A consciência de uma América que por vezes lhe vira as costas
A “geringonça” portuguesa está a correr “razoavelmente bem”. A Catalunha está num impasse. A avançar, o “Brexit” acorrentará ainda mais a Grã-Bretanha aos Estados Unidos, enquanto a Europa poderá assumir uma maior preponderância nos assuntos globais. São estas as ideias-chave de uma curta entrevista que Noam Chomsky concedeu ao P2, numa semana em que chegou às livrarias portuguesas um novo livro do intelectual americano.
“Durante a Grande Depressão, que tenho idade suficiente para recordar, era mau... muito pior, subjectivamente, do que hoje. Mas havia uma expectativa de que as coisas iam melhorar. Havia um autêntico sentimento de esperança. Hoje, não há.” É assim que abre Requiem for the American Dream (2015), que reúne as últimas entrevistas de fundo a Noam Chomsky, feitas ao longo de quatro anos. O filme de Peter Hutchison, Kelly Nyks e Jared P. Scott está disponível na plataforma de streaming Netflix e deu origem ao livro Requiem para o Sonho Americano — Os 10 Princípios da Concentração da Riqueza e do Poder, que a Editorial Presença lançou em Portugal na última semana.
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“Durante a Grande Depressão, que tenho idade suficiente para recordar, era mau... muito pior, subjectivamente, do que hoje. Mas havia uma expectativa de que as coisas iam melhorar. Havia um autêntico sentimento de esperança. Hoje, não há.” É assim que abre Requiem for the American Dream (2015), que reúne as últimas entrevistas de fundo a Noam Chomsky, feitas ao longo de quatro anos. O filme de Peter Hutchison, Kelly Nyks e Jared P. Scott está disponível na plataforma de streaming Netflix e deu origem ao livro Requiem para o Sonho Americano — Os 10 Princípios da Concentração da Riqueza e do Poder, que a Editorial Presença lançou em Portugal na última semana.
A premissa do documentário-livro é contundente: o sonho americano esfumou-se, já não é possível começar do zero e ascender na escala social por via do mérito e do trabalho, e isto acontece porque nunca antes as desigualdades foram tão profundas. No requiem de Chomsky, a América já não é a terra das oportunidades, estando a riqueza e o poder concentrados nas mãos das elites dominantes que representam 1% da população. Resta, pois, aos outros 99% interpretar este toque de finados como toque de despertar das consciências, através de pequenas acções.
Chomsky esclarece que as entrevistas reunidas no livro e no filme foram as suas últimas conversas longas com jornalistas. Quando foi exibido nos Estados Unidos, o filme foi muito bem recebido, com salas cheias, críticas favoráveis e ovações públicas. Seguiu-se uma pequena digressão em universidades antes da edição em livro, o que atesta a relevância e o impacto que este homem de 89 anos continua a ter.
“Brexit”, Catalunha e “geringonça”
Feito o diagnóstico do sonho americano, o P2 desafiou o académico a olhar para o que se passa do lado de cá do Atlântico, com enfoque no “Brexit”, na Catalunha e na “geringonça” portuguesa. Numa curta entrevista por email, Chomsky sentenciou que é “pouco provável que o referendo na Catalunha conduza a grandes mudanças, pelo menos no curto prazo”. De facto, no início da semana, a viagem de uma delegação da Esquerda Republicana da Catalunha até Bruxelas, onde se encontra Carles Puigdemont, saldou-se, segundo a imprensa espanhola, em tímidos progressos e ainda sem acordo à vista. Os independentistas estarão a preparar duas investiduras: uma formal, a ter lugar na Catalunha, e outra simbólica, na capital belga, para que Puigdemont possa ser president.
Quanto ao “Brexit”, a situação é ainda muito nebulosa. O Governo britânico manifestou vontade de abandonar também a União Aduaneira, o que levou o negociador europeu do “Brexit”, Michel Barnier, a avisar que, fora do mercado único europeu, “as barreiras ao comércio, aos bens e aos serviços são inevitáveis”. Para Chomsky, “ainda está tudo no ar e vai tudo depender da forma que o ‘Brexit’ venha a assumir, sendo actualmente objecto de intensas negociações”. Chomsky acredita inclusive ser “possível” a realização de outro referendo. “Assumindo que [o ‘Brexit’] avança, o Reino Unido tenderá a ficar ainda mais subordinada aos EUA”, enquanto “a Europa poderá ser estimulada a desempenhar um papel mais independente nos assuntos mundiais”.
Mas essa maior margem de manobra europeia só acontecerá se o Velho Continente “conseguir ultrapassar problemas internos severos”. E Portugal faz parte desses problemas que é preciso ultrapassar? Ressalvando não ter um entendimento detalhado da política portuguesa, Noam Chomsky afirma que a solução governativa encontrada com a união das esquerdas, vulgo “geringonça”, “parece estar a correr razoavelmente bem, contrastando com muito do que vai acontecendo no resto da Europa”.
Chomsky, o “antiamericano”
Foi na avaliação, quase sempre adversativa, da política externa americana que Chomsky mais se notabilizou junto do grande público. Polemista prolífico, escreveu mais de uma centena de livros. Uma das suas teses fundamentais tem mais de meio século: o apoio contínuo dos Estados Unidos a regimes antidemocráticos e a hostilidade perante movimentos populares está em desacordo com a reivindicação, proclamada pelas sucessivas administrações americanas, de espalhar a democracia e a liberdade. Sobre a viragem neoliberal do capitalismo global, Noam Chomsky diz tratar-se de uma guerra de classes, decretada a partir do topo, contra as necessidades e os interesses da grande maioria.
Noam Chomsky é um dos académicos mais citados da actualidade. Professor emérito do MIT — Massachusetts Institute of Technology e, desde o Outono passado, docente da Universidade do Arizona, é muitas vezes considerado o fundador da linguística moderna, tendo revolucionado a forma como pensamos a linguagem, mas também o mundo. Tem uma posição forte sobre quase tudo e as suas perspectivas são atacadas da direita à esquerda. Chomsky define-se como anarco-sindicalista e socialista libertário, é um feroz opositor da política internacional dos Estados Unidos desde a Guerra do Vietname, o que lhe valeu, por diversas vezes, acusações de “antiamericanismo”. Muitos dos que sempre se reviram nele não lhe perdoam as aparentes (e mais recentes) guinadas ideológicas.
“Antifa” vs. Chomsky
Os enunciados atrás transcritos poderão encontrar-se facilmente na cartilha de qualquer movimento de esquerda ou de extrema-esquerda. Sendo assim, como se explica a animosidade muitas vezes dirigida a Chomsky por alguns dos que se identificam com aquelas posições? Pouco antes das duas da tarde de 12 de Agosto de 2017, em Charlottesville, nos EUA, um supremacista branco avançou com o carro sobre uma multidão de activistas anti-racismo, matando Heather Heyer, de 32 anos, e provocando dezenas de feridos. Entre os activistas, contavam-se muitos militantes do “movimento ‘Antifa’”: uma amálgama de grupos que combatem o fascismo através de tácticas de acção directa. A história do “movimento” remonta à década de 30 do século passado e a participação activa no confronto, tantas vezes corpo a corpo, com supremacistas, nacionalistas e membros de milícias neonazis tem-lhe dado grande notoriedade. Charlottesville foi mais uma demonstração da força e resistência dos “Antifa”.
Cinco dias após os acontecimentos trágicos, Chomsky dizia à revista Washington Examiner tratar-se de uma franja minúscula da esquerda e um grande presente para a direita, incluindo a direita militante, que estaria exuberante. Na opinião do académico, os activistas “Antifa” estão frequentemente mal organizados e o que fazem é muitas vezes errado — como quando bloqueiam conversações, destroem propriedade ou recorrem à violência física — e genericamente autodestrutivo. Quando a confrontação passa à violência, continua Chomsky, é sempre o mais duro e o mais brutal a vencer.
Apesar de se demarcar das posições de Donald Trump, que reiteradamente fez equivaler supremacistas brancos a antifascistas, Chomsky passou os dias seguintes à entrevista à Examiner debaixo de fogo. Foi comparado precisamente ao Presidente americano e houve quem defendesse que Mitt Romney, empresário e candidato do Partido Republicano às eleições de 2012, era agora mais de esquerda do que Noam Chomsky. “Li muitas críticas delirantes. A algumas delas respondi. A essas não vou responder”, confidenciou ao P2.
Depois de ser uma das vozes mais críticas da participação dos EUA na Guerra do Vietname — que descreveu como um acto de imperialismo americano —, de ser preso várias vezes e de constar da lista de inimigos do Presidente Richard Nixon, mais recentemente Chomsky foi um assumido apoiante do movimento Occupy Wall Street.
Em 2012, no mesmo ano em que enaltecia os feitos deste movimento, também apontava o dedo à Presidência Obama, que, para ele, terá atacado liberdades civis numa escala superior à de George W. Bush. Além de Chomsky, os manifestantes que ocuparam o centro financeiro de Nova Iorque tiveram em Gene Sharp outro intelectual inspirador.
Nascidos ambos em 1928, um ano antes do crash bolsista, os pontos de contacto são muitos. Em jeito de elegia — Sharp morreu no passado dia 28 de Janeiro —, Chomsky contou ao P2 que “Gene Sharp deu contributos fundamentais e originais para a teoria e a prática da não-violência”. O pensamento do antigo professor de ciência política assume “um significado impressionante e de extrema importância na era perigosa em que vivemos”, acrescenta.
Os media e o caso de Timor-Leste
Sobre os meios de comunicação social, Noam Chomsky tem também um pensamento profundamente negativo: são corporações que fabricam consentimento ao serviço dos caprichos do capitalismo e dos poderes políticos que o apoiam — este é, de resto, um dos dez princípios da concentração da riqueza e do poder que o livro/filme atrás citado aborda.
A ocupação indonésia de Timor-Leste, entre 1975 e 1999, foi um dos primeiros casos em que denunciou as estreitas relações entre os media e o poder. Segundo Chomsky, as sucessivas administrações americanas deram apoio militar, financeiro e diplomático ao regime de Suharto, a começar pelo Presidente Gerald Ford, que, com Henry Kissinger como secretário de Estado, teria dado luz verde à invasão do Exército indonésio. Antes da invasão, 90% do armamento teria sido fornecido pelos EUA. Dois anos mais tarde, conta o académico, o Exército indonésio já se encontrava numa situação de escassez de armas, o que mostra a escala dos ataques contra a resistência timorense. O Presidente Jimmy Carter acelerou a circulação do armamento, processo a que se juntaram Grã-Bretanha e França. Outros países lucraram com o assassinato e a tortura dos timorenses, acrescenta Chomsky, que, em 1978 e em 1979, reportou à Assembleia Geral das Nações Unidas a situação de Timor-Leste e a falta de cobertura mediática do genocídio em curso.
Quando, em 1999, a maioria dos timorenses se preparava para votar a favor da independência num referendo apoiado pela ONU, Chomsky voltaria a sacudir a consciência da América. Lembrou que desde a invasão indonésia, em Dezembro de 1975, Timor-Leste tinha sido palco de algumas das piores atrocidades da era moderna e que era tempo de Washington retirar o seu apoio, sem necessidade de bombardear Jacarta ou impor sanções económicas. Na sequência da votação pela independência, o Exército indonésio destruiu grande parte daquela que viria a tornar-se a mais jovem nação do mundo e, pela primeira vez, as atrocidades seriam amplamente divulgadas nos EUA.
Mas se as acções de consciencialização, levadas a cabo desde muito cedo por Chomsky, são bem conhecidas, o seu envolvimento financeiro no processo continua por explicar. Clinton Fernandes, professor australiano de estudos políticos e internacionais, com vários livros sobre Timor-Leste e o papel da Austrália no conflito, lembra que os media americanos receberam, na altura, uma ajuda inesperada. Chomsky terá pago pessoalmente as passagens aéreas de Lisboa para os EUA de vários refugiados timorenses para que fossem recebidos nas redacções dos media de grande circulação, que, de resto, já se tinham queixado de dificuldades no acesso e justificavam assim a falta de cobertura do caso. Este envolvimento tão directo na questão timorense continua envolto em mistério e, quando questionado pelo P2 sobre o assunto, Chomsky voltou a não querer desfazê-lo.
Também Gene Sharp, que inspirou a Primavera Árabe e os activistas angolanos — que acabariam presos por discutirem uma adaptação de um livro seu sobre transição pacífica para a democracia —, não escapou a suspeitas sobre as suas verdadeiras motivações e apoio financeiro, tendo sido repetidamente acusado de pertencer à CIA.