O açúcar é mesmo tão viciante como a cocaína?
A preferência pelo sabor doce é algo inato. Não é um vício, chama-se ser humano e ter papilas gustativas funcionantes.
Claro que não, e todas as pessoas constatam essa realidade diariamente!
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Claro que não, e todas as pessoas constatam essa realidade diariamente!
Começando com um ponto prévio: o açúcar presente em refrigerantes, bolachas, bolos e afins é sem dúvida algo a limitar na nossa alimentação. Daí a compará-lo a uma droga ou a um veneno vai uma distância gigantesca. Mesmo quem não tem bases de bioquímica e metabolismo pode acompanhar o seguinte exercício. O ser humano só consegue absorver três “açúcares”: glicose, frutose e galactose. O açúcar de mesa (sacarose) é uma junção de dois destes açúcares (glicose + frutose). A aveia, pão integral, batata-doce, quinoa e afins (que são reconhecidos pelo senso comum como “bons hidratos”) possuem amido, que é uma cadeia de “várias glicoses”. A fruta (dependendo da peça em questão) tem quantidades variáveis de frutose, glicose e sacarose. Ou seja, independentemente de comermos açúcares simples e/ou adicionados a gorduras (hidratos “maus”), ou estes “bons” hidratos, aquilo que entra na nossa corrente sanguínea é glicose, frutose e galactose (no caso de se ingerir leite/iogurtes).
É então fácil perceber que mesmo o açúcar branco não é um veneno, caso contrário, todos os alimentos acima referidos também o seriam e os seres humanos seriam movidos a veneno. Como é lógico, é sem dúvida benéfico usufruir das vitaminas e antioxidantes da fruta, da fibra dos cereais integrais e que uma entrada mais gradual de hidratos de carbono em circulação é mais saudável para não estarmos constantemente a “espremer” o nosso pâncreas na sua produção de insulina e não se criar uma resistência à sua acção.
Feito este preâmbulo, vamos então falar da verdadeira questão que dá título ao artigo que é um hipotético vício em açúcar que será igual ou até maior do que em outras drogas como a cocaína ou heroína. Como todos sabemos, a recompensa sensorial que é obtida com o açúcar, ou melhor dizendo alimentos doces, com açúcar (e também gordura em grande parte dos casos) é grande. A teoria seria que a habituação e dessensibilização que o nosso cérebro pode sofrer com a exposição repetida a estes alimentos pode fazer com que a quantidade de açúcar tenha de ser cada vez maior para atingir o prazer e que fiquemos “viciados” nos mesmos. O que é que a ciência diz a este respeito?
Apesar de existirem estudos interessantes em animais (já lá iremos), foquemo-nos principalmente nos estudos em humanos. E desde logo parece existir uma dicotomia interessante na resposta à exposição à frutose e glicose por parte de adolescentes magros e obesos. Os magros, perante esta exposição, têm uma maior irrigação no córtex pré-frontal (área do cérebro associada ao controlo e função executiva), ao passo que os adolescentes obesos perante o mesmo estímulo tiveram um aumento da actividade das áreas mais associadas ao prazer e recompensa. Resta saber o que vem primeiro. Se é a obesidade a responsável por esta resposta devido a diferenças por exemplo nos níveis de leptina (hormona produzida no nosso tecido adiposo) ou se é esta maior sensação de recompensa que induz uma maior procura de açúcar e que justifique assim o quadro de obesidade.
Um artigo de revisão de 2016, feito por investigadores da Universidade de Cambridge, sem conflito de interesses a declarar (algo que hoje em dia faz com que os detractores de determinado alimento/ideologia nem leiam o artigo, mesmo que ele seja completamente imparcial) e numa revista com elevado factor de impacto, chegou às seguintes conclusões sobre a hipotética neurobiologia partilhada entre o “vício” em açúcar e o vício em cocaína:
— A resposta à cocaína e ao açúcar é feita por diferentes neurónios no núcleo accumbens (estrutura do estriado ventral com papel central na recompensa cerebral);
— A resposta dopaminérgica (“neurotransmissor do prazer”) ao açúcar rapidamente estagna e é atenuada por pistas preditivas como o cheiro de coisas doces. A resposta à cocaína não estagna e é até aumentada com o consumo.
— Os desejos por alimentos doces são relativamente curtos e diminuem com a abstinência do seu consumo. Já os “cravings” por droga são muito mais persistentes e não diminuem de intensidade com a abstinência;
— Determinados polimorfismos genéticos nos receptores opióides e de dopamina constituem um factor de risco para o uso de drogas e estão associados ao binge eating disorder (transtorno da compulsão alimentar periódica). Isto revela (tal como mostramos acima) que o problema pode estar mais nas características individuais da pessoa do que propriamente no açúcar.
Este assunto causou um alarido recente devido a um estudo de revisão 2017 que saltou para as capas dos jornais, referindo que o açúcar pode ter um efeito aditivo e que, em alguns estudos em animais, esta recompensa do açúcar podia mesmo ultrapassar a da cocaína.
O que é que esses estudos em ratos dizem afinal? Que a subida dos níveis de dopamina após administração intravenosa de cocaína foi muitíssimo superior ao do açúcar e adoçante (sacarina, neste caso). Ainda assim, quando os ratos puderam escolher entre água com açúcar ou sacarina ou cocaína, foram para a opção mais doce. E o doce aqui é mesmo a palavra-chave, pois não existiram diferenças entre açúcar e sacarina, o que quer dizer que simplesmente os ratos escolheram o sabor doce e não a cocaína/heroína, porque são ratos, não são humanos e não têm certamente nem o mesmo propósito nem a mesma experiência/recompensa social na utilização de drogas recreativas. Daí a dizer-se que o açúcar é “mais viciante do que a cocaína” vai uma distância absurda.
Que os alimentos açucarados sabem bem e que temos sempre um ímpeto para procurarmos este estímulo não é novidade. Por isso, podendo parecer uma recomendação repetitiva (se bem que a razoabilidade nunca é demais reforçar), se se rodear de coisas doces em casa, estas vão ser mais apetecíveis do que tudo o resto que lá tiver. Se tiver em casa cereais açucarados, cremes de chocolate, compotas ou doces, não lhe vai apetecer comer queijo fresco com pão integral ou papas de aveia; se tiver sumos e refrigerantes, não lhe vai apetecer beber água e, se tiver bolos, biscoitos, gelados ou chocolates, não lhe vai apetecer comer fruta como sobremesa. A preferência pelo sabor doce é algo inato. Não é um vício, chama-se ser humano e ter papilas gustativas funcionantes. A culpa não é do açúcar nem do prazer que a ele está associado (até porque comer os alimentos atrás falados com moderação não tem impacto no peso), mas sim de quem não muda os seus hábitos de compras alimentares para não estar rodeado dele por todos os lados.
Por isso, a conclusão é só uma: o açúcar em excesso é sem dúvida um inimigo, mas que seja criticado de forma justa. À semelhança daquilo que foi e continua a ser feito com o leite, se extrapolarmos numa base diária conclusões erradas acerca do açúcar e se este se tornar saco para toda a pancada, quando realmente existirem razões para dizer mal dele, a opinião pública já não se importará com isso. A história O Pedro e o Lobo é bonita de contar a crianças mentirosas, mas quando aplicada à saúde dos adultos pode tornar-se perigosa.