A aldeia portuguesa fictícia, as “namoradas” de Eric Clapton e outras entradas falsas da Wikipedia

Há erros que escapam até ao olho do editor mais atento. No caso da enciclopédia colaborativa Wikipedia, estes podem passar despercebidos durante mais de uma década.

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Reuters/REUTERS/GUSTAU NACARINO

Quando procura alguma coisa na Internet, há uma grande probabilidade de um dos primeiros resultados o remeter para a Wikipedia. A maior enciclopédia colaborativa da Internet já tem 17 anos e conta com uma equipa de editores que diariamente adicionam artigos em quase todas as línguas do mundo. Apesar de um esforço constante de pesquisa e edição, o facto de a Wikipedia resultar de contribuições de utilizadores que, em grande parte, são anónimos faz com que o projecto seja facilmente um veículo para campanhas de boatos. E em alguns casos, estes chegam mesmo a durar mais de uma década até que alguém dê pela mentira e apague a entrada. A própria Wikipedia, dada a sua natureza transparente, lista os artigos falsos que mais tempo sobreviveram na versão inglesa da enciclopédia, a mais lida. E na tabela dos boatos mais duradouros há até dois que referem Portugal.

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Quando procura alguma coisa na Internet, há uma grande probabilidade de um dos primeiros resultados o remeter para a Wikipedia. A maior enciclopédia colaborativa da Internet já tem 17 anos e conta com uma equipa de editores que diariamente adicionam artigos em quase todas as línguas do mundo. Apesar de um esforço constante de pesquisa e edição, o facto de a Wikipedia resultar de contribuições de utilizadores que, em grande parte, são anónimos faz com que o projecto seja facilmente um veículo para campanhas de boatos. E em alguns casos, estes chegam mesmo a durar mais de uma década até que alguém dê pela mentira e apague a entrada. A própria Wikipedia, dada a sua natureza transparente, lista os artigos falsos que mais tempo sobreviveram na versão inglesa da enciclopédia, a mais lida. E na tabela dos boatos mais duradouros há até dois que referem Portugal.

A entrada sobre a fictícia aldeia “histórica” de “Manão”, por exemplo, esteve online durante quatro anos e dois meses até ser apagada a 14 de Julho de 2011. A suposta aldeia teria sido fundada em 1277 pelo rei D. Jimenex – também ele imaginário. Ficaria a 80 quilómetros da fronteira espanhola, a uma altitude de 1.300 metros, e seria actualmente um popular destino turístico. Tudo falso, claro está.

O “Conflito de Bicholim” é o nome da segunda entrada falsa referente a Portugal. O extenso artigo contava a história de um conflito armado imaginário travado entre 1640 e 1641 entre as forças portuguesas e o Império Marata, com direito até a fotografias dos locais palcos da batalha. Na verdade, nunca aconteceu tal guerra. Contudo, a entrada esteve disponível durante cinco anos e cinco meses, entre Julho de 2007 e Dezembro de 2012.

O boato mais antigo da Wikipedia esteve 12 anos e quatro meses online e só foi apagado por um editor a 23 de Agosto de 2017. Tratava-se de uma entrada sobre uma suposta figura demoníaca da mitologia acádia, de nome Bine. A fraude foi detectada pelo utilizador Katolophyromai, perito em mitologia. “Apesar do pouco conhecimento que tinha de acádio, a palavra Bine nem me soava a algo que pudesse ser remotamente acádio”, resume na página de correcção: “O artigo não tem citações e é um boato completo”.

Há também pelo menos três falsas doenças que tiveram direito a entradas na Wikipedia durante vários anos. A mais antiga, que esteve cinco anos e cinco meses online, referia-se à síndrome de Joswig, uma suposta doença hereditária com direito a referências igualmente fictícias da Biblioteca Nacional de Medicina dos EUA.

Já uma referência a uma suposta neuropatia diabética, de nome glucojasinogen, esteve online quatro anos até ser identificada como um boato. E a também fictícia “citrose ocular”, uma suposta infecção nos olhos resultante da exposição a substâncias ácidas esteve dois anos e nove meses online até ser apagada da Wikipedia, em 2013.

Também houve desportistas fictícios. O jogador de futebol americano dos New Mexico Lobos Rich Bradford (não confundir com o actor do mesmo nome, esse sim real) “viveu” oito anos e 11 meses até ser apagado em 2013. Já o companheiro de profissão dos Oakland Raiders, Martin Coleman, teve uma “carreira” de apenas quatro anos até ser identificado como uma personagem fictícia, em 2011.

As namoradas de Clapton e uma partida de um jornalista

Depois há casos de relações fictícias entre pessoas reais. As páginas de Eric Clapton e Muhammad Ali na Wikipedia, por exemplo, tiveram informação falsa durante vários anos. No artigo do músico, algum autor atribuiu-lhe nada menos que 15 namoradas que, na verdade, nunca tiveram um relacionamento com o britânico. A mentira foi descoberta por uma das mulheres visadas, Alicia Witt, que viu o seu nome listado como uma das conquistas românticas de Clapton, apesar de nunca terem tido uma relação. A falsa informação esteve online durante dois anos e sete meses.

Já no caso de Muhammad Ali, o respectivo artigo na Wikipedia indicava instituições e pessoas que tinham recebido o seu nome em sua honra, incluindo “um clube juvenil na sua terra natal, uma espécie de rosa (Rosa Ali) e uma criança pequena”. A mentira terá sido plantada pelo jornalista do jornal britânico Telegraph, Michael Deacon, para enganar um amigo que estava a responder a um quiz sobre a lenda do boxe. Mas lá ficou online, durante oito anos e quatro meses, até 2015.

No âmbito cultural, há várias entradas com informação falsa. Uma das mais antigas é sobre uma suposta série do canal norte-americano HBO, Sheer Perfection, cujo verbete que esteve dez anos e dez meses online, apesar da produção nunca ter passado em televisão – ou sequer ter sido gravada.

A entrada referente a uma série sobre as mascotes da marca de cerais Kellogs, supostamente chamada Snappy&Friends, e que se teria estreado em 1949, também foi classificada como boato ao fim de nove anos em linha.

A Condor’s Fire, romance alegadamente escrito por Richie F'lin, com direito a críticas igualmente fictícias do New York Times e uma suposta biografia do autor pela Oxford University Press, nunca exisitiu. Mas a respectiva entrada na Wikiedia esteve activa durante cinco anos.

Mas há entradas ainda mais bizarras: uma sobre “Don Meme”, um guru e mentor de bandas de Puebla, no México, esteve online durante oito anos, ou outra sobre uma falsa família mafiosa, os Nevsky, supostamente activos na Rússia e nos EUA (nunca existiu, apesar de o respectivo artigo ter estado online mais de cinco anos).

No entanto – e é importante assinalar – estes boatos não são um problema exclusivo da Wikipedia. Serão, aliás, uma gota num oceano de mais de cinco milhões de entradas em língua inglesa. Em 2005, um estudo publicado na revista Nature, que submeteu a análise 42 artigos da Wikipedia, concluiu que as entradas da enciclopédia colaborativa eram tão rigorosas quanto as da reputada Enciclopédia Britânica, apesar de não estarem tão bem estruturados.

A Wikipedia está também dotada de um sistema que permite saber se um verbete é confiável ou não: a categoria “Featured”, por exemplo, destaca os melhores artigos da enciclopédia colaborativa, de acordo com os seus editores. Nessa categoria está, por exemplo, a entrada sobre Van Gogh, considerada uma das melhores do site. Em sentido inverso, as categorias “Bloqueado” ou “Suspeito” assinalam artigos sem fontes suficientes para serem considerados credíveis.