A Polónia, vítima e ré
A lei agora aprovada, para além de impedir o debate público, vai exacerbar o nacionalismo vigente e certamente também o anti-semitismo.
A actual Comunidade Israelita de Lisboa tem uma característica pouco comum no mundo judaico. Fundada a partir do final do século XVIII por judeus de origem marroquina — muitos dos quais vindos de Gibraltar com nacionalidade britânica —, a Comunidade agrega no seu seio em proporções praticamente idênticas judeus asquenaze, originários da Rússia, da Alemanha e, sobretudo, da Polónia, aqui chegados a partir da segunda metade do século XIX mas sobretudo nas duas primeiras décadas do seculo XX, alguns ainda na década seguinte. É dos judeus polacos que irei falar nesta crónica a propósito da lei agora aprovada pelo Parlamento polaco.
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A actual Comunidade Israelita de Lisboa tem uma característica pouco comum no mundo judaico. Fundada a partir do final do século XVIII por judeus de origem marroquina — muitos dos quais vindos de Gibraltar com nacionalidade britânica —, a Comunidade agrega no seu seio em proporções praticamente idênticas judeus asquenaze, originários da Rússia, da Alemanha e, sobretudo, da Polónia, aqui chegados a partir da segunda metade do século XIX mas sobretudo nas duas primeiras décadas do seculo XX, alguns ainda na década seguinte. É dos judeus polacos que irei falar nesta crónica a propósito da lei agora aprovada pelo Parlamento polaco.
Por que vieram essas pessoas para Portugal? A escolha específica do país terá múltiplos e diversos motivos, mas há um que é comum a todos: o anti-semitismo visceral em numerosas camadas da população polaca. Este anti-semitismo não tinha uma origem racial: numa Polónia sucessivamente partilhada pelas diferentes potências, nomeadamente os impérios czarista e austro-húngaro, a sua origem é essencialmente o nacionalismo cultural e religioso que tende a rejeitar tudo o que não é “genuinamente” polaco e cristão.
No final da Primeira Grande Guerra, a Polónia recupera a sua independência e, sob a ditadura nacionalista do marechal Jósef Pilsudski, o país recupera os territórios perdidos. A Polónia conta nessa época numerosas minorias nacionais, alemã, lituana, bielorussa, ucraniana, neerlandesa e judaica, esta também considerada minoria nacional apesar de os judeus habitarem o país desde o ano 1000 da era cristã. Em 1918, são 10% da população, ou seja 3.500.000 pessoas.
Este modelo identitário, completamente diferente dos judeus da Europa central e ocidental — considerados franceses ou alemães de confissão judaica —, era aceite pela grande maioria dos judeus polacos, lituanos e russos não apenas porque assim eram considerados mas também porque era esse o modelo com que acabaram por se identificar: na Polónia, segundo o recenseamento de 1921, apenas 10% dos mais de três milhões de judeus se declaram polacos, enquanto os outros 90% optam pela nacionalidade judaica. Votavam como judeus, organizavam-se em partidos judaicos e elegiam deputados à Assembleia Constituinte.
Aparentemente bem-sucedido, este tipo de organização que se define como “nacional” ajudará mais tarde à catástrofe. No contexto da devastação causada pela guerra, do desmembramento do grande império austro-húngaro, do ressentimento dos vencidos e simultaneamente de exaltação do nacionalismo, as minorias “nacionais”, e muito especialmente a judaica, serão considerados corpos estranhos, bodes expiatórios a escorraçar ou a aniquilar. Serão os “outros”...
Devido a esse nacionalismo exacerbado, os judeus na Polónia sofrem uma perseguição crescente entre as duas guerras, caracterizada pela discriminação no ensino, incluindo o universitário, nas ordens de médicos e advogados, nos empregos públicos, assim como pelo boicote frequente dos seus comércios. Bodes expiatórios da Grande Depressão que também atinge a Polónia, são também vítimas de violência física degenerando não poucas vezes em motins mortíferos.
Não é pois de admirar que se tenha gerado um movimento de emigração e fuga da Polónia por parte de muitos judeus, nos quais se inclui a minha família materna e muitas outras famílias da Comunidade Israelita de Lisboa que encontraram em Portugal uma terra de acolhimento mais ameno.
Como é do conhecimento público, o Parlamento polaco acaba de aprovar uma lei que pune com três anos de prisão a utilização da expressão “campos polacos da morte”, assim como a atribuição “à nação ou ao Estado polaco” de qualquer responsabilidade no extermínio dos judeus do país. Tem razão?
Na verdade, a expressão “campos da morte polacos” é errada e falsa. Quem conhece minimamente a história do Holocausto sabe perfeitamente que esses campos de extermínio são produto do nazismo e da chamada “solução final” e, se a maioria se encontra na Polónia, uma das razões era a numerosa presença judaica no seu solo. Mas não só: o assassínio em massa das vítimas nazis na Alemanha ou noutro país da Europa Central seria mais difícil de esconder e teria certamente um impacto mais negativo nalguns sectores da população, em particular na própria Alemanha.
A Polónia foi violentamente ocupada pelo nazismo e a sua população, considerada pelos nazis como uma raça inferior destinada a servir os “arianos”, foi brutalmente tratada. As suas elites foram chacinadas logo no início da guerra pelos soviéticos ao abrigo do Pacto Germano-Soviético e, ao longo de guerra, a população polaca foi espoliada, massacrada e Varsóvia completamente destruída. Tanto ou certamente mais cruelmente do que outros países ocupados, a Polónia foi vítima do nazismo. É preciso também dizer que apesar do risco de morte que corriam, o número de “Justos” polacos, ou seja, homens e mulheres “gentios” que salvaram judeus durante a guerra, é o maior de qualquer outro país ocupado. Representa cerca de 25% da totalidade a nível mundial.
Tudo isto é verdade, mas nada disto justifica a lei de censura agora aprovada. Principalmente, porque silencia e abafa o reverso da medalha, ou seja, o lado mais sombrio da história polaca relativamente aos judeus. Muitos habitantes de aldeias quase contíguas aos campos de extermínio foram questionados depois da guerra sobre o que sabiam do que se passava nesses campos. A esmagadora maioria respondeu que nada sabiam quando de facto o cheiro intenso dos crematórios, as próprias cinzas, o vai-e-vem dos transportes eram uma realidade impossível de ignorar. Mas para além da indiferença e da passividade conivente, houve, como refere o investigador polaco Jan Grabowski, uma colaboração activa que se traduziu nomeadamente em denúncias e rusgas maciças contra judeus. Grabowski cita um outro aspecto fundamental: cerca de 10% dos judeus tentaram fugir dos comboios que os levavam para a morte e aí a colaboração polaca com os nazis teve, em sua opinião, um papel significativo no extermínio dos judeus polacos. Mas talvez o episódio mais traumático tenha sido o massacre de mais de 1500 judeus queimados vivos pelos seus vizinhos polacos na vila de Jedwabne a 10 de Julho de 1941, assim como outro ocorrido já depois da guerra em 1946 em Kielce, com o assassinato de cerca de 40 sobreviventes que tentavam regressar às suas casas.
Poder-se-á argumentar que estes foram fenómenos isolados. Não sei, mas há uma coisa que eu sei de uma fonte que não engana: são os testemunhos dos sobreviventes e de muitos judeus polacos da primeira geração que veio para Portugal.
Em 2015, visitei o então recém-criado Museu da História dos Judeus Polacos, em Varsóvia, que nos conta a história fabulosa de mil anos de presença daquela que era antes da Segunda Guerra a maior comunidade judaica do mundo. Na altura fiquei com a convicção de que mais do que qualquer outro país da Europa Oriental que tenho visitado, a Polónia estava a reequilibrar a sua memória, integrando a história dos judeus polacos na história nacional polaca.
Hoje, tenho as maiores dúvidas. A lei agora aprovada, para além de impedir o debate público, vai exacerbar o nacionalismo vigente e certamente também o anti-semitismo. Mesmo que dos judeus já só restem as suas cinzas.