Infâncias ao contrário

Com extrema delicadeza, Vader alia o olhar cru a uma imensa compaixão pelo humano, deslocando para a intimidade de cada espectador o confronto com o incontornável elo trágico a ligar quem fica e quem parte.

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Vader (“pai”, em neerlandês) é um híbrido entre dança, teatro, circo, opereta e décor de cinema. OLEG DEGTIAROV

Na penumbra do palco entrevêem-se mesas cobertas de toalhas brancas e, ao canto, um piano de parede antigo. Longos reposteiros amarelecidos pelo tempo suspensos sobre paredes de um verde deslavado envolvem a cena. Os instantes iniciais da peça têm uma solenidade de catedral, o quadro vivo de uma última ceia. Mas a luz cresce e o que vemos é, afinal, um refeitório: funcionários de bata cinzenta varrem o chão de expressão ausente e há idosos a deambular, pelo próprio pé ou em cadeiras de rodas. Entre estados de apatia, convívio e refeições, este é o quotidiano de um lar para a terceira idade.

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Na penumbra do palco entrevêem-se mesas cobertas de toalhas brancas e, ao canto, um piano de parede antigo. Longos reposteiros amarelecidos pelo tempo suspensos sobre paredes de um verde deslavado envolvem a cena. Os instantes iniciais da peça têm uma solenidade de catedral, o quadro vivo de uma última ceia. Mas a luz cresce e o que vemos é, afinal, um refeitório: funcionários de bata cinzenta varrem o chão de expressão ausente e há idosos a deambular, pelo próprio pé ou em cadeiras de rodas. Entre estados de apatia, convívio e refeições, este é o quotidiano de um lar para a terceira idade.

Uma mulher nova e elegante chega, apressada, para uma visita. Quando se vai embora, a carteira que traz ao ombro parece opor-se misteriosamente ao seu movimento de saída. Como se as forças contraditórias representassem uma ambivalência de emoções.

Nesta atmosfera semi-onírica, outro contraste: um pequeno palanque, ao fundo do palco, será o cenário para insólitos cruzamentos entre intérpretes seniores e jovens, que, alternando nos papéis de instrumentistas e cantores, procuram animar esta pequena comunidade sonolenta. São espantosamente polivalentes, a revezar-se nas funções de bailarinos, enfermeiros, actores, entertainers, pais, ou de filhos em visita.

Vader (“pai”, em neerlandês) é um híbrido entre dança, teatro, circo, opereta e décor de cinema. O elevado pé direito do espaço acentua a pequenez dos personagens, coloca-nos de modo subliminar perante a escala diminuta da existência humana. A concepção cénica – imagem de marca dos Peeping Tom – foi o gatilho para esta criação, que uma vez mais fez jus ao hiper-realismo e surrealismo de que são reputados.

A passos, o estupendo virtuosismo dos intérpretes e certos apontamentos cómicos fizeram temer que a peça derivasse nalguma ligeireza. Mas a bem urdida sucessão de quadros foi ganhando espessura sem nunca perder poder comunicativo. Do humor ou do absurdo resultaram metáforas eficazes: os esforços da contorcionista para se descalçar são o contraponto das limitações da artrite; a radiosa cantora que vai definhando enquanto entoa a célebre Águas de Março (de Elis Regina); canções populares dos anos 60/70 convocam lugares de memória e nostalgia; a excursão prometida ao pai por um filho sempre impaciente e de olho no relógio, deriva num vagaroso passeio de dois anciãos; a higiene íntima prestada ao idoso num leito que se transforma em morgue traz o eco de que a dependência faz da velhice uma espécie de infância ao contrário. A dignidade poderá estar em jogo, mas o vetusto pai Leo (De Beul, 1938) não desiste de tocar piano e de namoriscar as suas colegas de residência.

Apesar dos novos jargões do “envelhecimento positivo”, este continua a ser um tema socialmente difícil. Particularmente para as artes que lidam com o corpo. Esquivando-se ao melodrama e à tentação de recolher dividendos alimentados pela má consciência colectiva e individual, Vader fala-nos com ousadia de sentimentos complexos, do envelhecimento solitário, medicalizado e remetido à invisibilidade das instituições, e das relações entre gerações: o afecto e a culpa, os jogos de poder, os ressentimentos e ajustes de conta familiares. Com extrema delicadeza, alia o olhar cru a uma imensa compaixão pelo humano, deslocando para a intimidade de cada espectador o confronto com o incontornável elo trágico a ligar quem fica e quem parte.

O colectivo belga, fundado 2000 sob direcção de Gabriela Carrizo (Argentina, 1970) e Franck Chartier (França, 1967), soube optimizar as distintas competências (teatro, canto, dança, artes marciais, ginástica acrobática, circo …), idades e morfologias dos intérpretes. Conheceram, decerto, muitas residências sénior e lá recolherem histórias pessoais; e, em cada digressão, apostam na integração parcimoniosa de figurantes do próprio lugar, o que ajuda a localizar cada apresentação. Procedimentos rigorosos que os colocam entre os melhores na linhagem do tanztheater europeu.