“Os arquitectos ainda são pouco sensíveis a trabalhar o som”
Esta segunda-feira, no MAAT, em Lisboa, reflecte-se sobre a importância do som na arquitectura dos espaços. O critico de arquitectura e pianista Michael Kimmelmann diz-nos que o som ainda não é uma prioridade para os arquitectos, mas a pressão social pode ajudar à mudança.
Foi há cerca de um ano, em Roterdão, na Holanda. Quando se entra na estação central de comboios da cidade fica-se perplexo pela quase ausência de ruído num espaço público que por norma é barulhento pela combinação de milhares de pessoas, altifalantes, motores e máquinas.
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Foi há cerca de um ano, em Roterdão, na Holanda. Quando se entra na estação central de comboios da cidade fica-se perplexo pela quase ausência de ruído num espaço público que por norma é barulhento pela combinação de milhares de pessoas, altifalantes, motores e máquinas.
“Conheço perfeitamente essa estação”, diz-nos de imediato o crítico de arquitectura, ensaísta e pianista Michael Kimmelman, quando lhe mencionamos a experiência, “e entendo perfeitamente o que é que está a descrever porque é um daqueles lugares de passagem onde até apetece ficar. Nitidamente é um desses espaços onde o som foi trabalhado como material arquitectónico. Mas a verdade é que a grande maioria dos arquitectos ainda são pouco sensíveis a trabalhar o som, não o colocando ao nível, por exemplo, da luz, ou de outros materiais visíveis.”
O americano é uma das personalidades, entre arquitectos, artistas sonoros ou designers de som, que vão estar esta segunda-feira, entre as 9h e as 19h, no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT) na conferência Resonate – Thinking Sound and Space, para reflectir sobre a importância do som na arquitectura. Para além da apresentação de artistas como Bill Fontana, Xavier Veilhan, Miguel Álvarez-Fernández ou Bernhard Leitner, a ligação entre a arquitectura e o futuro da acústica será estabelecida pelos peritos das empresas Arup, Foster + Partners ou Meyer Sound. A nova-iorquina Elisabeth Diller apresentará a relação do atelier interdisciplinar Diller Scofidio + Renfro com a presença do som na arquitectura, enquanto Kjetil T. Thorsen, do atelier norueguês Snohetta, que deixou a sua marca na Oslo Opera House, falará com a maestrina portuguesa Joana Carneiro, sobre o desafio de criar uma sala de concertos que procura um equilíbrio entre um som orquestral e uma acústica que permita transmitir claramente a voz dos cantores de ópera.
Para além de uma conversa com Bill Fontana, que ocupa a galeria oval do MAAT com a instalação audiovisual Shadow Soundings, Michael Kimmelman, que ao longo dos últimos anos tem escrito vários artigos no The New York Times alertando para a importância que o som deve ter na arquitectura, dissertará precisamente sobre isso. Apesar de invisível ou de poder ser percebido apenas de forma inconsciente, na sua óptica o som deve ser pensado pelos arquitectos, tal como acontece com outros materiais mais tangíveis, sejam eles a madeira, o vidro, a pedra ou a luz.
“Existem algumas razões que ajudam a explicar porque é que os arquitectos não pensam muito no som no processo criativo ou de execução”, diz-nos. “Por um lado, é como se nem sequer estivessem treinados para pensar nesse assunto, por outro, quando o fazem, chamam algum especialista de acústica para lidar com um problema concreto. Ou então, se existirem enquadramentos legais que tenham de gerir, é a partir dos regulamentos existentes que poderão pensar nessa matéria.” A questão, diz ele, é que o som “deverá ser uma ferramenta criativa; é matéria, e pensar a partir dessa avaliação é que é raro nos arquitectos.”
Existe algo que poderá ajudar a transformar essa realidade. A pressão social. Ainda que ténue a verdade é que nos últimos anos parece existir uma maior consciência sobre o som, no espaço privado, mas essencialmente nos lugares públicos. Nas cidades o som tornou-se omnipresente, indiferenciado, conflitual. “É precisamente por isso que é cada vez mais necessário pensá-lo”, diz Kimmelman. Ou seja, é preciso haver uma relação mais ecológica com o som, para que em vez de quantidade ou intensidade, se possa pensar em qualidade, em envolvimento ou até no despertar de emoções. O som tanto pode afectar negativamente a comunicação, o ambiente ou a saúde física e psicológica, como pode ser revertido em melhor qualidade de vida.
O som está em todo o lado
A arquitectura, o planeamento urbano ou a arte sonora podem desempenhar um papel importante na organização sonora dos espaços, mas apesar da maior atenção pública sobre estas questões, Michael Kimmelman não acredita que tenhamos chegado a um ponto de viragem. “Pensamos mais hoje em dia sobre o som, mas não de uma forma consciente, precisamente porque ele está lá em todos os momentos do nosso dia. É como se o som se tivesse substituído ao ar que respiramos.” O som está em todo o lado. Na rua, nos centros comerciais, nos restaurantes, nos estádios de futebol. “Nesses lugares, em determinados momentos, cansamo-nos mais facilmente por razões que não conseguimos identificar, mas muitas delas têm a ver com essa omnipresença. É como se estivéssemos submersos numa fadiga sónica.”
Mas nem todos os espaços têm de ser experienciados assim. “Quando entramos numa bonita catedral ficamos maravilhados pela luz, pela pedra ou pela altura e, por norma, sentimo-nos bem nesse tipo de espaços. Por norma, existe um outro elemento que nos afecta e nos transporta para um quadro de acolhimento e bem estar que é o som, a forma como é produzido e se movimenta no espaço. No entanto, embora o experienciemos, não temos essa consciência que é ele que contribuiu também de forma decisiva para essa sensação. É isso que tem de mudar: essa consciência. Pelo menos, os arquitectos devem tê-la.”
A luz, por exemplo, é algo em que os arquitectos reflectem de forma consciente. É matéria que pode ser trabalhada. “Não se pode construir ou criar luz, mas pode-se controlá-la, organizá-la, moldá-la. Quando estamos num lugar com uma luz singular, o sentimento de envolvimento cria a sensação de que o espaço nos imerge. Creio que o trabalho com o som deve ir nessa mesma direcção, embora sejam realidades diversas. A verdade é que podemos ter uma boa luz e um mau som ou vice-versa.”
Quando imagina boas práticas nessa área cita o nome do arquitecto suíço Peter Zumthor, prémio Pritzker em 2009, que é “alguém que usa o som como matéria de uma forma muito criativa”, assegura. “Para ele, em certas obras, o som é uma das prioridades, mas nós sabemos, até enquanto clientes, que quando falamos com um arquitecto que raramente o som é mencionado.” Existe cada vez mais legislação nas cidades para sermos protegidos do ruído. “É isso que acontece na barulhenta Nova Iorque, onde vivo, e também em Berlim, onde vivo por vezes.” Nesses casos, a tentação é sempre controlá-lo ou apagá-lo, mas o ideal é reconhecer padrões sonoros e organizá-los ou incorporar algumas das suas características positivas, trabalhando-as como outros elementos do design.“ É isso que Peter Zumthor faz em algumas das suas obras, ou seja vai muito além de nos proteger. Entra-se em cada divisão de um espaço e o som, à medida que caminhamos, é diferente, e existe um envolvimento agradável que pode ser dado pela sonoridade da água ou dos ecos. Ou seja, o som faz parte da experiência de habitar um lugar.”
No fim de contas, a construção arquitectónica na sua relação com o som está imaginada não apenas para nos proteger do ruído desagradável, mas acima de tudo para se transformar em algo agradável. “É claro que pode haver clientes que achem isso demasiado dramático, mas haverá muitos outros que acharão sensitivo e palpável. Em algumas obras de Peter Zumthor o som tem essa intencionalidade. Ele tem essa sensibilidade”, diz. Uma coisa é certa, segundo Michael Kimmelman: “Há cem anos ninguém falava da qualidade do ar. Se alguém o fizesse era apelidado de ridículo. Agora chegou a hora da manipulação do som, não apenas para nos resguardarmos, mas para ser algo prazenteiro.”