Hestnes, a morte do arquitecto “americano”
Raúl Hestnes Ferreira (1931-2018) Prémio Valmor em 2002, morreu no domingo, em Lisboa, aos 86 anos. O arquitecto estava doente há algum tempo.
O arquitecto Raúl Hestnes Ferreira morreu aos 86 anos, no domingo, em Lisboa. O seu funeral realiza-se na quinta-feira ao meio-dia no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa, e o corpo do arquitecto será velado esta quarta-feira na Igreja da Graça.
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O arquitecto Raúl Hestnes Ferreira morreu aos 86 anos, no domingo, em Lisboa. O seu funeral realiza-se na quinta-feira ao meio-dia no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa, e o corpo do arquitecto será velado esta quarta-feira na Igreja da Graça.
Qual foi a importância de Raúl Hestnes Ferreira para a cultura arquitectónica portuguesa? Nascido em 1931 numa família ligada ao activismo político, filho do escritor José Gomes Ferreira, pai de quatro filhos, entre os quais o actor Pedro Hestnes (1962-2011) e a pintora Sílvia Hestnes Ferreira, viveu desde sempre em círculos políticos e culturais prolíferos. Durante a infância, esse ambiente seria fortemente caracterizado pela corrente neo-realista portuguesa. Foi preso político durante a ditadura salazarista e militante antifascista. Diplomou-se em Arquitectura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa no início da década de 1960.
Hestnes pertenceu à primeira geração que não participou activamente no I Congresso Nacional de Arquitectura de 1948. Escapou por isso da esfera da arquitectura moderna dos velhos mestres portugueses. Foi a sua geração que sobrepôs à cultura pragmática anterior uma nova linhagem culturalista, e esse é um dos seus grandes legados. O que significava procurar novas experiências académicas e culturais. Emigrou cedo. Escolheu os países nórdicos (tinha ascendência norueguesa através da sua mãe, Ingrid Hestnes), principalmente a Finlândia, ainda sob forte influência de Alvar Aalto, e os Estados Unidos da América, onde encontrou Louis Kanh, professor de Arquitectura na Universidade da Pensilvânia. Na América desembarcou já arquitecto.
A América dos anos 1960 significava um afastamento do eixo da Europa do Sul, culturas mais habituais para os portugueses, mas principalmente uma vontade em tocar geografias menos domésticas e mais internacionais. Nisso, Hestnes seria seguido por Manuel Vicente. A experiência americana iria posicioná-los criticamente em relação à arquitectura moderna. E se Vicente não escapou à atracção do “Império”, trabalhando em Macau, Hestnes encontrou em Portugal o seu espaço de liberdade criativa, e na zona sul do país, a sua geografia electiva.
Cumprindo percursos muito distintos, juntos haveriam de produzir uma viragem na arquitectura portuguesa, principalmente na que se praticava na capital, abrindo um vislumbre de pós-modernidade no cerne de uma cultura moderna “empedernida”, a meio da década de 1960. Tanto Hestnes como Vicente acabariam por pagar caro este afronto à cultura moderna. Muito valorizada pela historiografia que se começou a fazer nos anos 90 do século passado, essa produção moderna realizada em torno do Congresso, e revista pelo famoso inquérito à arquitectura regional (1955-1961), acabaria por encobrir tudo o que se seguiu, num anátema que agora começa a ser progressivamente desatado.
Quando chegou da América, Hestnes revelaria um pouco a lição de Kahn, ao desenhar as duas casas geminadas de Queijas (1968). O reportório que o velho mestre americano – nascido em 1901 na Estónia, e na América desde os cinco anos – teria passado ao jovem Hestnes compunha-se de uma forte formação em Arquitectura da Antiguidade Clássica e Medieval – que Kahn gostava de desenhar – e em palestras sobre materiais ou sobre luz.
O mestre Kahn “amava os inícios”, a geometria e a natureza. Hestnes procuraria numa primeira fase incorporar algumas menções à sua obra, quer através do recurso ao tijolo quer através das formas puras e volumes sóbrios. As duas casas geminadas de Queijas traziam essa novidade em relação à residência que desenhara oito anos antes para o pai, em Albarraque. Esta era ainda uma “casa da arquitectura portuguesa”, no sentido que reflectia as preocupações que emanavam no inquérito à arquitectura popular e provavelmente das próprias vivências neo-realistas que partilhara em ambiente familiar. Também por isso, esta primeira obra – realizada antes da aventura americana – tem sido sucessivamente apontada como um dos seu mais significativos contributos para a cultura portuguesa.
Apesar da beleza e do engenho da casa de Albarraque, edifícios como os que começaria a projectar para cidades alentejanas como Beja, já no rescaldo da revolução de Abril de 1974 (portanto mais aliviado da sua jornada política antifascista), mostrariam um arquitecto mais maduro nas opções estéticas e construtivas, e mais consciente do papel cultural do arquitecto (em oposição ao papel mais técnico encarnado pela geração anterior).
Em Beja, a Casa da Juventude (1976), cuja cobertura ostenta ainda hoje as abóbadas realizadas pelos últimos construtores de adobe da região, revelaria o compromisso possível entre Kahn e a cultura popular portuguesa.
O traçado mediterrânico do Sul de Portugal – autorizado pela literatura que Hestnes conhecia bem e descrito pelo geógrafo Orlando Ribeiro em prosa quase neo-realista – prestava-se a esse cruzamento. O edifício permanece lá, numa notável ordem clássica, inata à cultura ocidental. Esta seria provavelmente a cultura que Kahn teria incentivado Hestnes a amar e a reproduzir.
O arquitecto era menos um solucionador de problemas e mais um fazedor de cultura. Próximo em data e sensibilidade, é na Unidade Habitacional João Barbeiro, do ano seguinte à Casa da Juventude, que a presença de Kahn se complementa com os elementos da cultura local, que as grelhagens cerâmicas evidenciavam. Nos anos 1980, Hestnes regressaria a esta cidade com o Bairro da Cooperativa “Lar para Todos”, integrando outros imaginários da história da arquitectura moderna europeia.
A proximidade entre alguns dos aspectos formais da arquitectura de Hestnes e os princípios que descrevem a obra de Kahn têm levado muitas das análises sobre o arquitecto português a categorizá-lo como “kahniano”. É certo que a epígrafe seria justa, na medida em que Hestnes seguiu de perto algumas das pistas lançadas pelo americano, designadamente na definição de volumes puros, combinação de geometrias modulares, adequação dos materiais aos processos construtivos e desenho, manipulação da luz natural, recurso ao contraste claro/escuro.
Estas pistas estavam presentes em obras com funcionalidades tão distintas como a habitação (Novo Bairro Fonsecas e Calçada, Lisboa, 1977, decorrente de uma Operação SAAL – Serviço Ambulatório de Apoio Local), ou a educação (Escola Secundária José Gomes Ferreira, Benfica, Lisboa, 1978), por exemplo. Fazendo recurso ao vocabulário kahniano, Hestnes trazia para a cultura portuguesa a hipótese da monumentalidade, uma nova abordagem à cultura clássica que a arquitectura portuguesa abarcava com esforço. Havia, portanto, no seu desenho uma forte inclinação para a exploração de escalas monumentais a que a cultura pós-moderna não era estranha, mas que em Hestnes ganhavam uma domesticidade mais amena.
Hestnes haveria ainda de ser o autor de um dos mais impressionantes campus universitários portugueses, o do ISCTE – Instituto Universitário em Lisboa. Uma visita ao conjunto formado por quatro edifícios é talvez a melhor homenagem que se pode fazer. O percurso permite acompanhar a evolução do seu pensamento arquitectónico e o modo como, a dada altura, se liberta de Kahn sem deixar de manifestar a sua familiaridade. O primeiro núcleo – ainda de 1975 – datava da fundação do instituto e tratava-se de refazer em escala menor a sociabilidade que tinha encontrado nas universidades americanas, mas também – e curiosamente – na Finlândia, para onde Aalto trouxera o modelo. Seguiu-se ao longo dos anos 1990 a Ala Autónoma, o INDEG e o último edifício (geminado com o ICS – Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa).
A cada novo edifício, Hestnes foi introduzindo complexidades espaciais e novas solicitações sensoriais. A multiplicidade de soluções revelaria as diferentes competências que a arquitectura possui na construção de um espaço público. Os edifícios reflectiam um desenho sofisticado e cerebral, provando que para Hestnes a inteligência e a cultura do utilizador nunca seriam traço a desprezar, bem pelo contrário. O arquitecto deve ter sentido a mesma ambição de Jonas Salk ao encomendar a Kahn o seu famoso Instituto de Estudos Biológicos, na Califórnia: conceber um lugar de encontro de mentes brilhantes. Com esta operação – um pouco orgânica como é da tradição portuguesa –, Hestnes conseguiu dar uma morada a uma instituição (à época com pouca tradição) através de uma forte identidade arquitectónica. Apesar de maltratada nas suas últimas gestões do ISCTE, a arquitectura tem conseguido resistir.
A sobrevivência cultural da geração a que Hestnes pertenceu revelou-se muito difícil após os anos 1990. Tal como aconteceu com outros arquitectos – caso óbvio de Manuel Vicente –, o ensino da arquitectura foi sentido como uma vocação e uma das formas prováveis para continuar a dialogar. Durante 14 anos – até à idade de reforma –, Hestnes integrou o Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra, deixando uma marca muito forte na Escola e nos antigos alunos. Devolvia assim parte do legado de Kahn, mas agora já cruzado com a cultura meridional de Portugal. Hestnes morreu a 11 de Fevereiro, deixando claro que a sua passagem pela arquitectura portuguesa acabaria por gerar uma revolução tudo menos silenciosa. E a arquitectura portuguesa ganhou um traço culturalista sem constrangimentos, sem culpa.