É hora de chorar a Florida e rezar, até ao próximo tiroteio nos EUA

Em 2013, quando Barack Obama estava na Casa Branca e o Partido Democrata estava em maioria no Senado, as leis de controlo de armas não foram alteradas, mesmo depois de terem sido mortas 20 crianças numa escola primária.

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Pelo menos 17 pessoas foram mortas numa escola na Florida LUSA/GIORGIO VIERA

O mais recente tiroteio numa escola norte-americana aconteceu há poucas horas – em minutos, um rapaz de 19 anos chamado Nikolas Cruz entrou na Escola Secundária Marjory Stoneman Douglas, na Florida, accionou o alarme de incêndio e no meio da confusão que se seguiu matou 17 alunos e funcionários com uma espingarda semi-automática e "inúmeras munições". Mas vale a pena recuar no tempo seis anos, até ao estado do Tennessee, para se perceber um pouco melhor porque é que quase nada muda nas leis de controlo de armas nos Estados Unidos mesmo quando entre as vítimas destes tiroteios estão dezenas de crianças ou adolescentes.

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O mais recente tiroteio numa escola norte-americana aconteceu há poucas horas – em minutos, um rapaz de 19 anos chamado Nikolas Cruz entrou na Escola Secundária Marjory Stoneman Douglas, na Florida, accionou o alarme de incêndio e no meio da confusão que se seguiu matou 17 alunos e funcionários com uma espingarda semi-automática e "inúmeras munições". Mas vale a pena recuar no tempo seis anos, até ao estado do Tennessee, para se perceber um pouco melhor porque é que quase nada muda nas leis de controlo de armas nos Estados Unidos mesmo quando entre as vítimas destes tiroteios estão dezenas de crianças ou adolescentes.

No dia 13 de Julho de 2012, o poderoso grupo de pressão a favor da posse de armas, a National Rifle Association (NRA), publicou um vídeo no YouTube de apoio a Courtney Rogers, uma tenente-coronel da Força Aérea norte-americana que se candidatava então, pela primeira vez na vida, a um cargo político: membro da Câmara dos Representantes do estado do Tennessee, pelo Partido Republicano.

Para lá chegar, Rogers tinha de derrotar a sua maior adversária nas primárias do Partido Republicano, Debra Maggart – que era a titular do cargo desde 2004 e tinha participado em seis comissões especiais da Câmara dos Representantes. Para além da vasta experiência política e do sucesso em várias eleições, Maggart tinha também a nota máxima atribuída pela NRA aos titulares de cargos públicos (um A+) – uma nota reservada para os políticos que "não só têm um registo de votações excelente em todos os assuntos críticos para a NRA, como fazem também um esforço vigoroso para promover e defender a Segunda Emenda".

Mas isso não chegou para a NRA. Quando a sua candidata natural, Debra Maggart, suspendeu a discussão sobre uma proposta favorável aos defensores da posse de armas, a NRA reagiu com fúria: uniu-se ao movimento ultraconservador Tea Party no apoio à inexperiente Courtney Rogers e passou a bombardear Debra Maggart com anúncios a compará-la ao Presidente Barack Obama. "Apesar de ambos dizerem que apoiam os direitos da Segunda Emenda, ambos trabalharam contra as nossas liberdades por baixo do pano", disse naquele vídeo publicado no YouTube Chris Cox, o líder da divisão de lobbying da NRA. Um mês depois, Courtney Rogers derrotava a mais experiente Debra Maggart e chegaria depois à Câmara dos Representantes, após uma vitória já esperada contra o candidato do Partido Democrata.

Respeitar a NRA

À primeira vista, a ligação entre esta história no Tennessee e o tiroteio de quarta-feira na Florida pode ser confusa, mas não faltam especialistas nos Estados Unidos a dizer que nada podia ser mais claro.

"Quem não tiver uma boa nota [da NRA], especialmente um candidato do Partido Republicano, pode ser facilmente derrotado nas primárias por um candidato mais à direita. E a NRA escolhe e apoia o candidato certo para essa tarefa", disse à rádio NPR, em Outubro passado, o jornalista Mike Spies, finalista dos prémios de jornalismo Livingston devido à sua cobertura das campanhas lançadas pela NRA para ver aprovadas leis de posse de armas cada vez mais permissivas. "E basta fazer isso uma vez, ou de vez em quando, para enviar a mensagem", disse Spies – a mensagem de que os outros candidatos do Partido Republicano devem estimar muito bem a sua relação com a NRA se quiserem manter-se na política. E, como mostra o caso do Tennessee em 2012, não basta ter uma nota A+; é preciso fazer absolutamente tudo o que a NRA quiser.

É por isso que do lado do Partido Democrata, principalmente entre os eleitores mais liberais e progressistas, surgem sempre acusações de hipocrisia quando os políticos do Partido Republicano aparecem nas redes sociais a apelarem a orações pelas vítimas de mais um tiroteio – numa escola, numa sala de cinema, numa discoteca ou num concerto ao ar livre.

"Hoje é aquele dia terrível que rezamos para que nunca chegue", escreveu no Twitter Marco Rubio, senador da Florida, poucas horas depois do tiroteio na Escola Secundária Marjory Stoneman Douglas. Pouco depois, várias pessoas inundavam a mensagem do senador com um tema comum: desde que entrou na política, Rubio, de 46 anos, recebeu mais de três milhões de dólares da NRA.

O jornal nova-iorquino New York Daily News fez mesmo uma lista: primeiro Rubio, depois o senador Rob Portman (Ohio, 3.061.941 dólares da NRA), e também Paul Ryan, Ron Johnson, Pat Toomey, Rand Paul...

Armas ou saúde mental

Sempre que há mais um tiroteio com vários mortos nos EUA, especialmente quando acontecem em escolas, o país político divide-se em dois campos.

De um lado, estão os que dizem que chegou a hora de apertar as leis de controlo de armas, porque não é preciso ser-se especialista para se perceber que há uma ligação entre os mais de 300 milhões de armas espalhadas por um país com 320 milhões de habitantes e os quase 300 tiroteios em escolas nos últimos cinco anos.

Do outro lado estão os defensores da ideia de que não é produtivo discutir propostas em cima de um tiroteio tão traumático como o que aconteceu quarta-feira. É uma ideia que surge sempre que há um tiroteio: há 11 anos, duas semanas depois de Seung-Hui Cho ter matado 32 pessoas na universidade Virginia Tech, o jornalista Adam Gopnick, da revista New Yorker, começava assim um texto intitulado Shootings: "Os telemóveis que estavam nos bolsos dos alunos mortos ainda estavam a tocar quando nos disseram que era errado perguntar porquê."

"Disseram aos pais, e a todos nós, que não era o momento certo para perguntar como é que o tiroteio aconteceu – especificamente, como é que um estudante obviamente perturbado, com um passado de problemas mentais, foi capaz de comprar armas cujo principal propósito é matar pessoas – e porque é que isto acontece vezes sem conta na América", escreveu Gopnick em 2007.

Os números não são simpáticos para quem está no lado da discussão em que se encontram responsáveis como o Presidente norte-americano, Donald Trump: entre 2000 e 2013, mais americanos morreram nos EUA em casos com armas de fogo do que o total de mortes por VIH/Sida, excesso de drogas, nas guerras do Afeganistão e do Iraque e em ataques terroristas.

Esta quinta-feira, numa declaração sobre o tiroteio na Florida, Trump disse várias coisas, mas nenhuma sobre o controlo de armas.

"Não é suficiente adoptar medidas que nos fazem sentir como se estivéssemos a fazer a diferença", disse o Presidente, prometendo pôr em primeiro lugar a "segurança nas escolas" e "o problema da saúde mental". Não houve qualquer referência à arma usada pelo atirador, uma AR-15 semiautomática – uma versão civil da militar M-16, usada em vários tiroteios semelhantes nos EUA nos últimos anos e elogiada pela NRA como uma arma "customizável, confiável e precisa", para além de poder ser facilmente adaptada com componentes que aumentam ainda mais a sua capacidade destrutiva.

A ideia de que é preciso deixar passar algum tempo para que se comece a discutir políticas que reduzam a frequência dos tiroteios, e a de que a principal causa destes tiroteios é a saúde mental, foram também apresentadas no dia 14 de Dezembro de 2012, quando o atirador Adam Lanza matou 20 crianças de entre cinco e sete anos de idade numa escola primária em Newtown, no estado do Connecticut. Nessa altura, o Presidente Barack Obama fez declarações emocionadas e a maioria do Partido Democrata no Senado – somando-se ao facto de as vítimas serem crianças – levava a crer que dessa vez é que a situação iria mudar.

Mas nem com uma maioria no Senado, e mesmo com a respeitada senadora da Califórnia, Dianne Feinstein, a mostrar no Congresso fotografias das caras das 20 crianças mortas em Newtown, o Partido Democrata foi capaz de se manter unido – eram 55 senadores, e é verdade que precisavam de 60 votos para proibirem a venda de armas de assalto e carregadores com mais de dez balas, mas 15 deles votaram contra, pelo que dessa vez não bastou atirar as culpas para cima do Partido Republicano.

No dia 19 de Junho de 2015, dias depois de um tiroteio numa base militar no Tennessee que fez seis mortos, o comentador político britânico Dan Hodges partilhou uma mensagem no Twitter que muitos temem ser a realidade, e que nenhum discurso optimista depois do que aconteceu esta quarta-feira deverá conseguir alterar: "Olhando para trás, Sandy Hook marcou o fim do debate do controlo de armas nos Estados Unidos. Assim que a América decidiu que matar crianças é tolerável, acabou."