Na foz do Dande há 174 anos
Foi tardia a intervenção anti-tráfico negreiro portuguesa? Foi. Mas existiu e teve expressão.
No final de 1844, um dos principais órgãos da imprensa portuguesa de então publicou um texto de um jovem oficial da marinha de guerra portuguesa que, através da descrição de um episódio da luta anti-tráfico negreiro em que ele próprio participara — o apresamento, na foz do Dande, do brigue brasileiro Caçador —, procurava fazer sobressair a desumanidade e o horror do infame comércio: “Eram oitocentos e quarenta e quatro pretos amontoados confusamente nos estreitos limites do brigue [...]. Durante dois largos dias não lhes haviam dado alimento, tinham as entranhas mirradas de fome e a garganta sequiosa. A atmosfera estava abrasada e o calor que exalava aquele lento matadouro vinha queimar-nos as faces; e eles, junto corpo a corpo, respirando com dificuldade não sei como não morriam sufocados. E era um ar viciado pelo seu hálito, envolto em nuvens de fumo que exalava o excremento apodrecido. A escotilha da coberta, por onde respiravam, daria vertigens a quem ali se demorasse cinco minutos. O convés, alagado por esta onda de cabeças humanas, apresentava um aspecto estranho: desde ré até vante não se podia dar um passo que não ressoasse um grito de dor. Depois de marcarmos o navio tratámos destes infelizes, despejámos água em baldes e distribuímos com mão larga os mantimentos.” Sobre esta descrição, que resultava do contacto directo com o acontecimento, olhos nos olhos com os escravos “silenciosos e palpitantes” que acabava de libertar, o oficial da Armada construía, depois, um discurso abolicionista cuja intenção última era a de promover na sociedade portuguesa uma postura actuante, à imagem do humanitarismo britânico: “O povo tem o instinto dos grandes sentimentos, ouvirá o nosso brado e há-de indignar-se como nós perante esta atrocidade exercida contra a humanidade e contra Deus.”
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No final de 1844, um dos principais órgãos da imprensa portuguesa de então publicou um texto de um jovem oficial da marinha de guerra portuguesa que, através da descrição de um episódio da luta anti-tráfico negreiro em que ele próprio participara — o apresamento, na foz do Dande, do brigue brasileiro Caçador —, procurava fazer sobressair a desumanidade e o horror do infame comércio: “Eram oitocentos e quarenta e quatro pretos amontoados confusamente nos estreitos limites do brigue [...]. Durante dois largos dias não lhes haviam dado alimento, tinham as entranhas mirradas de fome e a garganta sequiosa. A atmosfera estava abrasada e o calor que exalava aquele lento matadouro vinha queimar-nos as faces; e eles, junto corpo a corpo, respirando com dificuldade não sei como não morriam sufocados. E era um ar viciado pelo seu hálito, envolto em nuvens de fumo que exalava o excremento apodrecido. A escotilha da coberta, por onde respiravam, daria vertigens a quem ali se demorasse cinco minutos. O convés, alagado por esta onda de cabeças humanas, apresentava um aspecto estranho: desde ré até vante não se podia dar um passo que não ressoasse um grito de dor. Depois de marcarmos o navio tratámos destes infelizes, despejámos água em baldes e distribuímos com mão larga os mantimentos.” Sobre esta descrição, que resultava do contacto directo com o acontecimento, olhos nos olhos com os escravos “silenciosos e palpitantes” que acabava de libertar, o oficial da Armada construía, depois, um discurso abolicionista cuja intenção última era a de promover na sociedade portuguesa uma postura actuante, à imagem do humanitarismo britânico: “O povo tem o instinto dos grandes sentimentos, ouvirá o nosso brado e há-de indignar-se como nós perante esta atrocidade exercida contra a humanidade e contra Deus.”
Este episódio da história colonial portuguesa foi escrito por António Lopes de Mendonça, futuro deputado e, à época, guarda-marinha da Armada em serviço na Estação Naval de Angola. Lopes de Mendonça era uma figura habitual no Chiado, um dandy que dava nas vistas onde quer que estivesse. Gostava da proeza física, de duelos com aristocratas, de pegar toiros. Participou nas lutas da Maria da Fonte e na guerra civil da Patuleia. Poucos anos antes dessa guerra, com apenas 18 anos de idade, este estroina alto e loiro, dado às letras e aos prazeres da vida, estava na costa de África, como membro da tripulação da corveta Urânia, a cruzar contra o tráfico de escravos. A sua descrição do apresamento do brigue negreiro Caçador pode ser lida por qualquer pessoa que se dirija à Biblioteca Nacional e peça para consultar o jornal A Revolução de Septembro, de 7 de Dezembro de 1844.
Com a transcrição parcial do texto de Lopes de Mendonça eu quero mostrar duas coisas. Em primeiro lugar, o horror do tráfico negreiro, em particular do chamado tráfico ilícito, isto é, aquele que ainda se praticava clandestinamente, em meados do século XIX, quando todas as nações ocidentais já o haviam proibido. E, em segundo lugar, quero lembrar que havia portugueses a combatê-lo, gente que andava lá nas costas de África, a tentar aplicar a lei numa época em que era difícil fazê-lo, em que quase não havia cooperação dos poderes políticos africanos — bem pelo contrário — e em que os europeus morriam frequentemente de malária e outras doenças. Esses portugueses e os seus actos anti-escravistas foram esquecidos ou, pior do que isso, silenciados e apagados. Porquê? Porque a sua existência não se compatibiliza com a imagem monolítica e politicamente correcta do português facínora, explorador de negros, de chicote em punho, que os nossos activistas anti-racismo e anti-época colonial, ligados a diversas organizações de extrema-esquerda, querem erigir em verdade oficial. Importa dizer que é uma “verdade” vesga, uma visão histórica distorcida e mal informada. Foi tardia a intervenção anti-tráfico portuguesa? Foi. Foi reduzida e nem sempre eficiente? Sim, também foi. Mas existiu, teve expressão: de 1839 em diante os homens da Armada em serviço em Angola e noutras colónias africanas apresaram muitas dezenas de embarcações e destruíram várias instalações negreiras na costa, e o seu zelo abolicionista foi, na época, reconhecido e louvado pelo Slave Trade Department e pelo governo britânico, os únicos que possuíam os dados comparativos suficientes para poder avaliar.