicado livro A Universidade como Deve Ser, de Miguel Tamen e António M. Feijó, dá conta deste problema oferecendo soluções naturalmente baseadas num modelo menos instrumentalizante da universidade e que promove uma liberdade que propicia as funções principais da universidade que são o conhecimento e a inovação.
Há que reforçar a ideia que se este espaço de liberdade não existir no ensino superior, não existirá em mais nenhuma instituição, com consequências catastróficas para a evolução da sociedade. Neste sentido, apesar de muitíssimas virtudes, Bolonha foi uma oportunidade perdida.
O primeiro aspecto foi uma palermice semântica. Não se sabe bem porquê, pessoas muitíssimo inteligentes escolherem para nomear o primeiro ciclo de três anos do ensino superior de “licenciatura”. Supostamente esta designação estava enraizada na tradição portuguesa. Passar uma designação atribuída a formações de seis, cinco e quatro anos para uma de três anos só poderia causar confusão. Ainda pior que isso foi o facto de não ter havido um esforço de optar pela banda larga no primeiro ciclo. À partida criaram-se as mesmas e se não ainda mais entradas em ramos autónomos profissionalizantes do que na situação pré-Bolonha para salvaguardar os pequenos feudos académicos. Cedo se percebeu que uma nova entidade teria que nascer: o mestrado integrado de cinco anos foi instituído, espartilhando ainda mais a opção profissionalizante. Esta criação poderia dar um sinal tanto ao mercado como aos estudantes de que qualquer profissão que requer estudos universitários só poderia ser abraçada após quatro ou cinco anos de frequência, mas a pressão para atrair alunos abriu consideravelmente o leque das licenciaturas “profissionais”. As designações de profissões atribuídas a cursos de três anos reforçaram este disparate. O novo “curso”, irremediavelmente, estigmatizou os licenciados bolonheses como inferiores aos pré-Bolonha.
Para evitar esta confusão semântica, teria sido simples chamar “licenciatura” às formações de quatro anos que juntariam um bacharelato de três anos a mais um ano de pós-graduação correspondente ao ano curricular do mestrado e, naturalmente, “mestrado” ao percurso completo de cinco anos. O sistema português teria assim três graus: bacharel, mestre e doutor com uma graduação intermédia entre os dois primeiros — a licenciatura. Isto iria “obrigar” os alunos a optar por cursar um mestrado, ainda que por um ano, para obterem o grau equivalente ao existente até 2005, ajudando a viabilizar cursos de mestrado pela frequência da sua componente curricular.
Por outro lado, a universidade portuguesa vê-se confrontada com a necessidade de assumir políticas que contribuam para a atracção e fixação de jovens altamente preparados nos graus mais elevados. Todas sabem isto, não é novidade. Para atingir este objectivo, uma das possibilidades é que o próprio sistema se apresente como aberto a carreiras docentes e de investigação acessíveis a jovens de todo o mundo. No entanto, o inbreeding, com os fenómenos de “mediocratização” daí decorrentes, a própria carreira académica e a troika bloquearam a nossa universidade, com a agravante de o Estado ter investido numa nova geração de doutorados aqui e no estrangeiro que agora batem com o nariz na porta do sistema. Tal como o país, o corpo docente é... maduro e não seria mau pensar numa idade de reforma mais baixa do que para o resto da população. Se os docentes maiores de 60 anos se reformassem, as universidades libertariam 30% dos seus lugares do quadro, em geral ocupados por professores catedráticos, e permitiriam a entrada de igual número ou mesmo metade de professores auxiliares (isto porque os professores catedráticos leccionam menos horas) recebendo quase metade do salário. Entre o deve e o haver das saídas para os fundos de pensões e as entradas para o sistema, talvez exista uma contabilidade que valha a pena fazer, sobretudo se essa possibilidade de carreira atraísse mais jovens qualificados a Portugal (e, é claro, evitar que os nossos saíssem).
Recentemente, no quadro das avaliações da A3ES dos ciclos de estudos (leia-se “cursos” em pré-bolonhês) em todas as auto-avaliações realizadas foram realizadas análises FOFA (SWOT em inglês), onde foram identificadas as Forças, as Oportunidades, as Fraquezas e as Ameaças de cada curso. Resultando da minha experiência em Comissões de Avaliação Externa, quase seria capaz de apostar que nas Forças, de um modo recorrente, são indicadas as maravilhosas condições da vida em Portugal com a sua capacidade de atracção, a dedicação e juventude do corpo docente e, para quase todos, características próprias da instituição.
Na A3ES existe hoje uma quantidade de informação sem paralelo sobre o ensino superior português, como é que ele se vê e como é que se auto perspectiva. Julgo que a análise de conteúdo dos milhares de processos de auto-avaliação no que se refere às análises SWOT deveria, como é óbvio, servir de base à projecção do futuro das universidades portuguesas. Antes que tal estudo se realize deixem-me lançar, em síntese, algumas ideias:
1. Mudar quanto antes a designação dos graus para bacharel, mestre e doutor, introduzindo a licenciatura como conclusão do primeiro ano de mestrado. (O Governo veio agora criar mestrados de um ano que agravam a situação e que irão esvaziar os verdadeiros mestrados.)
2. Há que reformar claramente os três graus partindo da “banda larga” no primeiro ciclo para uma especialização profissionalizante no segundo ciclo e de investigação no terceiro ciclo. “Partir” os mestrados integrados. (por exemplo: a formação específica em Medicina deveria iniciar-se após um bacharelato em Ciências tal como a formação específica em Arquitectura deveria seguir-se a um bacharelato em Artes ou Design prolongando-se para o equivalente ao terceiro ciclo.) Este tópico daria para um artigo inteiro.
3. Pensar a universidade a partir dos mestrados como o seu “core business” e consequentemente criar um sistema internacional de bolsas especialmente vocacionado para este grau promovendo, por exemplo, o regresso de alunos Erasmus de licenciatura.
4. Os politécnicos devem mudar a sua designação para universidade se puderem cumprir as condições previstas no Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior para a constituição de uma universidade logo que tenham condições para leccionar três doutoramentos em três áreas diferentes.
5. Não é demais insistir num refresh do sistema através do seu corpo docente. Seria também importante criar condições para uma maior mobilidade docente no seu interior. Esta mobilidade só se alcançará com maior autonomia financeira libertando as instituições para realizarem uma política de contratações.
6. As provas de agregação deveriam ser realizadas antes da categoria de professor associado com uma avaliação paritária entre capacidade científica e aptidão pedagógica com classificações qualitativas a todos os itens em avaliação servindo de base de selecção para a entrada na “tenure”. (o actual sistema de avaliação para a nomeação definitiva promove o inbreeding.)
7. Quanto ao refreshment das instituições, foram dados passos importantes com a criação dos regimes fundacionais mas ainda há mais a fazer. A criação de Endowmnent Funds para universidades que optem por ser geridas em regime fundacional seria certamente uma boa ajuda. Se fomos capazes de despejar milhares de milhões de euros nos poços sem fundo de bancos falidos, porque não seremos capazes de criar estes fundos?
8. Deve ser adoptada uma política fiscal que favoreça fortemente qualquer doação, investimento, ou simplesmente propinas no ensino superior.
9. Procurar envolver as grandes fundações como entidades instituidoras de estabelecimentos de ES, mesmo adquirindo alguns dos existentes.
10. Financiar directamente os alunos. Este modelo promoverá a livre escolha pela qualidade elevando a competitividade e a promoção da excelência.
Por fim, depois de 16 anos a leccionar no ensino superior do Estado e mais 16 no ensino superior não estatal (o particular), julgo ter algumas convicções sobre estes dois veículos e o seu futuro que gostaria de partilhar mas ficará para próxima oportunidade.
Em conclusão, há que reforçar que este é um artigo de opinião e por isso reflecte uma opinião. Naturalmente que outros perante a mesma situação histórica terão outra opinião. Também qualquer um dos leitores poderá encontrar recentemente outras pessoas que abertamente colocaram questões e problemas e mesmo propuseram soluções para as universidades, até mesmo neste jornal e, obviamente, no Governo.
Queria só terminar deixando uma nota de admiração pela Educação no seu todo e pelo Ensino Superior. Esta actividade é sempre desafiante, prestigiosa, apaixonante e, em consequência, servida, na sua grande maioria, por pessoas de altíssima qualidade, empenhadas e orgulhosas do que fazem.