Presunção de culpa
A “presunção de inocência” é uma das maiores mentiras do espaço público nacional.
Sempre que, em Portugal, alguém famoso e influente (político, juiz, banqueiro ou empresário) é apanhado pela Justiça, logo um coro de indignação se levanta em defesa dos poderosos. E dois argumentos surgem, invariavelmente: o de que todos têm direito à mais acérrima defesa; e, além disso, até serem condenados com trânsito em julgado, todos beneficiam da presunção de inocência. Estas ideias são dois monumentais embustes. Nada mais falso.
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Sempre que, em Portugal, alguém famoso e influente (político, juiz, banqueiro ou empresário) é apanhado pela Justiça, logo um coro de indignação se levanta em defesa dos poderosos. E dois argumentos surgem, invariavelmente: o de que todos têm direito à mais acérrima defesa; e, além disso, até serem condenados com trânsito em julgado, todos beneficiam da presunção de inocência. Estas ideias são dois monumentais embustes. Nada mais falso.
É certo que todos têm direito a defesa, inquestionável; mas a uma defesa que seja consentânea com os factos apurados. Em cada processo, sempre se devem averiguar, em primeiro lugar, os factos. E, na sequência destes, os vários agentes da Justiça devem interpretar qual o Direito que se lhes aplica. Ora, os factos devem ser apurados por todos (procuradores, advogados defensores, juízes) com a máxima objectividade e verdade. De seguida, a melhor e mais legítima defesa será a que, face aos factos, encontra o enquadramento mais favorável para o arguido, no plano do Direito vigente. Tal é lícito e defensável. O que já não faz qualquer sentido é que os advogados de defesa tentem manipular ou até adulterar os factos. Advogados que tentem distorcer os factos já não respeitam o seu código deontológico: deixam de ser defensores e passam a ser cúmplices. A defesa é imprescindível; mas só é íntegra se respeitar os factos.
O segundo embuste é o da tão propalada mentira, vendida como princípio sagrado, a da “presunção de inocência”. Sejamos claros: ninguém é inocente só porque ainda não foi julgado ou condenado. Se um condutor cometer uma infracção de trânsito, é culpado dessa infracção, independentemente de ter sido (ou não) apanhado pelas autoridades. Não passa a ser inocente só porque, por acaso, não foi acusado ou julgado — apenas não sofre é com a respectiva penalização.
A presunção de inocência nem é tão-pouco um princípio constitucional ou um direito humano. Presunção de inocência é apenas uma técnica de análise (sociológica, pedagógica ou jurídica), segundo a qual, perante uma situação ambígua ou uma dúvida fundada — na análise do processo, do exame, do fenómeno —, se presume que o comportamento do visado é equivalente ao de um inocente. Mas esta abordagem faz-se para cada um dos factos e, no final, apurados os factos, a dedução deve ser a que os factos provados imponham e nunca o perdão antecipado por comportamentos dolosos.
Finalmente, alguns defendem a “presunção de inocência” como conceito de senso comum, segundo o qual quem não foi ainda condenado não pode ser considerado culpado. Ora, tal não é válido em Portugal para os “crimes de colarinho branco”. Como há muito poucos acusados por corrupção e quase nenhuns condenados, não é o argumento da condenação em tribunal que pode dividir culpados e inocentes. Ainda não há experiência de condenações em número suficiente para se poder proceder a este tipo de inferência.
A “presunção de inocência” é uma das maiores mentiras do espaço público nacional. O argumento é difundido de forma maciça nos media, em acções de manipulação da opinião pública. Basta para tal que os arguidos sejam Ricardo Salgado, Rui Rangel, José Sócrates, Armando Vara, Oliveira Costa, Álvaro Sobrinho, Miguel Macedo ou Manuel Vicente — e logo um rol de serventuários se prontifica a vir às televisões mentir sem pingo de vergonha. Os que vêm para a praça pública defender arguidos de jet-set são habitualmente advogados das maiores sociedades jurídicas nacionais, de Morais Sarmento a Lobo Xavier, de Magalhães e Silva a Rui Patrício, de Rogério Alves a José Miguel Júdice.
Ao defenderem, no espaço público, a inocência (que fingem presumir) deste tipo de criminosos, estes juristas ganham fama e muito proveito, mas desprestigiam a sua classe profissional. Desrespeitam a deontologia a que estão obrigados. São — eles sim — presumivelmente culpados por fazerem incorrer a opinião pública num equívoco: o de que todos são inocentes, enquanto não forem condenados. Equívoco que apenas beneficia os seus clientes e os enriquece a eles, advogados. E contribuem para menorização da Justiça e da própria democracia. Porque um Estado que não é de direito (a sério) não é um verdadeiro Estado democrático.