A tradição do B.Leza faz as pazes com os ritmos da Enchufada

Há uns anos, no B.Leza, reino do semba ou da morna, era raro ouvir-se kuduro ou afro-house. Entretanto, muita coisa mudou. E a partir desta quinta-feira haverá ali noites mensais da Enchufada, a casa dos Buraka Som Sistema.

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Pedro, Rastronaut, Branko, Dotorado Pro e Progressivu DR

Há cerca de 14 anos, quando a editora Enchufada, embrião daquilo que viriam a ser mais tarde os Buraka Som Sistema, dava os primeiros passos, o B.Leza ainda era no Largo do Conde Barão, em Santos, Lisboa. Hoje fica no Cais da Ribeira Nova, Armazém B, junto ao rio. O espaço físico é outro. Mas o seu significado simbólico continua a ser o mesmo. Quando se pensa em miscigenação cultural, é impossível não focar o papel do B.Leza. Desde sempre que os corpos ali balançam sensualmente ao ritmo do semba angolano ou do funaná cabo-verdiano, foi ali que muitas carreiras de músicos afrodescendentes se viram impulsionadas.

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Há cerca de 14 anos, quando a editora Enchufada, embrião daquilo que viriam a ser mais tarde os Buraka Som Sistema, dava os primeiros passos, o B.Leza ainda era no Largo do Conde Barão, em Santos, Lisboa. Hoje fica no Cais da Ribeira Nova, Armazém B, junto ao rio. O espaço físico é outro. Mas o seu significado simbólico continua a ser o mesmo. Quando se pensa em miscigenação cultural, é impossível não focar o papel do B.Leza. Desde sempre que os corpos ali balançam sensualmente ao ritmo do semba angolano ou do funaná cabo-verdiano, foi ali que muitas carreiras de músicos afrodescendentes se viram impulsionadas.

Ao longo dos anos, o B.Leza assumiu-se como uma espécie de guardião de uma certa tradição musical africana, fosse ela simbolizada pelos sembas, pelas mornas, pelas coladeras ou pelo funaná. Pelo contrário, todos os mais recentes desenvolvimentos musicais que permitiram a emergência da ideia de uma cultura global negra, corporizada pelo hip-hop, pelo kuduro ou pela kizomba, sempre teve ali, salvo várias excepções, mais dificuldades de acolhimento. Parecia existir um vazio ou divórcio geracional. Daí que seja um momento especial a noite mensal da Enchufada que se inicia esta quinta-feira no B.Leza, intitulada Na Surra.

“Esse divórcio existia sim”, reconhece Madalena Saudade, a principal responsável pelo B.Leza, “e não sei se já terá sido superado”, ri-se ela, porque “continuam a existir pessoas com uma visão extremada”. E explica: “Vêm aqui músicos que me fazem recomendações acerca de tudo o que não sejam mornas ou sembas. Mas existem cada vez mais novas misturas, e é preciso perceber que isso não é renegar a tradição, por isso não me parece que faça sentido rejeitar músicas actuais, dançáveis e de rua.”

Se o semba e a morna, ao nível dos discursos, representam uma certa ideia de autenticidade, ou a África que ficou, o kuduro ou o afro-house, abordados nas sessões da Enchufada, constituem um desafio a essas noções. São bricolagem. Tanto desafiam ideias romantizadas de África como a tecnicidade ocidental. “Temos consciência desses conflitos”, diz-nos João Pedro, ou seja Rastronaut, que, ao lado de João Barbosa (Branko), Pedro, Dotorado Pro e Progressivu, será um dos alicerces das noites Na Surra. “A ideia é tentar encontrar um equilíbrio entre essa electrónica de dança, que pode ser estranha a uma parte do público clássico do B.Leza, e as influências de algumas sonoridades de Angola ou de Cabo Verde.”

Durante sete anos, a Enchufada produziu as Hard Ass Sessions no Lux. “Agora havia vontade de experimentar coisas diferentes noutro local”, conta João. “O B.Leza é um local com história e sentimos que faz o mesmo tipo de conexões, embora num contexto de música ao vivo, enquanto nós estamos mais virados para musica electrónica de clube.”

Da parte do B.Leza, segundo Madalena Saudade, a expectativa é alta. “Quando conversámos pela primeira vez percebi de imediato que do outro lado tinha pessoas que fazem acontecer. Por outro lado, sendo o B.Leza uma casa de actuações ao vivo e da tradição, gosto de pensar nela como sendo também um caldeirão onde existe espaço para muita coisa acontecer, e por isso sinto-me contente por esta casa que transpira história poder agora encontrar a música electrónica.”

Não é apenas o kuduro que entra agora pela porta da frente do B.Leza. A kizomba também ali é dançada nas tardes de domingo. “Não sou fã de kizomba, mas respeito o fenómeno mundial. É algo que junta todas as gerações e isso é digno de apreço. Lisboa mudou muito nos últimos anos e com isso também as pessoas e a música. Estranha-se no início, tenta-se compreender depois, e a coisa acaba por fluir para o corpo.”

Isso mesmo foi o que aconteceu quando a Enchufada e os Buraka legitimaram sonoridades até aí pouco visíveis. Apesar do sucesso e da avaliação mundial positiva, em Portugal continuam a sentir-se diferentes velocidades na forma como o fenómeno é apreendido. “Temos aqui uma cena musical própria, impulsionada pelos Buraka e pela Enchufada e depois pela Príncipe Discos e outros, e ao mesmo tempo existe um grande interesse do exterior sobre o que aqui se passa; mas para além de nós, com regularidade, existe apenas a noite da Príncipe no MusicBox, o que é pouco”, diz João. “Ou seja, há cada vez mais pessoas a ouvir esta música, em alternativa a linguagens estabelecidas como o house ou o tecno, mas ainda há muito por fazer. Esta noite quer contribuir para isso.”

O B.Leza mudou-se para a nova morada há seis anos. O antigo edifício é encarado por Madalena como uma espécie de “casa-mãe”. Mas agora “é preciso olhar por este”, afirma. “E esta quinta-feira vai ser mais um momento importante na nossa história.” E lança, entre risos: “Não tenho paciência para aquelas pessoas que só se lembram que algo existe depois de desaparecer. É preciso valorizar o presente.”