Roberto foi vítima durante sete anos de “quase escravatura”

Juíza considerou “excessivo” mandar prender casal que maltratou e explorou jovem entre os 16 e os 23 anos. Acusados pelo crime de tráfico de pessoas, foram condenados com uma pena suspensa.

Foto
Miguel Cabral

Com oito anos, Roberto saiu de casa da mãe e do pai, porque este o violentava. Passou por instituições de acolhimento em Leiria, Porto, Caldas da Rainha. E várias vezes fugiu. Deambulou pelas ruas de cidades. Encontrado pela Segurança Social, foi de novo colocado em acolhimento e de novo fugiu.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Com oito anos, Roberto saiu de casa da mãe e do pai, porque este o violentava. Passou por instituições de acolhimento em Leiria, Porto, Caldas da Rainha. E várias vezes fugiu. Deambulou pelas ruas de cidades. Encontrado pela Segurança Social, foi de novo colocado em acolhimento e de novo fugiu.

Voltou para casa da mãe, mas esta, já depois de o pai ter morrido, entregou Roberto a um casal com quatro filhos “para que trabalhasse para eles em troca de dormida e comida”, relata-se na sentença do Tribunal de Leiria que se debruça sobre este caso.

A comida consistia numa só refeição por dia: almoço ou jantar. “Algumas vezes”, pais e filhos comiam, e Roberto não. Era dentro de um barracão, nas traseiras da casa, no interior do qual chovia, que Roberto dormia. Em noites de chuva, o colchão no chão “ficava encharcado”. Eram-lhe permitidos dois ou três banhos de água quente por semana. 

Quando se recusava a trabalhar, era agredido. Era sobretudo a matriarca da família que lhe “desferia chapadas na cara com as mãos, e pancadas na cabeça e nas costas com as mãos ou com paus de vassoura”. Já em 2014, a arguida “espetou um garfo no braço direito” de Roberto porque ele “não cumpriu de imediato a ordem que lhe tinha dado”.

Enquanto trabalhou para este casal, entre Maio de 2007 (quando ia fazer 16 anos) e Junho de 2014 (com 23 anos), não lhe foi permitido estudar e frequentar a escola. Tinha apenas o 4.º ano de escolaridade.

Um dia ganhou coragem, fugiu e pediu ajuda. Um inspector da Polícia Judiciária recordou com emoção o momento em que Roberto lhe disse: “A última vez que me bateram foi a semana passada.” É o que se lê na sentença que condenou o casal pelo crime de tráfico de pessoas, em Dezembro de 2017.

Liberdade limitada

Os documentos de identificação de Roberto estiveram sempre na posse dos arguidos e eram-lhe facultados exclusivamente para as deslocações aos balcões dos Correios, onde levantava o dinheiro relativo ao Rendimento Social de Inserção (RSI), pago mensalmente no valor de 178 euros, e de que Roberto era beneficiário.

O tribunal dá igualmente como provado que, dos 178 euros recebidos, “os arguidos ficavam com 170 e entregavam a Roberto oito”. De vez em quando davam-lhe cinco euros para ele comprar cigarros.  

“Não restam dúvidas” de que os arguidos viam Roberto como “uma coisa de que dispunham”, concluiu a juíza Lígia Rosado, em tribunal singular, a 11 de Dezembro. “Estamos muito próximos de uma situação de escravatura, considerando o período de tempo em que o ofendido prestou trabalho para os arguidos sem qualquer remuneração e pior, sem condições de vida e de higiene, desintegrado sócio e culturalmente.”

A juíza considerou ainda que os arguidos “limitaram, em absoluto, a liberdade do ofendido” e que trataram Roberto “como se de um objecto se tratasse”, reduzindo-o a um “estado de subjugação e humilhação”.

Três anos depois de Roberto pedir ajuda, o casal acabou condenado, mas livre, com uma pena de prisão suspensa. O Ministério Público (MP) não recorreu. A decisão transitou em julgado no início deste mês de Fevereiro. Para Roberto, “o receio de levar uma sova ou mesmo um tiro”, como relatou, será o mesmo que o leva agora a não regressar às origens.

Viveu numa casa-abrigo, em regime fechado, para sua protecção. Uma ONG (organização não governamental) integrou-o profissionalmente e depois perdeu-lhe o rasto. Roberto refaz a vida numa cidade onde ninguém conhece o seu passado.

A técnica coordenadora da ONG da casa-abrigo que o acolheu pede para não serem identificadas (nem ela nem a ONG) para protecção de vítimas e funcionários. Recorda Roberto como um “jovem bem-disposto” e “com muitas competências”.

“Tornou-se muito revoltado”, disse, por sua vez, a mãe dele ao tribunal, que a considerou “sem sentido de responsabilização pelo percurso de vida do filho”.

Levado a cometer crimes

Uma vez entregue ao casal, Roberto era ameaçado de que, “se decidisse fugir ou ir trabalhar para outras pessoas, iriam atrás dele e que sofreria as consequências”, que dariam “cabo dele à pancada”. Roberto tinha “perfeita consciência de que o fariam”, acrescenta a sentença. 

“Os arguidos eram feirantes, pelo que, sempre que se preparavam para ir para uma feira”, era Roberto que “carregava, sozinho, todo o material que levavam na sua carrinha, que descarregava, sozinho, quando chegavam ao local onde se realizava a feira, e montava a banca para a realização da venda”. Da mesma forma, “no final da feira, era o ofendido que, sozinho, voltava a desmontar todo o material, a carregá-lo na carrinha, e a descarregar quando chegavam a casa”, descrevem a acusação do MP e a sentença do tribunal. Os arguidos não mostraram arrependimento e negaram os factos.

Ao decidir que o julgamento seria num tribunal singular (e não colectivo), o MP limita a pena de prisão a um máximo de cinco anos, obrigando o tribunal a ponderar a suspensão da pena. É o que estabelece a lei. E foi o que aconteceu neste caso: o MP condicionou a possibilidade de uma pena acima dos cinco anos, apesar de a lei prever para este crime (artigo 160.º do Código Penal) prisão entre três e 12 anos. O tribunal poderia ter optado pela prisão efectiva (embora com uma pena não superior a cinco anos). Mas não o fez. A juíza entendeu que se afigurava “contraproducente encarcerar os arguidos” e que “a prisão efectiva”, no caso desta família, com quatro filhos menores, poderia “apresentar-se excessiva”, tendo ainda em conta que o casal nunca antes tinha sido condenado.

Não tinham antecedentes criminais, referiu o tribunal, que, no entanto, deu como provados todos os factos da acusação, entre os quais o de que o casal levava Roberto a “cometer crimes”, submetendo-o “às suas ordens e sob o seu controlo”. Roubava gasóleo para o veículo que eles usavam, roubava tampas de saneamento e recolhia “ferro, alumínio e outros metais”. O dinheiro resultante da venda destes bens era para benefício exclusivo dos arguidos.

Cada um dos membros do casal foi condenado a uma pena de prisão suspensa de três anos e seis meses. Ambos têm 38 anos. Ficam obrigados a pagar 2000 euros em dois anos ao ofendido. “Não se percebe o desfecho desta situação”, diz a técnica que o acompanhou durante os meses em que esteve na casa-abrigo. “Da realidade do nosso centro de acolhimento de vítimas, estes casos resultam muitas vezes em penas suspensas” ou os crimes acabam por sofrer uma alteração da sua qualificação jurídica. “Tem que ver com o depoimento das vítimas. Algumas têm problemas de desenvolvimento cognitivo, o que condiciona o depoimento e compromete a obtenção da prova assente essencialmente nas vítimas como testemunhas-chave.”

No caso de Roberto, tal não aconteceu, porque ele colaborou de forma muito completa com as autoridades e se apresentou como um jovem com um nível intelectual correspondente ao da sua idade e “com capacidade para se autodeterminar”, lê-se na sentença. “Não compreendo em que foi baseado o valor de 2000 euros”, insurge-se ainda a técnica, sobretudo quando o casal nunca pagou o trabalho prestado por Roberto e ficava com o valor do RSI. 

Poucas penas efectivas

Manuel Albano, relator nacional para o Tráfico de Seres Humanos da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género da Presidência do Conselho de Ministros, não comenta sentenças. Porém, reconhece que “é efectivamente uma necessidade” por um lado “agravar o tipo de penas” e, por outro, “aumentar as condenações”.

“Estamos em linha com os restantes países europeus” no que respeita ao combate a este crime, responde quando questionado sobre as recomendações do Departamento de Estado norte-americano no relatório Trafficking in Persons 2017 que reiterou o que já dissera em 2015 — que o país devia optar por “sentenças suficientemente dissuasivas”.  

Albano acrescenta que “é necessário investir numa capacitação da magistratura através da formação e sensibilização relativamente a tudo o que é o processo de vitimização” neste fenómeno. “O tráfico é um processo. Todo o percurso que leva a que uma pessoa seja vítima é importante. Conhecer os processos conduz a melhores decisões.”

Os dados mais recentes da Direcção-Geral da Política de Justiça mostram que das condenações por tráfico de pessoas, decididas em 2016, quatro foram de prisão efectiva e três de prisão com pena suspensa. Em 2015 não houve condenações, à semelhança do que aconteceu em 2008, 2010 e 2011. Em 2012, das 10 pessoas condenadas, sete tiveram uma pena suspensa. No ano seguinte, cinco pessoas — de um total de nove — tiveram prisão efectiva e 19 foram absolvidas. Em 2014, dos 23 condenados, apenas três foram presos. As restantes tiveram pena suspensa, como no caso do casal que explorou Roberto a quem o tribunal entendeu que devia ser dada “uma oportunidade” para se “corrigirem”, já que “a simples censura do facto e a ameaça de prisão” cumpriam “as finalidades da punição”.

Roberto é um nome fictício