Revolução Industrial 4.0 e alterações climáticas: que grande salto?
Todas as revoluções industriais até hoje implicaram revoluções energéticas.
Klaus Schwab, fundador do Fórum Económico Mundial, disse recentemente em Davos que a Revolução Industrial 4.0 "vai ser um tsunami". Não duvidamos. Os representantes das grandes multinacionais tecnológicas como Bill Gates, Mark Zuckerberg, Elon Musk ou Jack Ma também nos dizem que a Revolução Industrial 4.0 vai mudar tudo na maneira como trabalhamos, como nos relacionamos e mesmo como pensamos. Instituições internacionais como a OIT, a OCDE ou a União Europeia apresentam estudos e organizam conferências sobre o impacto que estas mudanças terão no contrato social, no emprego, na educação. Curiosamente, este debate não tem em conta o maior desafio que a humanidade enfrenta: as alterações climáticas e a mudança dos padrões energéticos. Assim, o tsunami de uma Revolução Industrial 4.0 embate de frente com outro tsunami. No meio, a Humanidade no pior dos cenários.
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Klaus Schwab, fundador do Fórum Económico Mundial, disse recentemente em Davos que a Revolução Industrial 4.0 "vai ser um tsunami". Não duvidamos. Os representantes das grandes multinacionais tecnológicas como Bill Gates, Mark Zuckerberg, Elon Musk ou Jack Ma também nos dizem que a Revolução Industrial 4.0 vai mudar tudo na maneira como trabalhamos, como nos relacionamos e mesmo como pensamos. Instituições internacionais como a OIT, a OCDE ou a União Europeia apresentam estudos e organizam conferências sobre o impacto que estas mudanças terão no contrato social, no emprego, na educação. Curiosamente, este debate não tem em conta o maior desafio que a humanidade enfrenta: as alterações climáticas e a mudança dos padrões energéticos. Assim, o tsunami de uma Revolução Industrial 4.0 embate de frente com outro tsunami. No meio, a Humanidade no pior dos cenários.
A Revolução Industrial 4.0 tem duas forças motrizes: a tecnologia e a globalização. A tecnologia tem ditado a automatização e a miniaturização de vários processos, reduzindo a necessidade de trabalho humano em alguns sectores. A capacidade de armazenar e tratar dados cada vez maiores permite novos cenários, mas a inteligência artificial (IA) será mais disruptiva do que tudo o que vimos antes: quem não antevê que uma IA munida de BigData seja capaz de prever a probabilidade de cancro de formas que os médicos nunca poderão fazer? Ou que uma IA não possa defender um cliente em tribunal? Ou escrever notícias para um jornal? A globalização, nascida da desregulação do comércio internacional e da maior integração dos factores de produção, tem significado deslocalização de indústrias, competição pelo emprego e pelo salário entre trabalhadores que podem estar perfeitamente em continentes diferentes. A perspectiva em termos do futuro do trabalho é-nos apresentada com laivos de distopia: a indústria 4.0 acabará com quase todos os empregos através da digitalização e automatização de todos os aspectos da produção e distribuição: os robôs! Os robôs! O mundo que vemos em séries como Black Mirror é o horizonte que nos apresentam como mais plausível.
Mas no discurso público e mediático não se fala de outras duas ondas que concorrem em sentido contrário: a energia e as alterações climáticas. Todas as revoluções industriais até hoje implicaram revoluções energéticas. Os avanços nos últimos dois séculos basearam-se em combustíveis fósseis e, apesar de alguma dissociação energética a que temos assistido nos últimos anos (a capacidade de fazer mais com menos), os dados tendem a indicar que o consumo de energia em termos mundiais irá aumentar, ainda mais se fizermos caso das promessas da Revolução Industrial 4.0 (é preciso sempre descontar o viés pelo statu quo de quem faz as previsões, nomeadamente a Agência Internacional de Energia, com a sua crónica supervalorização dos combustíveis fósseis e a crónica subavaliação das energias renováveis).
Não se antevê, excepto nos sonhos de positivistas, uma nova fonte mágica de energia e globalmente prevê-se um aumento do consumo energético. Mesmo um aumento sem precedentes da eficiência energética é insuficiente, já que todos os seus ganhos são absorvidos pela contínua expansão do consumo. Isso parece querer dizer que nos iremos manter dependentes dos combustíveis fósseis. Sem uma alternativa urgente a essa dependência de fósseis, a situação climática torna-se catastrófica. Todos os anos deste século estão na lista dos 20 anos mais quente desde que há registos e o agudizar dos fenómenos climáticos extremos até em Davos é identificado como a maior ameaça que alguma existiu sobre a civilização humana.
Hoje conhecem-se reservas de combustíveis fósseis equivalentes quase ao dobro do que já foi queimado desde a primeira Revolução Industrial, no séc. XIX, mas há dois enormes problemas. Por um lado, a taxa de rendimento energético é cada vez mais baixa, ou seja, gasta-se cada vez mais energia para extrair esses recursos energéticos e usam-se técnicas cada vez mais prejudiciais ao ambiente — fracturação hidráulica para o petróleo e gás de xisto, perfuração em deep-offshore no mar (como a Galp/ENI quer fazer em Aljezur), areias betuminosas. Por outro lado, para atingir a meta do aumento máximo da temperatura em 2ºC até 2100 (a barreira de segurança climática do Acordo de Paris), não poderemos utilizar mais do que 20% do total de reservas hoje identificadas de petróleo, gás e carvão. As alterações climáticas irão aumentar ainda mais a ocorrência de fenómenos climáticos extremos como secas, cheias, furacões, incêndios e ondas de calor, tudo num cenário em que não mudamos a nossa forma de viver e, principalmente, de produzir. Assim, só podemos antever um cenário ainda mais catastrófico se se embarcar na panaceia de uma Revolução Industrial 4.0 que não tem no seu centro as necessárias ações de mitigação e adaptação às alterações climáticas.
Acresce que começar o caminho na direção da Revolução Industrial 4.0 sem nos prepararmos para o futuro das alterações climáticas significa destruir os recursos (energéticos, materiais e financeiros) que nos permitiriam realizar a necessária transição energética e social para o nosso futuro climático. Ou seja, o salto em frente rumo à revolução industrial 4.0 é uma quimera que pode criar o pior dos cenários: a Humanidade presa a meio da ponte, sem o prometido tsunami tecnológico e sem meios para a transição energética e para as medidas de adaptação e mitigação às alterações climáticas. Esta é só a última tentativa de ignorar o colapso climático provocado pelo nosso sistema produtivo, procurando freneticamente uma fuga para a frente que permita estender lucros e ilusões mais algumas décadas.
No entanto, nem tudo são más notícias. Onde a Revolução Industrial 4.0 vaticina uma destruição de emprego sem precedentes, a mudança do sistema energético e produtivo, assim como a adaptação às alterações climáticas, implicará uma criação massiva de emprego em quase todos os setores: energia, transportes, agricultura, floresta, comunicações, construção, reabilitação, educação, saúde, investigação. Milhares de milhões de empregos sem os quais não poderemos passar. Um debate democrático sobre tudo o que temos de fazer para reduzir o impacto das alterações climáticas e para realizar a transição energética pode colocar finalmente a tecnologia ao serviço da Humanidade com o objectivo de garantir a viabilidade da civilização humana nos próximos séculos, criando até o excedente de tempo para que possamos, cada vez mais, ser pessoas e não máquinas. Mas o objectivo desses empregos não será criar lucros, excepto o lucro que significa continuar a existir civilização humana.
Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico