Incêndios rurais, secas e inundações
É necessário dar lugar à transição, do estado actual, para outro mais sustentável.
Desde os grandes incêndios do ano passado, muito se tem dito a propósito de florestas. No entanto, há temas que não têm sido abordados e que vale a pena referir: a relação entre floresta, secas e inundações — nada na comunicação social ou no discurso político parece mostrar que há a noção de que são as árvores (umas mais do que outras) que permitem reter e infiltrar água no solo, de modo a permitir a sua utilização futura e evitar a seca e, por outro lado, a diminuir o risco de inundações. Como em Portugal estes fenómenos podem ocorrer num curto período de tempo devido à variabilidade do clima mediterrânico que nos caracteriza, é bom que as pessoas percebam que tudo está ligado. Sem um ordenamento global da paisagem, não há equilíbrio possível e estes fenómenos agravam-se, não devido a imponderáveis climáticos, sempre desresponsabilizadores, mas sobretudo por inépcia dos agentes que actuam sobre o território, incluindo políticas públicas. E se, particularmente algumas árvores, nos podem salvaguardar de secas extremas e inundações (Molkanov [1] recomenda como valor mínimo da florestação de uma bacia hidrográfica 40% da sua área), é fácil perceber que os incêndios rurais têm consequências catastróficas a nível da água disponível, para já não falar do solo que nos sustenta, do ar que respiramos, etc.
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Desde os grandes incêndios do ano passado, muito se tem dito a propósito de florestas. No entanto, há temas que não têm sido abordados e que vale a pena referir: a relação entre floresta, secas e inundações — nada na comunicação social ou no discurso político parece mostrar que há a noção de que são as árvores (umas mais do que outras) que permitem reter e infiltrar água no solo, de modo a permitir a sua utilização futura e evitar a seca e, por outro lado, a diminuir o risco de inundações. Como em Portugal estes fenómenos podem ocorrer num curto período de tempo devido à variabilidade do clima mediterrânico que nos caracteriza, é bom que as pessoas percebam que tudo está ligado. Sem um ordenamento global da paisagem, não há equilíbrio possível e estes fenómenos agravam-se, não devido a imponderáveis climáticos, sempre desresponsabilizadores, mas sobretudo por inépcia dos agentes que actuam sobre o território, incluindo políticas públicas. E se, particularmente algumas árvores, nos podem salvaguardar de secas extremas e inundações (Molkanov [1] recomenda como valor mínimo da florestação de uma bacia hidrográfica 40% da sua área), é fácil perceber que os incêndios rurais têm consequências catastróficas a nível da água disponível, para já não falar do solo que nos sustenta, do ar que respiramos, etc.
Sobre os incêndios rurais tem-se falado, e bem, a propósito de várias vertentes: aldeias seguras, organização do combate, etc. Daquilo que não se tem falado é da futura organização do espaço rural e muito particularmente do espaço florestal. Que pinheiro e eucalipto são as espécies mais combustíveis entre as que ocupam o país, parece já haver uma noção generalizada, embora alguns insistam na máxima de que não é a espécie que interessa (em matéria de incêndios), mas sim a gestão. Se, no total do espaço florestal, 56% é constituído por pinheiro bravo e eucalipto e se, da área que ardeu, 53% era pinheiro bravo e eucalipto (Carta de Ocupação do Solo 2010), é evidente que a composição da ocupação desse espaço tem que ser alterada. Ora, quando o Governo diz que só vai permitir eucalipto nas áreas anteriormente ocupadas por essa espécie, é o mesmo que dizer que tudo vai ficar na mesma. Muito particularmente a área do Pinhal Interior que ardeu praticamente toda, na sua maior parte era ocupada por eucalipto, que aliás já está a regenerar. Também o pinheiro bravo regenera naturalmente com toda a facilidade.
Conclusão: se nada se fizer, o que vamos ter no futuro é mais uma vez eucalipto e pinheiro para alimentar o ciclo infernal dos incêndios. O outro pressuposto que há a considerar é que as folhosas autóctones ou tradicionais, além de serem menos combustíveis, produzem uma folhada capaz de melhor regenerar o fundo de fertilidade do solo do que o pinheiro e o eucalipto e, sem solo vivo, a paisagem e, portanto, o país caminham para o deserto e o despovoamento. Isto obriga-nos à proposta de um modelo de ordenamento do território mais resiliente.
Em síntese, há que criar alternância na combustibilidade da ocupação do território. Esta alternância tem que estar relacionada com a forma do terreno porque esta determina o comportamento do fogo, tanto mais, quanto maior for o declive. Há duas estruturas fundamentais, nas quais se deve garantir a natureza do revestimento: uma constituída pelas linhas de água e os fundos de vale que devem ser revestidos por folhosas da galeria ripícola ou, se houver agricultores, agricultura; outra, constituída pelas cabeceiras das linhas de água que devem ser revestidas por folhosas (que não o eucalipto), ou seja carvalhos, entre os quais o sobreiro que é retardador de fogo (desde que tenha cortiça), mas também o castanheiro. O olival, a vinha e a pastagem são outros modos de ocupação muito úteis para a criação de espaços abertos onde o fogo tem mais dificuldade em progredir. Nas vertentes, as linhas de água secundárias com galerias ripícolas, ou freixo nas situações mais secas, ou ainda agricultura, podem formar linhas, no sentido do maior declive, que interrompem ou retardam a progressão do fogo quando lavra longitudinalmente à encosta. Estas estruturas da paisagem são complementadas por vazios constituídos por vias e caminhos.
A implementação deste novo modelo espacial não nega a existência de eucalipto e de pinheiro bravo, mas implica a redução da área actual e localiza estas duas espécies em situações contidas dentro do “miolo” da nova estrutura criada, embora com exigências específicas de gestão, incluindo a exclusão das zonas mais declivosas. Está-se a falar duma mudança de paradigma que, para acontecer, tem que ser financiada: a agricultura tem um papel importantíssimo na criação de um tampão ao fogo à volta das aldeias e cidades e ao longo dos vales, tal como acontecia antigamente e continua a acontecer em muitos casos. Não se trata da grande agricultura industrial, mas da pequena agricultura familiar que permitirá manter pessoas a viver nas zonas mais desfavorecidas — esta agricultura, que tem um papel muito para além da subsistência dos seus promotores, tem que ser financiada por fundos públicos.
A introdução de folhosas, por plantação ou regeneração natural, também tem que ser financiada. Trata-se de financiar a transição entre um modelo em que o eucalipto e o pinheiro bravo são dominantes, para outro em que as folhosas autóctones materializam uma estrutura de protecção contra os incêndios e de conservação da água, do solo e da biodiversidade. Um dos modos de promover este financiamento é através da instituição de uma tabela de serviços de ecossistemas que contabilize os benefícios que o novo modelo trará para a sociedade. É também preciso mostrar que a nova paisagem criada é economicamente viável, introduz diversidade na produção e pode fixar pessoas no terreno, mas é necessário dar lugar à transição, do estado actual, para outro mais sustentável.
[1] Molchanov, A. A., Hidrologia Florestal, 1963, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1971