In memoriam de Guilherme da Palma Carlos
É difícil pensar a Ordem dos Advogados sem GPC. A instituição, sem ele, não é bem o nosso mundo.
O advogado Guilherme da Palma Carlos (GPC) faleceu. A notícia correu brutal e inesperada, no dia 21 de Janeiro, sem uma referência que fosse na comunicação social.
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O advogado Guilherme da Palma Carlos (GPC) faleceu. A notícia correu brutal e inesperada, no dia 21 de Janeiro, sem uma referência que fosse na comunicação social.
GPC pertencia a uma geração de advogados, os chamados “advogados de causas”, também conhecidos por “advogados cidadãos”, dada a sua particular sensibilidade com a realização dos direitos humanos, e com a justiça e pela liberdade, e uma preocupação indelével de participação cívica activa no âmbito da OA, de resistência à ditadura do Estado Novo.
Conheci-o no ano de 1962, era então membro da Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra (AAC), e dela expulso por dois anos, com os demais elementos, de todas as escolas nacionais por ter realizado o I Encontro Nacional de Estudantes. Na sequência destes eventos fui preso no Forte de Caxias, com mais 45 líderes do movimento. Porque a prisão corria o risco de se prolongar sem culpa formada, os estudantes presos escreveram uma carta aos professores Ferrer Correia e Eduardo Correia, pedindo-lhes o seu patrocínio forense. Estes professores eram persona non grata do regime e tinham sido impedidos pela ditadura de dar aulas, pelo que se inscreveram na Ordem dos Advogados, mas com inscrição suspensa a partir da data em que de novo regressaram à universidade. Por isso, anunciaram-nos que escreveram uma carta ao prof. Adelino Palma Carlos, para conferenciar connosco na cadeia e assumir o nosso patrocínio. Delegou este, então, em GPC, por o seu estatuto ser semelhante à impossibilidade dos seus colegas, também ele provisoriamente afastado da actividade docente. De imediato, e após diligências na OA, a cujos quadros dirigentes pertencia, pediu-me as procurações dos estudantes presos e prontificou-se de imediato a uma conferência connosco no Forte de Caxias. Por esta razão ou outras desconhecidas, três dias antes dessa visita, a PIDE/DGS a todos libertou.
Entretanto, porque a Direcção da AAC queria recorrer da expulsão, contactou de novo GPC para que assegurasse o nosso patrocínio, junto do Supremo Tribunal Administrativo. Com uma disponibilidade inteira e totalmente gratuita, com entusiasmo e grande dedicação à causa dos estudantes presos, foi nosso advogado nesse processo, com o n.º 435, 1.ª Secção.
Se memoro este evento, é para significar que a essa data os “advogados de causas”, no âmbito da Ordem dos Advogados, sempre estiveram solidários com a resistência à ditadura, como viria mais tarde a acontecer com Francisco Salgado Zenha, na defesa de Medeiros Ferreira, expulso de todas as escolas nacionais, por três anos, e cujas alegações de defesa deram origem a um livro intitulado Universidade (1967, Lisboa), hoje esgotado.
GPC integrou o Conselho Distrital de Lisboa em 1966, onde se manteve até 1999 e em 1972 foi membro do Conselho Geral presidido por Ângelo de Almeida Ribeiro, onde viveu os inesquecíveis tempos do I Congresso Nacional de Advogados, sendo neste seu mandato que foi atribuída a condecoração máxima da OA a Jorge Sampaio, a “Medalha de Ouro”.
Acentue-se que GPC sempre foi um advogado de prática individual da profissão. A OA não era para ele uma bandeira de conveniência sob a qual se acolhessem interesses ilegítimos e muitas vezes interesses espúrios. Para ele, ela era em si mesma, na sua unidade e na sua diversidade, na sua história, no seu presente e no seu provir, um património comum que era necessário conhecer, de que era necessário cuidar, que era necessário engrandecer. Este ideal defluía-lhe de uma ética praticada independentemente das circunstâncias do tempo e da fortuna, muitas vezes, contra as circunstâncias do tempo.
A GPC devem-se outras valiosas contribuições na defesa da dignificação da profissão, nomeadamente a sua intervenção no I Congresso Nacional dos Advogados, e nas negociações com o então ministro da Justiça, prof. Mário Júlio, que impôs várias restrições e condicionalismos à realização do mesmo, entre elas duas inacreditáveis: as conclusões do Congresso não poderiam falar dos direitos humanos nem das medidas de segurança. Como quem presidiu à sua elaboração foi o advogado Sá Carneiro, este pura e simplesmente as desprezou. O Congresso correu o risco de não se realizar e só a diplomacia do bastonário da altura, Ângelo de Almeida Ribeiro, superou as dificuldades.
Uma das contribuições de GPC para a OA reside no facto de ter acompanhado a doação que Adelino Palma Carlos lhe fez do seu esplendoroso gabinete de trabalho, com inclusão de uma valiosa biblioteca, sendo esse gabinete, hoje, a “Sala Adelino Palma Carlos”, e que pela sua nobreza é a sala de visita da OA, onde se praticam os actos solenes mais restritos e, ao mesmo tempo, sede da Comissão dos Direitos Humanos da OA.
É difícil pensar a Ordem dos Advogados sem GPC. A instituição, sem ele, não é bem o nosso mundo, é um mundo diminuído onde falta o gesto terno e elegante, compassivo, o olhar longo e profundamente humano desse admirável homem e advogado que tivemos a felicidade de conhecer de perto. Deixou um legado de grande humanismo, porque GPC era uma pessoa fraterna e generosa, desde o furioso incêndio juvenil de advogado por convicção ao crepuscular fogo da última parte da sua vida, ameaçada já pela doença.
A homenagem e justa memória que hoje e aqui se lhe presta estilhaça o relativo esquecimento da sua morte, mesmo ao nível do Conselho Geral da OA, e é mais um passo no caminho da memoração de outros advogados prestigiados no âmbito da OA e cujo esquecimento será oportunamente resgatado. Ver-se-á em que tribuna.