As alterações climáticas estão prestes a secar a Cidade do Cabo
Há meses que quatro milhões de pessoas vivem sob o espectro do dia da seca total, em que nada sairá das torneiras. Esta pode tornar-se em breve a primeira metrópole a ficar sem água.
Nos últimos meses, os habitantes da Cidade do Cabo aprenderam a reservar algumas horas do seu dia para ficarem em filas, por vezes de centenas de pessoas, à espera de encher garrafões e baldes de água em fontes e nascentes. Dentro de três meses, os cerca de quatro milhões de habitantes podem ver-se subitamente com a água canalizada cortada, num pesadelo que combina as alterações climáticas, más decisões políticas e desigualdade económica.
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Nos últimos meses, os habitantes da Cidade do Cabo aprenderam a reservar algumas horas do seu dia para ficarem em filas, por vezes de centenas de pessoas, à espera de encher garrafões e baldes de água em fontes e nascentes. Dentro de três meses, os cerca de quatro milhões de habitantes podem ver-se subitamente com a água canalizada cortada, num pesadelo que combina as alterações climáticas, más decisões políticas e desigualdade económica.
As autoridades municipais da Cidade do Cabo transformaram o iminente esgotamento das reservas de água canalizada numa espécie de contagem decrescente, digna de um filme de horror de baixo orçamento. Foi cunhado até um termo especialmente dramático, o “Dia Zero”. Este será o dia em que a capacidade média das barragens que fornecem água à cidade estiver abaixo dos 13,5%. O nível actual está em cerca de 26%.
O Dia Zero será “o maior desastre a abater-se sobre uma cidade do Ocidente desde o 11 de Setembro”, disse a governadora do Cabo Ocidental, a província onde se situa a Cidade do Cabo, Helen Zille. Poucos julgam ser possível evitar a chegada do Dia Zero. A prioridade tem sido a de o adiar ao máximo. As últimas projecções apontavam para 16 de Abril.
Tal como numa profecia apocalíptica, todos sabem o que acontece quando o dia chegar. A água das torneiras nas zonas residenciais será cortada – nas áreas mais pobres não haverá um corte, mas a água irá correr com pressão reduzida.
Mantém-se o fornecimento a edifícios considerados essenciais, como escolas, hospitais ou bombeiros. A população poderá dirigir-se a um dos 200 postos de distribuição de água racionada, onde vai haver forte presença policial, mas cada pessoa tem direito a 25 litros por dia. Como termo de comparação, em Portugal o consumo médio é superior a 200 litros diários.
“Pesadelo logístico”
Não é preciso muita imaginação para contemplar os riscos associados a um cenário tão extremo. É a própria governadora que admite que gerir filas nos postos de distribuição de água numa metrópole de quase quatro milhões de pessoas será “um pesadelo logístico”.
“Ninguém sabe com certeza como é que o Dia Zero irá funcionar na prática”, dizia ao Financial Times Vivienne Mentor-Lalu, enquanto estava numa das filas intermináveis junto de uma fonte pública. A Human Rights Watch já deixou apelos às autoridades para que garantam que as “comunidades marginalizadas não sejam deixadas de lado”.
Para evitar, ou adiar, a chegada do Dia Zero, a Cidade do Cabo está em regime de poupança há já vários meses. Os habitantes estão proibidos de lavar os carros, regar os relvados ou encher as piscinas, e multiplicam-se os apelos para que os habitantes não gastem mais de 50 litros por dia. Recentemente foi activado um controverso mapa de acesso online que permite a cada morador verificar quais as casas onde os gastos são mais elevados.
Um dos principais receios é o do potencial impacto negativo sobre duas das principais fontes de receitas da região – o turismo e o vinho. A Cidade do Cabo, frequentemente presente nos rankings de cidades mais bonitas do mundo, foi visitada por dez milhões de habitantes no ano passado e, apesar de ainda não existirem dados recentes, os responsáveis locais temem uma queda acentuada, uma vez que também os hotéis e restaurantes têm de seguir os regulamentos de poupança de água.
"Não há dúvida que o efeito dominó do problema da conservação de água em que nos encontramos tem tido um impacto sobre o turismo", disse à Reuters o presidente do Turismo da Cidade do Cabo, Enver Duminy.
Também a crucial indústria vinícola começa a sentir os efeitos da seca. Sem água, as colheitas são fracas ou praticamente inexistentes. As projecções apontam para que a colheita deste ano seja a mais pequena desde 2005 e espera-se uma queda de 9% no volume de vendas, segundo a Quartz, pondo em causa uma indústria que emprega 300 mil pessoas.
Chuva de crises
Mas o que se passou para que uma cidade que até há poucos anos era considerada um exemplo pela sua gestão da água estar em vias de se tornar a primeira metrópole mundial a ficar a seco? Há três anos que a África do Sul vive em clima de seca, com Invernos sem chuva e Verões com temperaturas muito elevadas. As taxas de pluviosidade na Cidade do Cabo passaram de 500 milímetros em 2014 para 153 no ano passado, segundo o Financial Times. E os especialistas estão convictos de que esta não é uma tendência pontual, mas poderá tornar-se a norma nos próximos anos.
“Os anos mais secos vão ser mais secos do que foram, e os mais húmidos vão deixar de ser tão húmidos”, resumia o especialista da Universidade da Cidade do Cabo, Piotr Wolski, citado pelo New York Times.
A estratégia da cidade parecia dar resultado até o clima começar a mudar. Mesmo com o acelerado crescimento populacional nas últimas décadas, as reservas de água nas barragens mantinham-se praticamente inalteradas. Em 2014, as campanhas de sensibilização levadas a cabo pela cidade foram premiadas internacionalmente. “O crescimento do consumo de água foi reduzido para menos de 2% por ano e o desperdício foi reduzido em 20%, resultando numa poupança total de cerca de 30%”, concluíram os júris do concurso.
O problema é que o fornecimento público de água para a Cidade do Cabo é proveniente quase em exclusivo das seis barragens próximas, deixando a cidade dependente da pluviosidade, ou seja, à mercê dos períodos de seca. Foram deixados de lado projectos de investimento em fontes alternativas de água, como estações de dessalinização. “A natureza não está particularmente disposta a fazer compromissos”, sublinha o ex-director do Departamento de Água sul-africano, Mike Muller, em declarações ao New York Times.
Num assunto tão sensível, a tentação para que a política entre em jogo é grande – e, no ambiente altamente polarizado da política sul-africana, ninguém parece estar a tentar evitar essa politização. As autoridades municipais, controladas pela Aliança Democrática, na oposição a nível nacional, criticam o Governo central por não ter apoiado investimento público em infra-estruturas para lidar com o problema da água na região.
Do Congresso Nacional Africano (ANC) vêm acusações de má gestão por parte do município. O braço regional do partido chegou mesmo a dizer que o Dia Zero não passa de uma “invenção da AD, que se traduz em nada mais do que um instrumento desnecessário para perturbar os habitantes através de uma retórica em torno de um pseudodia do julgamento final”.
Em comum, os dois partidos têm o facto de passarem por momentos turbulentos na sua vida interna. O ANC, no poder desde o fim do apartheid, vive uma crise de legitimidade centrada na miríade de casos de corrupção que envolvem o Presidente, Jacob Zuma – no final do mês volta a enfrentar nova moção de censura.
A crise da AD localiza-se precisamente na Cidade do Cabo. A presidente da câmara, Patricia de Lille, é também acusada de corrupção e pode ver o seu lugar em risco, com cada vez mais vozes a pedirem a sua demissão, tanto dentro como fora do partido.
Por causa da precariedade do seu cargo, tem sido cada vez mais a governadora, Helen Zille, também da AD, a dar a cara na crise da água. Os dois partidos estão com os olhos postos nas eleições nacionais do próximo ano, cujo desfecho parece ser cada vez mais imprevisível.
Mas para além das alterações climáticas e da instabilidade política, a crise da Cidade do Cabo também revela a face de uma sociedade desigual. Medidas actualmente em curso como as restrições às regas dos jardins ou à manutenção de piscinas nada significam para um milhão de pessoas que moram nas townships nos arredores da cidade, onde a escassez de água é uma realidade há já bastante tempo.
“Se a minha família de nove pessoas consegue sobreviver com menos de 350 litros de água por dia, porque não podem as outras?”, questionava, num texto de opinião no Daily Maverick, uma habitante de uma township.