Bacalhau? Diz que é uma espécie de religião
De qualidade suprema e cozinhado de forma exímia, a posta solta-se em avantajadas lascas, brancas e gelatinosas. Concluídas que estão as obras de São Torcato, seja por religiosidade ou pelos sabores, a visita à vila minhota também se faz agora por uma posta de bacalhau confitado.
Ao contrário do padroeiro, não tem qualquer mito ou estórias associadas, mas é também pelo bacalhau que muitos vão agora até à vila de São Torcato. Por religiosidade ou pelos sabores, a viagem é curta a partir do centro de Guimarães e a vista do imponente mosteiro granítico como que nos vai guiando no caminho. Há que cortar à esquerda pouco antes de o alcançar, subir a rampa e logo à direita se avista o restaurante Fentelhas.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Ao contrário do padroeiro, não tem qualquer mito ou estórias associadas, mas é também pelo bacalhau que muitos vão agora até à vila de São Torcato. Por religiosidade ou pelos sabores, a viagem é curta a partir do centro de Guimarães e a vista do imponente mosteiro granítico como que nos vai guiando no caminho. Há que cortar à esquerda pouco antes de o alcançar, subir a rampa e logo à direita se avista o restaurante Fentelhas.
É um prato específico, o “bacalhau racheado” (não é gralha, é mesmo racheado), que orienta boa parte dos visitantes e cuja popularidade é já bem capaz de rivalizar com o santo na atracção de forasteiros. E se é evidente que nem só deste prato se alimenta a casa, não deixa de fazer sentido dizer-se também que há já uma certa religiosidade em torno desta bela posta de bacalhau confitado.
O restaurante ocupa o piso térreo da moradia em blocos de granito, como eram construídos os bairros operários que foram crescendo em redor das empresas têxteis da região. Na sala, hoje composta com alguma elegância e conforto, é também possível vislumbrar o espaço modesto e popular de origem.
As paredes estão agora pintadas de branco — tal como os tectos arquitectonicamente perfurados para difusão dos ruídos — e ostentam os quadros com diplomas arrecadados pela cozinha da casa em encontros e concursos culinários locais. Há uma elegante lareira em pedra, mas as chamas são só as das velas acesas colocadas no seu interior. Mesmo nos dias mais frios, pelos vistos!
A decoração cuidada, baixela personalizada, toalhas e guardanapos em algodão branco e serviço atento acabam até por contrastar com o estilo bem mais informal e ruidoso da clientela. O que conta, de facto, é o bacalhau. Muito, de preferência!
As referências aos assados de cabritinho ou vitela, cozidos ou cabidelas de frango, parecem agora claramente superadas pelas opulentas postas do gadídeo dos mares do Norte, fartos nacos de carnes suculentas, rojões e papas de sarrabulho. Pelo menos assim ficou evidente em visita em dia de fim-de-semana.
A par dos bacalhaus — racheado, com broa ou assado — a lista propunha filetes de pescada e, nas carnes, naco à Conquistador, posta à Fentelhas, bife especial folhado, papas de sarrabulho e rojões à moda do Minho. Nas sobremesas, pudim, leite-creme, tartes e gelados convencionais, enquanto a oferta de vinhos alinha algumas propostas do Douro e Alentejo, sem relevância de maior. A clientela parece preferir o Verde “da casa”, o que quer que isso seja.
A par da boa broa de milho e centeio também um outro pão com recheio de passas. Couvert (2,50€ cada) composto por bolinho de bacalhau (em bola), rissol de vitela, panado de frango (tudo mini), salpicão e presunto. Tudo saboroso e bem executado, com destaque para a qualidade do picado do rissol e o presunto prejudicado pela passagem pelo frio que lhe contraía a (boa) gordura.
Os filetes de pescada, em meia dose (8€) com três unidades, acompanhavam com um puré de batata e salada mista. Tudo de boa execução culinária, com os filetes em nacos de lombos altos, bem temperados, de boa fritura e polme escorrido. Cuidado também na confecção da posta à Fentelhas (12,50€), que acompanhou com grelos salteados e batatas a murro. Naco generoso de carne rosada, macia e suculenta, a deixar boa nota.
É no “bacalhau racheado” que está o emblema da casa, e a meia dose (19€) é mais do que suficiente para satisfazer dois clientes de bom apetite. E logo pela designação se nota o cuidado na execução do prato. De facto, o bacalhau recheado que comummente se vê anunciado não só não leva qualquer recheio, como se trata da posta cozida em azeite (confitada) que, quando bem cozinhado e da melhor qualidade, se deve decompor em lascas, ou rachas, como era de costume dizer-se pelo Minho.
Ou seja, só quando da melhor qualidade e cozinhado de forma exímia o bacalhau tem a qualidade de “rachear”. E assim é servido no Fentelhas. A posta completa do lombo alto — seguramente da altura de uma mão — é confitada apenas com leve tempero de pimentão. Chega à mesa montada longitudinalmente numa travessa branca, sobre rodelas de batatas fritas e coberta com cebolada regada com algum do seu molho. Um vistoso ramo de salsa remata o quadro bem apelativo.
As avantajadas lascas brancas e gelatinosas soltam aromas quentes e desfazem-se em sabor na boca. A textura, ao mesmo tempo firme e sedosa, agarra-se ao palato e à memória com grande satisfação. Percebe-se, então, que possa haver uma certa religiosidade em torno desta bela posta de bacalhau confitado.
Quanto ao santo, o mito em redor de São Torcato, mártir, arcebispo de Braga e bispo do Porto, remonta aos finais da Idade Média, se bem que a fama tenha chegado mais tarde e em jeito de anedota relacionada com o arrastar das obras do mosteiro que tardaram quase dois séculos (1825 a 2015) a ficar concluídas.
Concluída a longa empreitada, agora já não se vai a São Torcato para ver as obras e o bacalhau racheado do Fentelhas parece constituir-se como saborosa alternativa.