Por uma “educação sentimental” persistente
O estudo da história dos direitos humanos ajuda a demonstrar, ao mesmo tempo, a sua precariedade e a urgência da sua obstinada protecção, sem cedências ou equívocos, recusando cinismos fáceis e optimismos convenientes.
Os “visionários”
No dia 10 de Dezembro do corrente ano celebrar-se-á o septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Profusamente celebrada, a declaração constitui um dos marcos da história do século XX. A icónica figura de Eleanor Roosevelt contemplando a recém-nascida declaração é, porventura, a mais conhecida imagem associada a este momento. Até há bem pouco tempo, Eleanor Roosevelt era generalizadamente reconhecida como a grande impulsionadora da declaração. O primeiro responsável pela Divisão de Direitos Humanos da ONU, o canadiano John Humphrey, e o veterano da Primeira Guerra Mundial e pacifista francês René Cassin completavam o leque de figuras cimeiras deste novo universalismo.
Menos conhecida é a figura de Charles Malik, filósofo e mais tarde diplomata libanês. Formado numa escola missionária presbiteriana, acabaria por rumar, depois de uma estadia breve no Cairo, a Harvard, em 1932. Seria um dos mais entusiastas redactores da declaração entre 1946 e 1948, nos debates da terceira comissão do Conselho Económico e Social da ONU e na Comissão de Direitos Humanos. Fervoroso defensor de uma declaração que, acima de tudo, protegesse o indivíduo dos abusos do Estado — para o que terá contribuído a visita que fez ao III Reich em 1936 —, Malik fez parte de uma longa lista de cerca de 250 delegados e conselheiros de 56 delegações que participaram na criação da carta. Esta incluiu personalidades como Peng-chun Chang, representante da China nacionalista, Carlos Rómulo, das Filipinas, o também libanês cristão Jamil Baroody, que representava a Arábia Saudita, ou a indiana Hansa Mehta.
A presença destes, e outros, representantes não se limitou a emprestar um verniz de diversidade aos encontros. Todos eles resistem a uma catalogação simples. Chang e Malik são muitas vezes descritos como “ocidentalizados”, em razão da sua formação nos Estados Unidos. Mas Chang, por exemplo, foi um dos principais críticos do colonialismo europeu durante os trabalhos. Malik desafiou tanto soviéticos como franceses e britânicos quando defendeu que aqueles mais bem preparados para escrever uma carta para a humanidade seriam poetas e filósofos, não representantes governamentais. Opôs-se aos mesmos delegados quando disse que não poderia haver cedências no carácter absoluto dos direitos de cada ser humano em prol de um bem maior colectivo. É, no entanto, a ele que se deve o único artigo da carta que se refere a um grupo e não a indivíduos: a família. Confrontou ainda o seu compatriota Baroody ao rejeitar qualquer limitação legal à possibilidade de alguém mudar de religião. Foi este o motivo que levou a Arábia Saudita, na companhia da África do Sul e dos países do bloco de leste, a abster-se na votação do texto proposto da declaração. É a Mehta que se deve o facto de no artigo primeiro se mencionarem “todos os seres humanos” e não “todos os homens”.
A história destes intervenientes na formação de um projecto, contestado e contingente, de universalização de um cardápio específico de direitos só nas últimas décadas tem vindo a ser devidamente destapada. As ideias e os discursos sobre os direitos humanos passaram a ser olhados não apenas como normas e declarações, mas também como uma gramática que promoveu o debate sobre que valores, motivações e interesses deviam prevalecer na sociedade. O seu conteúdo foi e é necessariamente dinâmico, historicamente contingente. A incapacidade de historicizar os direitos humanos nas suas múltiplas manifestações, enquanto programa de acção ou horizonte moral, enquanto expediente diplomático ou corpus normativo, deixou um lastro de antinomias toscas, mas eficazes. E difíceis de apagar.
Para uns, os direitos humanos são uma justificação hipócrita da continuação de formas perenes de desigualdade social e violência material e simbólica. Ou ainda de projectos de intervenção militar, política ou económica. São um instrumento de reprodução social, de hierarquias e privilégios. Para outros, são mecanismos inquestionáveis de moralização e transformação social, verdades incontroversas, essências sem história e sem geografia: o naturalismo, o universalismo e o voluntarismo andam de mão dadas.
Para uns, são um mero resíduo ideológico, variando de acordo com geografias e interesses específicos, intraduzíveis ou inegociáveis. Para outros, tratam-se de uma mera linguagem técnica e especializada, legal ou teológica, cuja (in)constância radica ora no direito nacional e internacional, ora na exegese da palavra. No legalismo ou no fundamento, na substância da lei ou do verbo. Em ambos os casos são frequentemente tomados como propriedade excepcional do “Ocidente”. Este teria criado os princípios filosóficos, religiosos e políticos propiciadores da emergência e institucionalização global de um regime e de uma cultura dos direitos humanos a tomar como referência universal.
Muitos outros antagonismos sobre o tópico poderiam ser referidos. A lista é quase infindável, reproduzindo outras posições de “princípio”, muitas escassamente informadas de um ponto de vista empírico e, por isso, incapazes de registar os matizes históricos que ajudam a contextualizar a emergência e transformação dos direitos humanos. Ora, nenhuma destas perspectivas, argumentações e genealogias é clara ou sustentável per se. A obra de Paul Gorden Lauren, The Evolution of International Human Rights. Visions Seen (1998) foi uma das primeiras a iluminar o denso, contraditório e riquíssimo mosaico histórico dos direitos humanos. Foram muitos os “visionários” que, por uma variedade de razões, da pena ao impulso altruísta, da indignação ao cálculo político, imaginaram e advogaram a causa, sempre num ambiente de visões conflituantes.
Uma história curta e longa
O regime legal de direitos humanos que emerge após a Segunda Guerra Mundial é, em vários sentidos, único e inédito. Ao contrário do regime da Sociedade das Nações (SDN), ele inscreve direitos em torno do indivíduo, não de grupos. O seu âmbito é universal, sem excepção de raça, género, religião ou etnia. Funda-se na “dignidade” inerente de todo o ser humano, não numa base religiosa ou do Direito Natural. Situa-se acima e apesar dos Estados. Estas diferenças permitem pensar a história dos direitos humanos de uma forma não linear e contextualizada. Não obstante a esporádica referência explícita aos direitos humanos, antes de 1945 estes não eram vistos como matéria passível de ser institucionalizada a uma escala internacional. Falar do abolicionismo como um movimento de direitos humanos avant le mot obriga a ignorar as diversas realidades pós-abolição marcadas pela abundante codificação de novos regimes discriminatórios (em matéria eleitoral e laboral, por exemplo). As “intervenções humanitárias” tendo por fim proteger as populações cristãs do império otomano em finais do século XIX não radicavam num projecto de absoluta igualdade humana, antes em solidariedades de natureza religiosa (e claros imperativos geopolíticos).
A ideia de ruptura na história dos direitos humanos é, como tal, tão importante como a de continuidade. As promessas feitas em nome do combate ao nazismo (mais do que propriamente a recordação do Holocausto, que ainda levaria alguns anos a assumir a centralidade no discurso público que hoje detém) ou a emancipação política asiática foram alguns dos aspectos que permitiram que o projecto dos direitos humanos universais fosse codificado no momento e nos termos em que o foi.
Nada disto impede a identificação de um processo cumulativo. Por exemplo, as técnicas de denúncia do movimento abolicionista, com imagens poderosas, e mais tarde de movimentos como o de E. D. Morel contra as atrocidades no Estado Livre do Congo, então já com fotografias, foram uma herança que movimentos mais recentes de promoção de direitos humanos não enjeitaram. No mesmo sentido, com todas as suas insuficiências, a acção da SDN na história da afirmação de direitos internacionais não pode ser negligenciada. A catástrofe da Primeira Guerra Mundial e as suas consequências imediatas, tanto no que diz respeito à modificação das fronteiras das soberanias políticas como no que concerne aos variados processos de desestruturação social, exigiu novas formas de protecção de direitos. O modo como os Estados asseguravam o justo e humano tratamento dos seus habitantes tornou-se objecto de escrutínio internacional. Mesmo sem instrumentos de intervenção, reguladores ou punitivos, a gradual propagação de parâmetros morais internacionais a este respeito não deixou de ter efeitos progressistas. O âmbito da SDN alargou-se: do combate ao tráfico do ópio e do tráfico de mulheres e crianças, passando pela escravatura, à regulação dos direitos sociais e económicos.
As razões destes esforços não assentaram, no essencial, em motivações humanitárias ou morais. Decorreram acima de tudo da razão dos Estados e de congeminações geopolíticas, amiúde de alcance imperial, com todo o cortejo de hierarquias, desigualdades e discriminações associadas. A igualdade nunca foi um verdadeiro princípio de acção em Paris ou Genebra. Mas os parâmetros da moralidade internacional, incluindo aqueles plasmados nos debates sobre o Direito Internacional, não deixaram de ser revistos. Os mecanismos de inquirição, regulação e denúncia internacionais aumentaram, em número e em alcance. O compromisso internacional em torno de um regime de direitos humanos não foi uma realidade inquestionável. Mas a porta foi decisivamente aberta. A imaginação e as possibilidades de intervenção política sobre o tópico ganharam uma outra dimensão. No final dos anos 30, o escritor britânico H. G. Wells tinha amplas razões para denunciar o “simulacro de Genebra”, a ineficiência do internacionalismo do entre-guerras. Mas a sua advocacia da necessidade de aprofundar o alcance do regime dos direitos humanos, sem transigências ou habilidades diplomáticas, não teria sido tão positivamente acolhida sem os esforços patrocinados pela SDN e o seu campo de forças institucional, que não se esgotava nos vários governos que a compunham. Se a afirmação global das ideias e dos repertórios de direitos humanos não foi linear e coerente, foi certamente cumulativa e expansiva.
Após o descalabro, o esforço consequente
A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem assim, ao mesmo tempo, uma história longa e curta. A simplificação do seu conteúdo e importância a um produto instrumental do “Ocidente” — categoria frequentemente invocada como homogénea e estável, sem impurezas e contradições, sem história e sem geografias permeáveis — obscurece mais do que revela.
Os anos que se seguiram à proclamação da declaração são elucidativos. Tanto os Estados Unidos da América e seus aliados europeus como o bloco socialista começaram a olhar para os debates nas Nações Unidas sobre direitos humanos com crescente desconfiança. Isso não impediu que vários Estados europeus congeminassem a iniciativa pioneira de um tribunal de direitos humanos regional ou que, ainda nos finais dos anos 40, organizações não governamentais ligadas ao Governo norte-americano desencadeassem iniciativas em torno dos direitos fundamentais que procuravam embaraçar diplomaticamente os regimes socialistas, como foi o caso do trabalho forçado.
A consequência mais imediata deste aparente desinteresse da parte dos dois blocos foi a que Charles Malik previu: outros ocupariam o lugar vazio. Os debates que se seguiram na Comissão dos Direitos Humanos, centrados na criação de dois convénios que tornassem a declaração operacional, foram marcados por uma nova fractura, desta feita entre o Norte e o Sul. A narrativa trivializada fornece um retrato monolítico destes agentes do então chamado “terceiro mundo” ou simplesmente divide-os entre os dois pólos da Guerra Fria. A realidade foi mais complexa, com intensos debates que se arrastariam até à Conferência de Bandung, em 1955, onde a questão dos direitos humanos esteve longe de estar ausente: a ligação entre direitos humanos individuais e o princípio da autodeterminação colectiva constituiu um dos principais pomos de discórdia.
Motivo de aceso debate na literatura especializada, que tem Samuel Moyn como um dos principais intervenientes, a avaliação do peso das dinâmicas coloniais e da descolonização formal na institucionalização global do regime dos direitos humanos é outro exemplo da necessidade de resgatarmos as nossas reflexões das garras da indústria de simplificações ruidosas e dos usos ligeiros da história. Em vários casos marcados por violentas e sangrentas confrontações e por vários experimentalismos “modernizadores” com consequências nefastas, o colonialismo tardio forneceu inúmeras oportunidades para colocar os projectos coloniais europeus no centro dos debates sobre a importância de um regime expansivo dos direitos humanos.
Do Quénia e da Argélia ao Chipre, passando por Angola e Moçambique, a combinação de iniciativas de transferência forçada de populações e o seu confinamento em “aldeamentos” ou em campos de “recuperação”; a prevalência de estados de excepção, nem sempre sequer declarados oficialmente; os julgamentos e as execuções sumários; o refinamento de práticas de tortura e “acção psicológica”; as operações “especiais”, muitas até hoje mais ou menos desconhecidas, sem data, sem nomes ou consequências; contribuíram para que, à época como hoje, se torne difícil ignorar a relação significativa entre as dinâmicas do colonialismo tardio e a internacionalização do problema dos direitos humanos. Para esta não contribuíram apenas os novos Estados independentes. Associações como a Liga Internacional dos Direitos do Homem, a Comissão Internacional de Juristas ou a Federação Sindical Mundial embrenharam-se a fundo nestes debates. Os poderes coloniais temiam particularmente os debates sobre direitos humanos pela sua incidência colonial. Não por acaso, em 1955, Peter Benenson, um jovem advogado que dirigia então o English Human Rights Movement e que viria a criar a Amnistia Internacional em 1961, viu-lhe ser negado o apoio oficial do Governo inglês porque o seu caderno de encargos incluía as “áreas dependentes”.
Esta relação foi muito clara nos fóruns internacionais e permite o questionamento de narrativas mais ou menos estabelecidas. Nos primeiros anos após 1948, o relativismo cultural era invocado precisamente pelos delegados ocidentais. René Cassin, por exemplo, advogava uma cláusula de excepção colonial, visto que seria pouco avisado vincular “diferentes povos a obrigações uniformes”. Representantes da Bélgica, do Reino Unido e da França argumentavam que os povos “atrasados” não estariam preparados para gozar dos direitos “ocidentais”. Foram, no entanto, derrotados no âmbito da comissão. A linguagem dos direitos humanos era incompatível com aquele que era então visto por alguns como o supremo direito humano, o direito de autodeterminação. A consequência mais óbvia desta asserção foi que, depois de mais de 15 anos de intensos debates, quando os dois convénios sobre direitos humanos foram aprovados em 1966, o direito de autodeterminação colectiva era, em ambos, o primeiro a ser enumerado. Para alguns, a relação entre autodeterminação e direitos individuais não era contraditória. A possibilidade de constituir uma comunidade política autónoma não podia ser cerceada por razões raciais ou por um suposto “atraso civilizacional”. Em particular nos territórios da África Austral e especialmente a partir dos anos 60, dinamizada por incidentes como o de Sharpeville, na África do Sul, em 1961, as realidades coloniais passaram a ser alvo de repetidas iniciativas de escrutínio e intervenção críticas nas várias organizações internacionais, sempre acompanhadas por decisivas campanhas transnacionais.
Num outro sentido, as ideias e os repertórios dos direitos humanos também foram apropriados pelos poderes imperiais, fosse para justificar a sua putativa responsabilidade cívica e “civilizacional” em contexto colonial, fosse para denunciar as práticas violentas dos “inimigos”, dos “terroristas”. Os portugueses até clamaram ser os pioneiros dos direitos humanos em África. Isto numa altura em que as iniquidades dos conflitos coloniais adquiriam maior exposição internacional. A multiplicação de práticas desumanas e conflitos violentos nos novos países independentes foi usada de modo comparativo para alimentar, ontem como hoje, discursos de defesa das soluções imperiais e coloniais.
A popularização de uma língua franca
A “longa” década de 70 surge como um período fundamental na popularização das normas, linguagens e repertórios de acção dos direitos humanos. Curiosamente, esta resulta tanto de mobilização e entusiasmo como de desilusão. Desilusão desde logo com a vitória daqueles que, alcançada a independência política, subordinaram os direitos humanos a uma razão de Estado. As promessas do anticolonialismo foram em grande medida traídas pelos registos dos novos Estados na Ásia e em África. Em nome da soberania nacional recentemente conquistada e de uma suposta especificidade cultural, não hesitaram em negar alguns dos princípios fundamentais que tinham estado na sua fundação. A Guerra de Secessão do Biafra, em 1967-1970, foi, possivelmente, o episódio que melhor exemplificou o horror face à violência exercida por alguns dos novos estados. Profusamente documentada no mundo ocidental, levaria a uma série de iniciativas tanto de associações humanitárias como de redes de direitos humanos. Originou inclusive a criação dos Médicos Sem Fronteiras, uma das mais conhecidas ONG do presente. Estas repercussões não podem, no entanto, ser dissociadas de um outro processo histórico que contribuiu para a multiplicação de acções e organizações fundadas num discurso de direitos humanos. O fim dos impérios europeus tinha, ironicamente, eliminado o temor de vários governos europeus em se envolverem no jogo dos direitos humanos.
A desilusão não se cingia apenas às promessas da autodeterminação. A constatação da aparente incapacidade de auto-regeneração do socialismo realmente existente, comprovada pela Primavera de Praga em 1968, e a descrença em relação às realidades sociais e políticas dos vários regimes socialistas abriu também espaço a uma nova forma de intervenção, menos atreita a grandes enunciados ideológicos e mais interessada na promoção do “bem” de uma forma gradual. Os traumas e fracturas nacionais criados pela Guerra do Vietname no outro lado do Atlântico e a consequente desconfiança face a uma política internacional vista como cínica alimentaram as esperanças daqueles que pretendiam uma nova forma de intervenção social e política, uma política moral. O recém-eleito presidente Jimmy Carter foi visivelmente sensível a esta transformação ao definir o tema dos direitos humanos como eixo fundamental da sua política externa, pelo menos formalmente.
Estas transformações foram acompanhas por outras mais directamente relacionadas com o activismo dos direitos humanos. O modelo de intervenção da Amnistia Internacional, de massas, localizado, próximo das pessoas e mobilizando imagens de choque veio colocar em causa o activismo elitista protagonizado por organizações mais antigas, desenvolvido nos salões dos eventos e organizações internacionais. A própria Amnistia teve de se adaptar, deixando cair a sua regra não escrita dos “três”. Esta estabelecia que cada activista devia adoptar três prisioneiros: um do primeiro, um do segundo e outro do terceiro mundo. Por sua vez, os acordos de Helsínquia, de 1975, que em troca do reconhecimento da esfera da influência da União Soviética no Leste europeu introduziram cláusulas de monitorização relativas aos direitos humanos, dinamizaram um conjunto de grupos locais em cada um dos países socialistas que viria a dar origem à Human Rights Watch.
O número de organizações dedicadas à questão dos direitos humanos disparou, as vezes que a expressão era usada na imprensa ocidental aumentou de forma exponencial. Além da Europa de Leste, também nos países sul-americanos, alvos de uma recente onda autoritária, as organizações que se mobilizavam em torno dos direitos humanos permitiram uma conjugação de esforços, com objectivos limitados, de diferentes sectores da sociedade com posicionamentos ideológicos e políticos não necessariamente coincidentes. Obviamente, as filiações políticas e ideológicas não se esvaeceram e as múltiplas redes ou organizações criadas entretanto foram caracterizadas por uma notória heterogeneidade. Mas os direitos humanos tornaram-se uma língua franca um pouco por todo o globo.
Para lá de cinismos fáceis e optimismos convenientes
Richard Rorty argumentou que a cultura dos direitos humanos tinha tudo que ver com a propagação de histórias sentimentais e tristes, nada com transformações significativas na quantidade ou qualidade do “conhecimento moral”. Advogou que a aposta numa “educação sentimental” sobre o outro é mais eficaz no aprimoramento da protecção dos direitos humanos do que a declaração de fundações filosóficas, morais ou religiosas aparentemente evidentes. Que essa educação sentimental não prescinda, contudo, da história e da razão. O estudo da história dos direitos humanos ajuda a demonstrar, ao mesmo tempo, a sua precariedade e a urgência da sua tenaz protecção, sem cedências ou equívocos, essencialismos ou meras razões instrumentais presentistas, recusando identidades e lealdades de grupo intransigentes. Ignorando cinismos fáceis e optimismos convenientes.
Com o fim da Guerra Fria e a vulgarização dos direitos humanos na retórica diplomática (e até militar) de vários governos mundiais, novos problemas se colocaram, da ingerência humanitária e da doutrina da Responsibility to Protect aos múltiplos tribunais penais internacionais ad-hoc criados. Alguns dos dilemas levantados por um ideal universal de direitos humanos, ao contrário do que detractores cínicos e zelotas acríticos asseguram (ainda que por razões diferentes), não são de fácil resolução. O cinismo ou entusiasmo incondicionais talvez iluminem a politização da questão dos direitos humanos e as relações de poder que lhes subjazem. Mas não facilitam a compreensão das circunstâncias e contingências históricas e das respectivas subtilezas políticas e culturais que os tornaram ubíquos nos nossos quotidianos. A análise crítica de questões de representatividade e legitimidade cultural não se esgota no estabelecimento, ele próprio escassamente crítico e elaborado, de uma causalidade simples e directa entre geografia, conhecimento e cultura, origem e perspectiva, posição e interesse.
O problema da “validade” e da eficácia das ideias, valores e repertórios dos direitos humanos radica, certamente de modo mais significativo, noutras causas, bem mais intrincadas e variáveis, como qualquer incursão histórica breve demonstra. O grande desafio é interrogar, de um modo histórico, a instável combinação entre princípios concorrentes e as dinâmicas díspares da sua implantação prática. Como se traduziram e se vernaculizaram esses princípios? Em que contextos e estruturas políticas, sociais, económicas e ideológicas foram abraçados com entusiasmo, recusados sumariamente ou adaptados de modo crítico ou instrumental? Compreender as dinâmicas históricas que presidem à inaceitável limitação dos instrumentos legais e políticos capazes de tornar mais eficaz a defesa do ser humano e dos seus direitos fundamentais é, como tal, incontornável.
Os autores da série História(s) do Presente são investigadores do Centro de Estudos Sociais — Universidade de Coimbra.
Através da revisitação crítica de 12 livros, ao longo de 12 meses, a série História(s) do Presente recupera um conjunto de processos históricos que modelaram inequivocamente o nosso presente. Da longa persistência de modelos de organização concentracionária em “campos” durante o século XX, à recorrente ameaça, proveniente de vários sectores, sobre os fundamentos racionais do conhecimento, passando pelas preocupações relativas ao crescimento demográfico ou à sustentabilidade do planeta, a série oferecerá ao leitor uma visão mais poliédrica dos passados que construíram o mundo como o conhecemos hoje. Para acompanhar sempre no primeiro domingo de cada mês, no P2, caderno de domingo do PÚBLICO