Azulejos na Praça da Figueira: um grave atentado de leso-património
A importância deste bloco deve-se ao facto de ele constituir um arquétipo ainda intacto da primeira fase da Reconstrução Pombalina.
Repentinamente, fomos confrontados com um acto consumado. A fachada tardoz do importante bloco pombalino, elemento único e da mais alta importância patrimonial, determinante para a formação das duas praças do Rossio e da Figueira, foi coberta por azulejos.
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Repentinamente, fomos confrontados com um acto consumado. A fachada tardoz do importante bloco pombalino, elemento único e da mais alta importância patrimonial, determinante para a formação das duas praças do Rossio e da Figueira, foi coberta por azulejos.
A importância deste bloco deve-se ao facto de ele constituir, juntamente com o outro no Largo de S. Paulo, já referido por mim em outro artigo no PÚBLICO, um arquétipo ainda intacto da primeira fase da Reconstrução Pombalina, segundo os parâmetros estabelecidos por Eugénio dos Santos e Carlos Mardel.
Através dos tempos, as volumetrias e tipologias dos edifícios das duas praças foram sendo alteradas, no processo da segunda fase da Reconstrução, ao longo do séc. XIX e mesmo do séc. XX (Hotel Metrópole, Rossio, 1917). Daí a importância deste bloco, representante da escala original do projecto da Casa do Risco para a Praça do Rossio.
Este casus da proposta dos azulejos para a Praça da Figueira conheceu várias peripécias, com momentos e episódios mais ou menos obscuros. Assim, o projecto inicial da iniciativa de Daciano Costa data de 2001, no período do mandato de João Soares, que simultaneamente se viu confrontado com todo o projecto para o Elevador do Castelo.
O projecto, que era caracterizado por uma polémica intervenção de radical afirmação em ruptura e contraste com o legado patrimonial, através de uma linguagem “de azulejos azuis e brancos mais escuros nos andares de baixo e mais claros nos pisos de cima, de modo a criar um efeito degradée”, não foi realizado, e os respectivos cem mil azulejos foram guardados num armazém em Alcântara.
Em 2004, o projecto regressa, agora no mandato de Carmona Rodrigues, o que levou a uma nova proposta de azulejos, agora fabricados na Viúva Lamego seguindo novas exigências técnicas que se pretendiam mais adequadas. Custo desta nova operação: entre 350 e 400 mil euros.
Este processo foi “acompanhado” por Inês Cotinelli, assessora de Carmona entre Novembro de 2003 e Julho de 2006, filha de Daciano Costa, e também posteriormente sócia-gerente da empresa Sociedade Daciano da Costa. É de destacar que o atelier Daciano Costa, depois da morte do titular em 2005, passou a ser dirigido pela arquitecta Ana Costa.
A “relação” de Ana Costa com o pombalino foi definida numa intervenção mais do que infeliz na Rua Ivens (31) em 2013, determinada pelo conhecido “fachadismo” preconizado e estimulado por Manuel Salgado, em que a fachada era o resultado de um pastiche totalmente betonizado, criando um bloco monolítico, híbrido, betonizado e plastificado, produto do nivelamento de duas anteriores fachadas presentes em dois edifícios originais... Mansardas pombalinas, trapeirão, gaiolas, tudo foi sacrificado, juntamente com os interiores, com excepção da escadaria e alguns azulejos. Quanto à fachada tardoz, esta pode-se “perspectivar” a partir do Largo da Boa Hora, confirmando a promessa de “Apartamentos de Luxo com garagem e vista deslumbrante”.
Já em 2017, em função do impacto deste novo projecto para os azulejos na Praça da Figueira, perante as exigências do Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina que “prevê a salvaguarda dos revestimentos primitivos das fachadas” que “se encontravam rebocadas e pintadas”, foi pedido um parecer na DGPC ao conselho consultivo, que produziu um parecer não consensual, onde dúvidas são exprimidas sobre o valor desta intervenção para um conjunto de Interesse Público. Para que serve então o plano de pormenor? Qual é o papel da DGPC na salvaguarda patrimonial da Baixa?
Na minha opinião, como reacção a este caso, e tendo em conta a ainda vigente mas cada vez menos provável intenção de candidatura da Baixa a Património Mundial, a DGPC devia ter respondido com uma proposta para a classificação deste único e determinante bloco como Monumento Nacional, garantindo assim a preservação na íntegra das suas características exteriores e interiores. Porque parece impossível, simplesmente, restaurar um edifício desta importância, agora, através desta intervenção “excepcional”, dividido na linguagem das suas fachadas entre Rossio e Figueira e “desconstruído” esquizofrenicamente e neuroticamente de forma bipolarizada, num atentado da sua unidade indivisível?
Um grave atentado de leso-património permitido por todos!