“Um deputado responsável só pode votar contra” a legalização da eutanásia
Ricardo Baptista Leite, deputado do PSD, abriu uma discussão no partido: quer legalizar a produção e venda de cannabis. E espera que o congresso também discuta a eutanásia. Aqui, é contra — mas reconhece que há em Portugal “um excessivo prolongamento artificial da vida”.
O deputado social-democrata Ricardo Baptista Leite teme que um referendo à eutanásia deixe tudo na mesma, ou pior. E lembra o que aconteceu noutros países para o justificar. É neles que suporta a sua proposta ao PSD: legalizar a cannabis.
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O deputado social-democrata Ricardo Baptista Leite teme que um referendo à eutanásia deixe tudo na mesma, ou pior. E lembra o que aconteceu noutros países para o justificar. É neles que suporta a sua proposta ao PSD: legalizar a cannabis.
Vai levar uma moção ao congresso do PSD em que defende a venda de cannabis em farmácias a preços de mercado. É uma provocação?Não, de todo. É totalmente baseada na ciência e vem da minha experiência profissional. Lidei com muitos doentes, de populações muito vulneráveis. Vi em primeira mão as consequências nefastas das dependências na vida das pessoas. Enquanto deputado, acumulando literatura sobre os efeitos positivos que teve a descriminalização do consumo de drogas no país. E quando começaram a surgir exemplos sobre a legalização da cannabis em vários países e estados americanos comecei a ver com interesse. Enquanto estudante de Medicina, fui ensinado claramente a ser contra a legalização, por causa dos riscos para a saúde mental. E criaram-se uma série de fundamentalismos...
O que é que o fez mudar de posição?
Perante tantos países a seguir este caminho, perante revistas internacionais com peso que estavam a defender esta matéria, dei um passo atrás e fiz um exercício. Inicialmente era contra a legalização. E entreguei-me à ciência. Já se olhou para o Uruguai, Colorado, Washington, para o Alasca, para a Holanda, para Espanha (para os clubes sociais) e o que se destacou foi que há exemplos que funcionam muito mal e outros muito bem. O caso da Holanda é um desastre, a meu ver: eles só regulamentaram a venda nas coffee shops, mantendo ilegal a produção e distribuição. Se olharmos para o Uruguai, onde se regulamentou a produção, distribuição e venda, compreende-se que é possível mitigar riscos para o consumidor e ter uma política activa de dissuasão. Daí que tenha construído uma solução, que apresento ao congresso do PSD, que olhe para os efeitos judiciais, económicos e na saúde da cannabis, para perceber o que está a acontecer e ver se é possível fazer com que as pessoas consumam menos - libertando recursos para apostar mais na educação e campanhas de dissuasão, como para as forças policiais, que se dedicam quase exclusivamente à produção de cannabis, deixando o ecstasy, a cocaína e outras drogas, cujos efeitos nefastos na saúde serão sempre negativas. A proposta pode ser vista como liberal, mas na realidade é altamente conservadora por via da regulamentação, como o preço...
Porque propõe a venda a preço de mercado.
A venda na farmácia só deve ser permitida a quem estiver registado para comprar. O preço no estado do Colorado foi estabelecido de forma a que o imposto igualasse o preço de venda no mercado ilegal. Em Washington consideraram que o imposto devia ser muito mais elevado, porque pensaram que as pessoas estariam dispostas a pagar mais. O que a evidência demonstrou? É que em Washington o mercado ilegal continuou a prosperar, enquanto no Colorado praticamente desapareceu. Mais uma lição aprendida, sendo que não se pode vender abaixo do preço do mercado, para não ser visto como um incentivo ao consumo.
O relatório do SICAD apresenta um aumento do uso de cannabis e João Goulão disse que a discussão sobre o uso terapêutico está a prejudicar a prevenção. O que é que tem a responder?
Que, ano após ano, o consumo está a aumentar. E o que é que está a ser vendido nas ruas? Cannabis mais potente, muitas vezes misturada com produtos sintéticos. O que é que demonstrou a evidência científica? Que a venda de cannabis em grande quantidades, com elevada potência - particularmente abaixo dos 18 anos -, proporciona riscos para surtos psicóticos e esquizofrenia. Se pusermos uma idade mínima, como defendemos, de 21 anos de idade, com concentração baixa de IHC, sem produtos sintéticos, não permitindo a sua venda como produto alimentar ou de qualquer bebida... Mitigando estes riscos, garantimos que os nossos jovens estão mais protegidos, que estamos a acabar com o mercado ilícito (ou a diminuí-lo significativamente) e que estamos a garantir que quem consome está a consumir um produto cujos riscos conseguimos mitigar. Mas é importante dizer-se isto: os riscos para a saúde e para a sociedade são superiores com o tabaco e com o álcool do que com a cannabis neste formato que estamos a defender.
Já conseguiu falar com Rui Rio sobre esta sua proposta, que levará ao congresso do PSD?
Ainda não, espero poder fazê-lo até ao congresso. E espero conseguir convencê-lo a ele e à maioria dos delegados ao congresso, que terão que votar esta proposta.
O congresso devia discutir também a eutanásia?
Creio que sim. É um tema que o PSD terá que discutir, é um tema que nunca terá uma disciplina de voto associada, por estar em causa a vida humana. Mas é um debate que está profundamente inquinado. Ainda recentemente Francisco George, um extraordinário antigo director-geral da Saúde, disse algo com que não posso concordar...
Que nos serviços de saúde privados há um excessivo prolongamento artificial da vida.
Mas a verdade é que não há só nos privados, há em todo o lado. O que estamos todos de acordo é que um prolongamento excessivo da vida é inaceitável. O sofrimento desnecessário da pessoa é sempre inaceitável. Não podemos é confundir a distanásia (utilizar terapêuticas para além do que consideramos razoável) com a eutanásia.
É a diferença entre deixar morrer ou matar?
A questão é mesmo essa. Quando falamos sobre estas matérias utilizam-se argumentos extremos, para não discutir a questão de fundo. Eu percebo que estão a defender o que acreditam que é melhor para a humanidade, mas eu discordo profundamente. Houve um artigo de uma revista internacional que concluiu que a razão por que se pede a morte num contexto de eutanásia (temos que ter a noção que é dizer que estamos dispostos a que o SNS financie que se mate alguém) é que as pessoas têm receio do futuro, estão desgastadas por uma doença prolongada, estão deprimidas ou sentem-se um peso para as famílias. Então, alguém que é contra a eutanásia quer o quê? Que a pessoa sofra?
Felizmente hoje está mais do que demonstrado que há apoio psicológico, muitas vezes familiar, e medicamentoso para mitigar a dor. O que esses medicamentos podem fazer é um duplo efeito terapêutico: eliminar a dor e acelerar o processo de morte. Esse duplo efeito está aceite na ética médica, até pela Igreja Católica. Mas uma coisa é mitigar todo o sofrimento do doente, outra é nós, enquanto sociedade, dizermos que temos várias opções enquanto médicos e que uma delas é a morte. "Esta é mais rápida e nós pagamos". Creio que estaremos a dizer que estamos a desistir. Não posso aceitar que a sociedade desista das pessoas.
O outro argumento que é usado é que as pessoas são livres, autónomas. Quem é verdadeiramente livre perante um Estado que diz: 'Eu desisti de si?' Essa pessoa não é livre. Veja-se o paradoxo: Portugal está no 41.º lugar no acesso a cuidados paliativos, que podem mitigar a dor, e seria o 5.º país do mundo a aprovar a eutanásia. O que aconteceu em todos os outros é que começou com muito poucos casos aprovados - como na Bélgica e Holanda - e onde hoje já mais de 70% dos casos são aprovados. Na Suíça, com o suicídio assistido, entre o primeiro contacto com a agência e a morte decorrem menos de 24 horas. Caso se abra esta porta, com o envelhecimento populacional, estamos a abrir um caminho em que a sociedade não quer cuidar dos mais vulneráveis.
Esta matéria deve ser sujeita a referendo?
Tenho algum receio que o referendo vá levar a uma bipolarização do debate. Porque já tivemos várias experiências com referendos e todos levaram a que alguém seja a favor ou contra. E o que estou aqui a dizer é que há um reconhecimento de que o sistema, como está hoje, está mal. As pessoas estão a sofrer desnecessariamente. O testamento vital não está a ser devidamente implementado.
As pessoas têm recorrido pouco...
Muito pouco. Não existem cuidados paliativos. Há aqui um conjunto de medidas que têm que ser tomadas que significam que a situação actual não está certa, mas em que a eutanásia não é solução. O referendo pode-nos empurrar para um extremar de posições em que as pessoas acabarão por ficar mal.
Mas já há projectos do BE, do PAN, do PS. Isto divide os dois maiores partidos: PSD e PS terão deputados a favor e contra. Mas nenhum dos partidos tinha este assunto nos programas eleitorais. Até que ponto há uma legitimidade para decidir?
De acordo. A posição séria, em particular do PS, teria sido aguardar no mínimo até 2019 e colocar isto no seu programa eleitoral. Feito desta forma parece-me incorrecto. Ainda para mais invocando a dignidade da morte: vivemos numa sociedade em que se fala da dignidade da morte e as pessoas deixaram de falar na dignidade da vida. Temos é que garantir que até ao último suspiro as pessoas terão dignidade na vida. E creio que estamos a inverter toda a discussão, para tomarmos decisões que facilitem a nossa consciência pela ausência do que deveríamos estar a fazer. O SNS está com problemas graves, não está a responder aos problemas das pessoas, dos doentes em particular, e estamos a acelerar o caminho da morte para aliviar o resto. Isso não me parece aceitável. O referendo pode, no limite, dar a legitimidade - mas eu pergunto: vamos perder mais não sei quantos meses numa discussão, sem resolver um conjunto de problemas de base que neste momento estão a permitir que as pessoas estejam a sofrer? É esse apelo à responsabilidade dos deputados que devemos ter como discussão. Os argumentos que aqui apresentei levantam tantas dúvidas sobre a intenção e efeitos da eutanásia que creio que um deputado responsável só pode votar contra.
“Quem estiver com calculismos deixará de ter condições”
Entrou na bancada do PSD em 2011, com Passos Coelho. O que é que espera da liderança de Rui Rio? Apoiou algum dos dois candidatos?
Entrei com Passos Coelho e ele ficará para a história como o primeiro-ministro que nos retirou de uma situação de pré-bancarrota e que criou as condições para o crescimento económico que hoje vivemos. Eu acabei por recusar integrar a campanha de Santana Lopes, porque entendia que Rui Rio reunia melhores condições para, por um lado, permitir que o PSD voltasse a ser reconhecido como um partido de quadros. E que com esses quadros pudesse preparar uma visão alternativa para o país, face ao Governo das esquerdas. Dito isto, a experiência autárquica de Rui Rio traz também uma vantagem, de fazer a política centrada na pessoa, traduzindo uma esperança que sinto no partido…
… na bancada do PSD também sente que há? Vemos Luís Montenegro a posicionar-se, um problema aberto também na liderança parlamentar...
Eu dizia relativamente às bases do partido. O que sinto é que de forma maioritária os militantes estão com o novo líder. Mesmo dentro da Assembleia, há aqui um sentimento da maioria dos deputados de que entrámos num novo tempo. É natural que haja agora uma fase de ajustamento, que é normal. O congresso vai permitir uma clarificação de todas as posições. O fundamental é que o partido, depois, esteja totalmente unido na preparação de uma alternativa que seja credível, realista. O que importa é preparar a próxima década.
Como é que deve ser feita a ponte para a nova liderança, no grupo parlamentar? Tendo ele sido construído pelo anterior líder?
O que Rui Rio tem dito é que tem estiver por bem, genuinamente, é bem-vindo. Quem estiver com calculismos, quem estiver a pensar em daqui a dois, quatro ou seis anos, deixará de ter condições, porque não é isso que o partido precisa. O que precisa é que tenhamos quadros - militantes, simpatizantes -, que estejam preparados para trabalhar numa nova solução alternativa.
A política de alianças será um dos temas do congresso. Acha que o novo PSD terá mais facilidade em estabelecer consensos com o PS?
Mais importante do que qualquer consenso pós-eleitoral que possa ser estabelecido é prepararmos uma visão alternativa. Temos uma moção global de Rui Rio, que define certas bases, mas que tem que ser feito um trabalho. Temos ano e meio. A seguir às eleições, haverá espaço para todos os diálogos. Mesmo que o PSD ganhe as eleições com maioria absoluta, nada impede que possa discutir a integração de independentes ou pessoas de outros partidos numa solução alargada. A 'geringonça', se alguma coisa trouxe de boa para o país, foi ter aberto uma Caixa de Pandora, dizendo que tudo o que existia antes como convenção não é válido. Não será sério, se a nossa preocupação é servir melhor o país, excluirmos qualquer cenário.
Prefere um PSD mais próximo do PS ou do CDS?
Prefiro um PSD que em cada momento escolhe o melhor para o país. Identifico-me como alguém do centro. O PSD foi construído no bom senso. Não devemos ser fundamentalistas, por nos tentarem categorizar numa forma ou noutra.