Amor em Sacavém
Ainda lá está. Já curvada, mas com raízes mais profundas. Foi junto dela, uma árvore jovem, que pedi namoro à miúda mais bonita do liceu. Eu, um rapaz desengonçado e tímido, enchi o peito de ar e pensei que também era capaz. O sim ou o não ficaram adiados para o intervalo seguinte. Faltei a Português e fui afogar a ansiedade em cerveja. A hora chegou. Não podia adiar. E o sim derrotou o não. O que parecia um atrevimento momentâneo de um desengonçado transformou-se num amor de anos.
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Ainda lá está. Já curvada, mas com raízes mais profundas. Foi junto dela, uma árvore jovem, que pedi namoro à miúda mais bonita do liceu. Eu, um rapaz desengonçado e tímido, enchi o peito de ar e pensei que também era capaz. O sim ou o não ficaram adiados para o intervalo seguinte. Faltei a Português e fui afogar a ansiedade em cerveja. A hora chegou. Não podia adiar. E o sim derrotou o não. O que parecia um atrevimento momentâneo de um desengonçado transformou-se num amor de anos.
Atravessámos todas as descobertas próprias de quem nunca tinha amado. Trocámos milhares de verbos e adjectivos escritos à mão em cartas transportadas pelos correios públicos e cumpridores. Fizemos juras de amor eterno. Projectámos um futuro risonho. Foram anos assim. Uma maratona suada de olhares cúmplices e ternuras de pele. E quando a meta da maratona já se via lá ao longe, as cartas acabaram, o telefone não tocou mais, as mãos não se voltaram a entrelaçar e a ternura desvaneceu-se. Nunca. Nunca dissemos um ao outro a palavra “acabou”. Faltou coragem. Ficámos em suspenso como que ligados ao ventilador.
É bom fechar os olhos e percorrer a fita do tempo. É bom quando a fita nos dá prazer. Nos ensina. O tempo tem destas coisas. Não me importo nada de estar a envelhecer. Quando passo junto à imponente fachada do antigo liceu, olho sempre para a árvore, agora já curvada como eu. Ganho força. Amor. Palavra quase proibida. Fora de moda. Antiga. Que não se usa. E o mundo necessita tanto dela.
Hoje quase nos espezinhamos. A ganância não olha a meios. Somos máquinas de carne. Máquinas do dinheiro. Alucinados e convencidos de que temos uma vida feliz. É natural ouvir o chavão que o mundo mudou. Mudou? Somos modernos. Evoluídos até. É moderno não ser trabalhador, mas colaborador. Não ter um emprego, mas ser precário. É moderno reduzir a massa salarial e ser despedido. É moderno viver na rua porque é um modo de vida. Chamar aos direitos privilégios. É moderno morrer por falta de um exame médico, porque se tem de poupar. É moderno aumentar os lucros para a economia florescer. É moderno desviar em vez de roubar. Segregar em vez de integrar. É moderno ter, afinal, ideias e métodos tão antigos.
Escrevo. Apago. Volto atrás. Escrevo duas frases. Fico com dúvidas. Sinto-me deslocado. Não sou moderno. Eu sei. Escrevo sobre o amor. Escrever sobre o Ronaldo teria mais leitores. Amor? Sim, fui encontrá-lo em Sacavém.
À direita, um edifício gigante abandonado. Também ali já trabalharam centenas de pessoas. Agora é um esqueleto. À esquerda, outro edifício espera pela morte anunciada. Mulheres de azul transformam-se em guardiãs da dignidade. Trabalharam anos ao minuto. A um ritmo desumano. Para produzirem cada vez mais. Meia hora para almoçar. Ao segundo. Os modernos deixaram de pagar salários. Os modernos queriam levar as máquinas. As mulheres, antigas, com sabedoria, montaram a vigília. Unidas, defenderam ao minuto o mais elementar direito, o seu salário.
Fizeram da berma da perigosa estrada a sua cozinha, a sua despensa, a sua sala de estar. Da fogueira, o seu aquecimento. Sol, chuva, vento, frio, nevoeiro. Força, desencanto, alegria, lágrimas. Muita solidariedade. Dos que sempre a manifestaram. Afectos de quem sempre os deu e não os descobriu agora para posar em frente a uma câmara de televisão. Desta vez faltou à chamada. Na manhã que souberam que não era mais necessário guardar o portão branco, as mulheres abraçaram-se genuinamente, gritando, rindo e soluçando. Eu também, escondido na minha câmara fotográfica, deixo que os olhos humedeçam.
No passeio em frente à fábrica, uma linha de cadeiras está agora vazia. As mulheres não conseguem estar sentadas. A espera acabou. Sentado numa caixa vermelha descanso as pernas e olho para aquelas mulheres. Que lição de vida me estavam a oferecer. Ali estava a luta, o amor. Eu não podia estar distante. Nenhum português devia estar distante. Fiquei feliz por elas. Aquelas mulheres exploradas até ao tutano trabalhavam com amor. Gostavam do que faziam. Parece um contra-senso. Exploradas ao minuto, mas felizes. Só se explica porque já eram umas guerreiras.
A sua luta de dias infindáveis deixará sementes. Poderão nascer árvores. E debaixo delas poderá nascer amor.