Vhils: “É preciso pensar a cidade em conjunto, porque ela é de todos e para todos”
A nova exposição em Lisboa, a polémica do Porto, os desafios urbanos e a popularidade aos 30 anos. Eis Alexandre Farto, ou seja Vhils.
Inaugurou há uma semana, Intrínseco, a nova exposição em Lisboa, na Galeria Vera Cortês, de Alexandre Farto, ou seja Vhils. Na abertura da mostra de novas peças do artista, que se prolonga até 17 de Março, havia filas à porta. Em 2014, no Museu da Electricidade, com Dissecção, atraiu 67 mil visitantes. A popularidade da obra, espalhada pelas ruas, galerias, museus e bienais de muitos pontos do mundo, é um facto. No entanto, sem a renegar, nem sempre convive bem com essa reputação, principalmente num meio pequeno como o português. Receia que por vezes o foco se desloque, incidindo sobre as banalidades da fama, esquecendo-se as questões que a obra tenta interrogar, num conjunto alargado de reflexões sobre a condição urbana em contexto urbano, como os desenvolvimentos globais na sua relação com as identidades locais.
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Inaugurou há uma semana, Intrínseco, a nova exposição em Lisboa, na Galeria Vera Cortês, de Alexandre Farto, ou seja Vhils. Na abertura da mostra de novas peças do artista, que se prolonga até 17 de Março, havia filas à porta. Em 2014, no Museu da Electricidade, com Dissecção, atraiu 67 mil visitantes. A popularidade da obra, espalhada pelas ruas, galerias, museus e bienais de muitos pontos do mundo, é um facto. No entanto, sem a renegar, nem sempre convive bem com essa reputação, principalmente num meio pequeno como o português. Receia que por vezes o foco se desloque, incidindo sobre as banalidades da fama, esquecendo-se as questões que a obra tenta interrogar, num conjunto alargado de reflexões sobre a condição urbana em contexto urbano, como os desenvolvimentos globais na sua relação com as identidades locais.
Ao lado de Banksy, JR ou Shepard Fairey é dos artistas que opera em espaço público que mais tem feito por questionar muitas das tangentes em que operam – quais os limites da arte e qual o espaço onde deve figurar? Quem dita o que deve ou não ser aceite para ser exposto no espaço público? Quais as fronteiras nem sempre nítidas entre espaço privado e público? Ou como operar na rua e no espaço tantas vezes sacralizado da arte contemporânea, ligado como está ao mercado do capital? Alexandre Farto não tem respostas fáceis, mas sente-se que é alguém disposto a não desistir de encontrar respostas, ainda que sempre transitórias. Não apenas por ele, mas por outros artistas com um percurso com características similares ao seu. Em 2016, em Hong Kong, dizia-nos que aquilo que aconteceu nos últimos dez anos foi uma surpresa. Um dia estava a atravessar o Tejo, fazendo a travessia entre o Seixal e Lisboa, e no dia seguinte a atravessar continentes. Há dias voltamos a falar com ele, a poucos meses de mais uma aventura que terá a sua marca – a abertura, mais para a Primavera, do Museu de Arte Urbana e Contemporânea de Cascais.
A última vez que expôs em Lisboa foi em 2014, no Museu da Electricidade, e foi um êxito de público. Depois teve uma importante mostra em Hong Kong, que se desenvolveu para Pequim e Macau. Como viveu o regresso a um espaço expositivo em Portugal?
Sentia uma grande vontade de voltar a apresentar trabalho em Lisboa, reunindo num espaço uma série de preocupações que já vêm de trás. As questões da identidade na cidade já estavam presentes na última exposição na Vera Cortês, bem como no Museu da Electricidade. Agora sinto é que essas inquietações acabam por ter uma nova pertinência neste momento em Lisboa, por causa das transformações, das pressões e da gentrificação do espaço urbano. No fim de contas o que faço aqui é criar pontes com outras realidades, porque estes fenómenos acabam por ser todos singulares, mas também têm pontos de contacto, aconteçam eles em centros urbanos portugueses ou noutros horizontes. E isso porque os modelos de desenvolvimento das cidades são muito semelhantes em quase todo o mundo. Claro que cada contexto é um universo por si só, mas nas cidades asiáticas, em Miami ou em Londres, as tensões e os conflitos decorrentes da exclusão da malha urbana têm muitas semelhanças, porque as lógicas económicas, urbanistas e territoriais têm pontos em comum, com o capital no centro de tudo isso.
A exposição de Hong Kong reflectia dois territórios demarcados. Duas cidades numa só. Uma para quem tinha poder económico e a outra ocultada nas traseiras dos arranha-céus, a dos excluídos do sistema. Essa desigualdade gritante está também presente hoje em Lisboa?
Sem dúvida. Isso sente-se na relação entre o centro e a periferia. Essa dicotomia não é nova, mas é claro que no contexto actual existem cada vez mais sintomas dessa exclusão do centro, embora nessa energia que alimenta essa relação entre centro e periferia nem tudo seja negativo. Mas especialmente em Lisboa e Porto nota-se hoje um profundo processo de transformação que merece ser reflectido.
Em termos de execução quais foram os desafios desta exposição?
Parte das peças foram criadas no atelier, através das várias histórias de sítios onde trabalhei ao longo dos últimos anos, de Sidney a Hong Kong ou Miami. Depois, todas as camadas suplementares foram executadas na galeria. A escolha do material – plástico acrílico transparente – permitiu-me representar toda a iconografia da cidade, ao mesmo tempo que possibilita pensar também sobre as questões ecológicas. Numa altura em que a maioria da população mundial vive em centros urbanos, tudo o que é feito à escala global nesses meios acaba por ter impacto no ambiente. Neste momento é a sustentabilidade do planeta que está em causa. Esse é um dos grandes desafios que o meu trabalho também tenta reflectir, até porque muitas das soluções provisórias que têm vindo a ser encontradas para determinados dilemas – como a tentativa de substituir os combusteis fósseis – revelam afinal novos problemas, talvez porque o dilema dos modelos de desenvolvimento são a sua escala e massificação.
Nesses processos por vezes o que é local, de pequena escala, tende a desaparecer. Esta semana estreia em Portugal um documentário da cineasta Agnés Varda com o artista JR, com quem já colaborou, onde isso também se reflecte. Aliás o JR quando opera em espaço público, fá-lo em lugares expostos aos paradoxos da globalização, com uma vertente de memória e resistência, que é o que também pratica.
O nosso trabalho tem pontos de confluência é verdade, nomeadamente o facto de tentarmos dar visibilidade a situações que nem sempre são apreendidas por uma larga maioria de pessoas. Ele, através da sua acção, acaba por chamar a atenção para uma série de lutas ou de conflitos. E sim, essa carga de memória está sempre presente, ao mesmo tempo que existe uma atenção ao lado humano de todas essas dinâmicas. Estou a fazer um trabalho agora no Barreiro em que existiu primeiro um levantamento histórico acerca da relevância da indústria naquele território. Ali não me interessa apenas a consciência do passado, mas perceber até que ponto aquela memória fará sentido na relação com o presente e até como hipótese de futuro. E na verdade se não for feito um trabalho de levantamento daquela memória, de uma imensa riqueza, ela perder-se-á. É aí que o meu trabalho se aproxima do de JR, ao tentar trazer à superfície aquilo que muitas vezes não é totalmente visível.
Em trabalhos como o dele e o seu, de forma mais ou menos directa, acabam por estar implícitas críticas à sociedade actual. Ao mesmo tempo estão inseridos num contexto, como o da arte contemporânea, altamente especulativo. Como se gere essa aparente contradição?
É importante encontrar uma maneira de estar bem comigo mesmo e para isso acontecer tenho consciência de como o sistema funciona para o poder não só criticar, como tentar subverter ou funcionar nos seus interstícios. Nesse sentido utilizo de forma consciente os vários mecanismos que o sistema tem para sustentar o trabalho que produzo. Quando faço trabalhos com um cariz mais comercial, sei que é também isso que me permite depois desenvolver outro tipo de actividades com comunidades onde não existe financiamento e para os quais consigo ter uma equipa de pessoas a operar. É dessa forma que me levanto todos os dias com entusiasmo, tentando criar um equilíbrio entre o lado comercial do mundo da arte e projectos como os que fiz no Rio de Janeiro ou no Bairro 6 de Maio, ou outros que vou fazendo em diferentes zonas do mundo, que são tudo ideias postas em prática sem financiamento.
A linguagem que tem adoptado transporta uma forte identidade, é reconhecível. É esse o desejo da maior parte dos artistas, encontrar essa singularidade. Mas quando se encontra tão cedo esse idioma personalizado, também se corre o risco de criar a percepção de repetição junto de quem o segue ou mesmo pairar a ideia de que gera códigos de fácil comunicação. Isso é algo em que pensa?
O que me preocupa é que aquilo que pretendo comunicar consiga encontrar interlocutores. De resto, não me sentiria bem se estivesse a fazer algo com que não me identificasse por inteiro. Ao longo dos anos tenho tentado que o meu trabalho evolua ou se aprofunde, pesquisando sempre mais. Sinto que sofreu transformações que são naturais porque fazem parte de um processo de maturação e reflexão onde me ponho em questão. O que sinto é que parte daquilo que pretendo reflectir nem sempre é discutido abertamente e isso sim deixa-me pensativo. Tenho consciência que muito do processo desencadeado por mim deste o início, tal como o fascínio que os trabalhos podem criar em termos visuais, muitas vezes impedem que se discuta o que ele pretende transmitir. Mas não sinto que exista um efeito de repetição. Agora desejo que o foco seja direccionado para as questões importantes que tento abordar. Pela insistência do trabalho que tenho feito, espero que um dia essas questões que tento reflectir tenham mais centralidade.
A credibilização da arte urbana parece ocorrer a duas velocidades. Por um lado o universo canónico da arte tolera-a, mas ainda não a aceita totalmente. Por outro assiste-se a alguns efeitos perversos da sua disseminação, como a promoção de um tipo de muralismo ornamental sem conteúdo e até a aproveitamentos políticos na forma como se deseja melhorar a imagem de alguns bairros, sem que seja garantida a qualidade de vida dos habitantes.
Tudo isso é verdade. Existem alguns aproveitamentos políticos e haverá um excesso de eventos relacionados com essas práticas, mas também existem muitos bons exemplos de como se pode operar. O que noto é que claramente se abriu uma porta para que uma série de artistas que começaram a operar no espaço público validem o seu trabalho o que é mais do que legítimo. Independentemente desses desvios, tem-se vindo a conseguir que uma série de artistas encontrem o seu espaço, sendo parte da solução e não o problema, para a forma como o espaço público é experimentado. Nitidamente hoje existem várias tribos urbanas que podem contribuir de forma positiva para pensar a cidade, estabelecendo pontes e diálogos que há dez anos não existiam. A força da arte em espaço público é essa – alertar e criar relações, ligações e pontes entre pessoas e lugares muito diferenciados, promovendo a compreensão e até a auto-estima no caso de alguns lugares. Agora, como é evidente, tudo o que se fica pela mera fachada, não interessa muito. De qualquer forma se estamos aqui a questionar alguns destes processos é porque eles levantaram questões, independentemente de alguns erros. É preciso estar alerta, mas também não devemos temer a hipótese do erro.
Esteve no centro de uma polémica no Porto, por causa de uma anunciada intervenção num edifício do arquitecto Agostinho Ricca. Ficou a ideia que o processo foi mal conduzido, com erros de avaliação da Câmara Municipal e do atelier de arquitectura que o convidou, mas no espaço público acabou por apenas se discutir a sua hipótese de intervenção e até a arte urbana em geral, como se fosse essa a questão central, num assunto com tantos vectores. Como é que olha para isso?
É verdade, o processo foi muito mal gerido deste o início. Acima de tudo o que senti é que a partir de determinada altura não foi criado qualquer espaço para se discutir a ideia ou até o que se poderia fazer naquele cenário. A intenção inicial era trabalhar num espaço que se queria reactivar e que estava ao abandono há algum tempo, operando a partir da sua memória e história. Às tantas, durante o processo, até eu me comecei a colocar questões pela relevância daquela obra. E a partir desse momento deixou de fazer sentido fazer a intervenção dada a discussão que se gerou. Mas fiquei triste pela forma como o processo foi orientado e também por não se ter produzido um clima de abertura para o diálogo. E foi pena porque o que aconteceu ali vai repetir-se noutros contextos. Continuo a achar que é importante que num processo deste género sejam ouvidas um número alargado de vozes, entre elas a dos artistas que intervêm no espaço urbano porque – reitero – o que eles desejam é dialogar. O contrário disto não me parece nada produtivo. Interessa sentar à mesma mesa arquitectos, políticos, urbanistas, artistas e comunidade. No discurso que passou para fora senti que a arte é vista como mera ferramenta para a arquitectura e isso é algo que não me deixa confortável. Pensar a cidade deve ser um processo o mais colectivo possível, para o qual deve contribuir gente credível com história mas também agentes emergentes, como os skaters por exemplo, que contribuem de uma outra forma para que as cidades sejam um organismo vivo em constante transformação onde apetece mesmo estar. É preciso pensar a cidade em conjunto, porque ela é de todos e para todos.
As cidades, como a arte, seja ela urbana ou outra qualquer designação que inventamos para tentar ordenar a realidade, é feita de tensões permanentes. Como é que se encontram pontos de equilíbrio?
Gosto de arte e cidades por isso, pela procura de uma certa estabilidade no meio dessa mutabilidade, dos vários usos e apropriações, e parece-me que é dialogando que se encontram equilíbrios. No caso da arte em espaço público foi feito um trabalho nos últimos dez anos que não vai voltar atrás. A energia criativa que existe na rua não deve ser perseguida, mas sim integrada. Por vezes essa energia acaba por se dissipar apenas por não existir interlocução. E é uma pena porque essas novas energias apenas desejam uma melhor cidade. O que aconteceu no Porto teve, pelo menos, o efeito de levantar algumas questões. Talvez seja necessário existir alguém que pensa a intervenção no espaço público de forma global, medindo os impactos.
Não existem muitos casos em Portugal de alguém do universo da arte contemporânea, aos 30 anos, alcançar um nível de popularidade como o seu. Com a notoriedade, por norma, expõe-se também mais e surgem anticorpos. Como vai administrando tudo isso?
Quando os holofotes incidem em mim não me sinto muito confortável. O meu foco é o trabalho. É isso que me move. A possível popularidade não me diz muito. Tento, isso sim, lidar o melhor que sei com os desafios e as responsabilidades que se apresentam à minha frente. Nos últimos anos aconteceram muitas coisas na minha vida. Nem sempre estamos preparados para elas, mas aceito isso e vou tentando gerir os momentos. Para além do meu trabalho individual, o que me tem dado mais prazer é criar estruturas que consigam dar visibilidade e criar diálogo com outras pessoas das artes, da música e da cultura em geral. Existe uma nova geração de artistas e activistas que merecem afirmar-se e fazer a sua vida à volta do que gostam de fazer. E não é só importante ter acesso a galerias ou festivais, como também a colecções e instituições portuguesas. Se o meu trabalho tem alguma repercussão é para isso que é canalizado, para essa tentativa de atribuir visibilidade a todas essas subculturas da arte ou da música, seja através da galeria Underdogs, do festival Iminente ou de outras plataformas. Sinto-me próximo de todas essas manifestações, devo-lhes o que sou hoje. Sim, existe o meu trabalho pessoal, mas também há uma comunidade de artistas à minha volta e nunca o esqueço.