OCDE pede investimento sem precedentes na ciência e no ensino superior
Investimento público tem que duplicar para cumprir metas europeias. Privados também têm que gastar quatro vezes mais para que despesas atinjam 3% do PIB em 2030. Relatório da OCDE defende criação de grupo inter-ministerial para o sector.
Portugal precisa de investir em ciência e ensino superior a um nível “que nunca atingiu até agora” se quiser cumprir com os seus compromissos europeus de convergência no sector. Este é o alerta central deixado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) numa avaliação do sistema de ensino superior e ciência do país, que é apresentada nesta sexta-feira.
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Portugal precisa de investir em ciência e ensino superior a um nível “que nunca atingiu até agora” se quiser cumprir com os seus compromissos europeus de convergência no sector. Este é o alerta central deixado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) numa avaliação do sistema de ensino superior e ciência do país, que é apresentada nesta sexta-feira.
De acordo com as contas que constam do rascunho do relatório encomendado pelo Governo, a que o PÚBLICO teve acesso, o investimento público teria que crescer para quase o dobro ao longo dos próximos 12 anos. O esforço pedido às empresas é ainda maior: devem canalizar quatro vezes mais recursos para o sector.
No compromisso estabelecido com os parceiros europeus, Portugal tem como objectivo de convergência atingir um investimento em Investigação e Desenvolvimento (que inclui todo o sistema de ensino superior) de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2030. Em 2016, o país gastou 1,27% do PIB neste sector.
Para que essa meta possa ser atingida, o investimento público tem que crescer cerca de cem milhões de euros por ano, entre 2018 e 2030. Ao todo, são 1200 milhões. Em 2018, o Orçamento do Estado reserva cerca de 1400 milhões de euros para o ensino superior e ciência — uma verba que inclui as transferências para as universidades e politécnicos e o orçamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).
Um cenário como estes só aconteceu em “casos raros”, como os da Islândia, Irlanda ou Estónia, reconhece o director adjunto para a Ciência da OCDE, Dominique Guellec, que coordenou a avaliação pedida por Portugal (ver entrevista). Ao PÚBLICO, o ministro da Ciência e Ensino Superior, Manuel Heitor, também reconhece que um nível de investimento em I&D como estes é algo “sem precedentes no país”, mas que considera “alcançável”.
“O ponto crítico é garantir que isto acontece continuamente ao longo de 12 anos, o que é complexo tendo em conta os ciclos económicos cada vez mais incertos”, avalia o governante.
Não é apenas o Estado quem tem que aumentar o seu investimento em I&D para que os compromissos europeus do país sejam atingidos. Esse objectivo implica também um “crescimento simultâneo do investimento privado de quase quatro vezes mais”, aponta a OCDE no seu relatório. Para que isso aconteça, será necessário que as empresas “criem 25 mil novos postos de trabalho qualificado até 2030”, ou seja, cerca de 2000 por ano, acrescenta o ministro Manuel Heitor.
Modelo de financiamento
O maior investimento, por si só, não resolve os bloqueios identificados pela OCDE nesta avaliação ao sistema de ensino superior e ciência de Portugal. Os peritos internacionais defendem outras reformas, como por exemplo a criação de uma nova fórmula de financiamento para o ensino superior, que substitua a actual, criada em 2006 e nunca actualizada. Para a OCDE, ela é “complexa” e “opaca”.
Em alternativa, é proposta uma solução em que o Estado canaliza 80% do dinheiro disponível para actividades centrais das instituições (ensino e investigação), reservando outros 15% para serem decididos com base em indicadores de performance (como o número de diplomados). Os restantes 5% devem ser definidos com base em acordo plurianual entre cada universidade ou instituto e a tutela, que seja capaz de promover reformas dentro da instituição ao nível da sua oferta formativa ou ligação com as empresas, por exemplo.
Esta avaliação da OCDE acontece dez anos depois daquele organismo internacional ter realizado um trabalho semelhante, que deu origem a mudanças estruturais no sector, como o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior. A intenção do Governo é basear a revisão desse diploma e outras novidades legislativas a partir das conclusões deste documento. O Governo prometeu “para breve” uma resposta completa às conclusões dos peritos.
Ao contrário do que aconteceu com o relatório de 2007, a OCDE não avalia apenas o ensino superior, mas também o sistema científico e de inovação. Os especialistas internacionais apontam caminhos para dar centralidade ao sector nas opções políticas do país, que passam pela criação de um “órgão de coordenação interministerial de alto nível” para definir as linhas orientadoras do mesmo.
Este grupo deve envolver os ministérios da Ciência, Educação, Economia, Finanças e das Infra-Estruturas e desenvolver uma Estratégia Nacional de Conhecimento e Inovação, capaz de responder a um dos problemas detectados pela OCDE. É que, ao contrário de outros países como Holanda, Noruega ou França, Portugal não tem uma “estratégia nacional clara, abrangente e partilhada” capaz de orientar as decisões das instituições.
Quem dá doutoramentos?
Com este documento, Governo e Assembleia da República devem estabelecer um compromisso de financiamento público plurianual “previsível, alinhado com as prioridades nacionais e com um nível adequado” para garantir as reformas necessárias.
A OCDE não faz nenhuma referência ao valor das propinas no ensino público, nem a uma eventual reorganização da rede. Apesar disso, nota um “subdesenvolvimento dos consórcios” entre instituições. A fraqueza apontada ao sistema de ensino nacional é a falta de “perfis diferenciados claros” entre as instituições, propondo-se mecanismos para garantir uma rede mais “diversificada” e “bem alinhada com as necessidades nacionais e regionais”.
O relatório pronuncia-se também sobre dois temas que têm vindo a ser discutidos nos últimos anos: as regras de acesso dos alunos ao ensino superior e a possibilidade de os politécnicos outorgarem doutoramentos.
No primeiro caso, é defendida uma reforma do sistema de acesso, de modo a garantir que este se adapta aos alunos do ensino profissional. Actualmente, estes alunos realizam as mesmas provas de ingresso dos estudantes do ensino regular, que versam matérias que não fazem parte dos conteúdos dos seus currículos. O Governo português já propôs uma revisão do sistema para estes alunos que passaria, simplesmente, por só terem de fazer um exame nacional (aquele que correspondesse à prova de ingresso do curso superior pretendido) que não contaria para o cálculo da média final do secundário.
A proposta da OCDE é outra: a criação de um exame específico de admissão, baseado em competências, que reflicta os principais aspectos do currículo do ensino profissional. No curto prazo, os exames de acesso devem ainda passar a incluir módulos adicionais — desenvolvidos em cooperação pelas instituições de ensino superior e escolas profissionais — alinhados com os conteúdos do ensino profissional.
Quanto aos doutoramentos — actualmente reservados a universidades — devem poder ser outorgados por politécnicos. A OCDE aconselha, porém, “cuidado” e estabelece critérios: versarem áreas em que a instituição já tenha demonstrado capacidade; serem feitos em parceria com outras instituições; e incluir docentes investigadores que façam parte de centros de investigação classificados com “muito bom”, “excelente” ou “excepcional”.