Palco pequeno para tal sofrimento: Electra na própria escuridão
Embustes e superficialidades à parte, temos nesta Elektra um bom espectáculo, com intérpretes de alto calibre e a orquestra demonstrando uma energia e uma clareza exemplares
Presenciar a ópera Elektra de Richard Strauss posta em palco é uma experiência, no mínimo, electrizante. Obra-charneira na história da música europeia (na fronteira do ultra-romantismo com o expressionismo), a intensidade que dela se desprende, a sua propulsiva instabilidade, contagiam, arrastam e calam fundo. Chocante, para o público actual, não é o psicologismo do libreto, que explora a obsessão vingadora de Electra face à mãe, mas o tratamento musical, em clave de ascensão erótica ao estilo wagneriano, da preparação de Orestes para o assassínio. A presente produção do Teatro Nacional de São Carlos (TNSC), servida ao público no Centro Cultural de Belém (CCB), faz jus à música de Strauss, mas, por circunstâncias do nosso subfinanciamento cultural, só parcialmente assume a cena.
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Presenciar a ópera Elektra de Richard Strauss posta em palco é uma experiência, no mínimo, electrizante. Obra-charneira na história da música europeia (na fronteira do ultra-romantismo com o expressionismo), a intensidade que dela se desprende, a sua propulsiva instabilidade, contagiam, arrastam e calam fundo. Chocante, para o público actual, não é o psicologismo do libreto, que explora a obsessão vingadora de Electra face à mãe, mas o tratamento musical, em clave de ascensão erótica ao estilo wagneriano, da preparação de Orestes para o assassínio. A presente produção do Teatro Nacional de São Carlos (TNSC), servida ao público no Centro Cultural de Belém (CCB), faz jus à música de Strauss, mas, por circunstâncias do nosso subfinanciamento cultural, só parcialmente assume a cena.
Não podemos aqui deixar de lembrar que um teatro de ópera tem por função produzir teatro, e não concertos; o subterfúgio de apresentar concertos arraçados de teatro ("óperas semi-encenadas", na gíria oficial) é, essencialmente, um embuste criado para poupar dinheiro, dar uma aparência normal à temporada e branquear a má política cultural. Vale-nos, nesta circunstância, a imaginação dos encenadores, que num passe de mágica nos fazem crer que temos ópera (no que replicam, artisticamente, o mantra da governação). E queria ir adiante, mas terei de lembrar ainda que o público português não é culturalmente virgem de referências greco-latinas, aliás centrais no género operático desde sempre, e que, portanto, é ridículo, ignorante e linguisticamente ofensivo recusar traduzir, na legendagem e no libreto, os nomes dos personagens da mitologia clássica só porque Stravinsky ou Strauss usaram as respectivas versões em língua francesa ou alemã, como se nunca tivéssemos ouvido falar em Orestes e em Electra, em traduções apuradas por antigos e modernos classicistas. Aliás, o modesto investimento do TNSC no diálogo com o saber académico tem-se notado nos programas de sala, renovados no design (se o retro contar como novo) mas cada vez mais ligeiros e menos originais: tratando-se de Electra, seria de esperar que se incluíssem contributos de especialistas nacionais tais como Frederico Lourenço ou João Barrento, para a faceta literária que vai de Eurípides a Hofmannsthal, ou Paula Gomes Ribeiro, para as facetas músico-dramatúrgica e de estudos de género.
Embustes e superficialidades à parte, temos no CCB um bom espectáculo. A direcção musical de Leo Hussain imprimiu à orquestra uma energia e uma clareza exemplares. Nicola Raab, na encenação, vingou-se das limitações financeiras usando, para os cantores solistas, as estantes de música como adereços e a presença muda como denúncia de situação de semi-concerto, e concentrando o movimento no corpo, sempre central, de Electra; mas no momento-chave do reconhecimento de Orestes por Electra optou, incompreensivelmente, por apartar fisicamente os irmãos. Os intérpretes são de alto calibre: Nadja Michael (Electra) tem uma presença fortíssima, capacidades cénicas roçando o contorcionismo, impressionante amplitude vocal quer de âmbito, quer de emissão, e graves tão possantes que fazem perdoar a entoação ligeiramente baixa de alguns agudos. É a mais wagneriana das solistas. Lioba Braun (Clitemnestra), a mais experiente, agrada e surpreende pela precisão do pormenor expressivo, digno de uma linhagem interpretativa marcada pelo Lied. Allison Oakes (Crisótemis) conjuga de forma rara exactidão, sensibilidade e força. Os principais papéis masculinos, mais curtos, foram magnificamente servidos por James Rutherford (Orestes) e Marco Alves dos Santos (Egisto). Os restantes 11 personagens foram distribuídos por cantores nacionais de primeira apanha (uma selecção de luxo em papéis secundários), dos quais, pelo impacto da sua intervenção, se poderia destacar a jovem Filipa Van Eck (a quinta criada).
Foi feita uma rectificação: a personagem da quinta criada que não é interpretada pela cantora Carla Simões, mas sim por Filipa Van Eck