A mãe de todas as ondas

O recorde mundial pode mudar de mãos após Hugo Vau ter surfado “a maior onda do dia, no maior dia de sempre”. O surfista português recebeu o PÚBLICO na Nazaré, onde passa cinco meses por ano a surfar

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Era uma vez um miúdo que, após alguma insistência, convenceu os pais a comprarem-lhe uma prancha de esferovite, com a qual chapinhava na praia. O tempo passou, o miúdo cresceu e fez-se homem, mas a paixão manteve-se. E foi ele quem surfou uma das maiores ondas – talvez mesmo a maior delas todas – de que há memória na Nazaré. Hugo Vau pode muito bem ter estilhaçado o recorde mundial que, desde 2011, pertence a Garrett McNamara (o norte-americano surfou, também na Nazaré, uma onda de 23,7 metros). Só em finais de Abril ou princípio de Maio se saberá oficialmente, mas isso não ocupa o pensamento do surfista português. “Os recordes do mundo vêm e vão, o mediatismo vem e vai, mas o sentimento com que ficámos, depois de passar o que passámos, ninguém nos vai tirar. Isso vai viver connosco para sempre”, vincou Hugo Vau, durante uma manhã passada com o PÚBLICO na Nazaré.

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Era uma vez um miúdo que, após alguma insistência, convenceu os pais a comprarem-lhe uma prancha de esferovite, com a qual chapinhava na praia. O tempo passou, o miúdo cresceu e fez-se homem, mas a paixão manteve-se. E foi ele quem surfou uma das maiores ondas – talvez mesmo a maior delas todas – de que há memória na Nazaré. Hugo Vau pode muito bem ter estilhaçado o recorde mundial que, desde 2011, pertence a Garrett McNamara (o norte-americano surfou, também na Nazaré, uma onda de 23,7 metros). Só em finais de Abril ou princípio de Maio se saberá oficialmente, mas isso não ocupa o pensamento do surfista português. “Os recordes do mundo vêm e vão, o mediatismo vem e vai, mas o sentimento com que ficámos, depois de passar o que passámos, ninguém nos vai tirar. Isso vai viver connosco para sempre”, vincou Hugo Vau, durante uma manhã passada com o PÚBLICO na Nazaré.

Curtido pelo sal e pelo sol, o rosto de Hugo Vau nunca deixa de estar rasgado por um sorriso que acompanha o entusiasmo das suas palavras. Está num local onde se sente satisfeito, a fazer aquilo que o deixa mais feliz: surfar. A ligação ao mar é uma constante na vida deste lisboeta de 40 anos, desde a tal primeira prancha de esferovite, passando pelas temporadas embarcado em barcos de pesca, no tempo que passou nos Açores, até à demanda pelas maiores e mais perfeitas ondas que os oceanos têm para oferecer. “Quando estou a surfar sinto-me uma criança que está a brincar com o mar. Estou a viver aquilo completamente. Não há finanças, não há segurança social, não há guerras, não há nada. É aquele momento. Estás ali dentro e não há mundo à volta”, resumiu.

O surf é, para Hugo Vau, mais do que o simples acto de descer uma onda equilibrado numa prancha. “É uma forma de meditação. Abstrais-te de tudo, estás ali tu com os teus amigos, no meio de uma cena imensa que é o oceano, perante a qual somos completamente impotentes. Aquilo tem uma força que não se pode comparar à nossa. E estamos ali a viver os melhores momentos da nossa vida. É preciso um grande amor ao mar e ao surf para estarmos ali, no meio daquilo, e sentirmos que não podíamos estar em melhor lugar no mundo”, descreve o surfista português.

Na Nazaré, que começou a frequentar há mais de dez anos, Hugo Vau sente-se sereno e em harmonia com aquilo que o rodeia. “No início ficava a dormir no carro e ia surfar durante o dia”, recordou – agora conduz um Mercedes topo de gama, cortesia de ser patrocinado pela marca, mas essa é a única diferença. Cumprimenta toda a gente com quem se cruza, dos pescadores no porto de abrigo aos polícias por quem passa. De certa forma, é já um filho da vila: “Faço questão de passar aqui os cinco meses de Inverno, pelo menos de Outubro a fim de Fevereiro. Só não estou aqui quando há tempestades e não dá para ir para a água, aí vou ver a família”, conta.

Para dar algo em troca por aquilo que tem recebido, Hugo Vau pretende trazer à Nazaré miúdos que nunca viram o mar para proporcionar-lhes o primeiro contacto com o surf. A sua consciência social e ambiental também passará por outros projectos, como a sensibilização e combate à poluição, ou iniciativas com a comunidade de pescadores da Nazaré.

As pranchas andam permanentemente no carro e o discurso é de quem não se deixa deslumbrar: “Na minha vida de surfista nunca planeei nada, vou para surfar e passar um bom tempo com os meus amigos. Não fui para a água à espera de bater o recorde do mundo”, conta a respeito da onda com que foi presenteado no dia 17 de Janeiro. “Sabia que ia estar nas condições mais extremas de sempre na Praia do Norte. Com as maiores ondas de sempre. Não sabia como íamos reagir, não sabia sequer se íamos ter vontade de surfar. Mas correu bem. Tive a sorte de estar com o Alex Botelho, que é uma grande inspiração no mar e está sempre à vontade. No dia em que ele não estiver à vontade eu tenho de levar três pares de fraldas”, rematou com uma gargalhada.

As imagens daquela que poderá ser a maior onda de sempre foram captadas por Jorge Leal, o elemento da equipa que estava em terra, com visão global de tudo o que se passava, para poder situar os surfistas em relação ao que aí vinha. Hugo Vau é um ponto difuso no mar, num filme que a contraluz não deixa ver bem e ao qual uma névoa de gotas de água soprada pelo vento acrescenta algum mistério. “Por um lado até acho graça que não haja uma filmagem nítida e que esteja tudo envolto naquele misticismo e neblina. Foi um momento realmente mágico”, sublinhou Hugo Vau.

“Sou como o D. Sebastião. Mas eu voltei, ele não”, atirou a rir. E, sem se desviar, acrescentou: “Em Portugal temos sempre aquela coisa que somos menos do que os outros, mas esquecemo-nos daquele tempo em que saímos daqui, numas casquinhas de noz, e andámos a explorar isto tudo. Temos dentro de nós uma raça única no mundo.”

Persistência é a palavra-chave na história que levou Hugo Vau ao topo da mãe de todas as ondas. Muito tempo a analisar as previsões e a observar o mar, numa ligação de anos à Nazaré que se tornou mais forte quando Garrett McNamara foi convidado para explorar as ondas da Praia do Norte e Vau integrou a equipa que acompanhava o norte-americano. “Foi um processo natural de aprendizagem desde a primeira onda realmente grande que apanhei aqui. Horas e horas na água, muitos sacrifícios para estar na Nazaré. No início as coisas não eram tão fáceis nem tão estruturadas como agora. A vila, a partir do final de Setembro, início de Outubro, ficava um deserto. Hoje em dia, quando temos ondulação grande e as pessoas se apercebem disso, não há um quarto de hotel livre”, explicou o surfista português.

Para estar no mar no dia 17 e surfar a onda que captou atenções em todo o mundo, Hugo Vau teve de acreditar com toda a força no pressentimento que tinha. “Tive noção antes de a ondulação chegar que ia ser especial. Estamos cá há sete anos e sabemos bastante bem qual é a direcção perfeita, o vento perfeito, a maré perfeita. Vi a previsão e enviei um mail ao Garrett a dizer-lhe: ‘Olha, a ‘Big Mama’ vai rebentar’. Ele por acaso nem respondeu”, recordou com outra gargalhada. “Havia um projecto com o Olympic Channel, em São Francisco. Tínhamos tudo agendado. E eu disse-lhes: ‘Marquem os voos, mas deixem tudo em standby. Dêem-me mais 12 horas para tomar uma decisão’. No dia seguinte, abri as previsões, vi que aquilo se mantinha, e mandei-lhes outro mail: ‘Desculpem lá, mas não sou capaz de voltar as costas à Nazaré com esta ondulação a caminho’.”

Não é fácil ter noção da altura que a onda atingiu. Há quem fale em 30 ou 35 metros, mas o próprio Hugo Vau diz: “Não há escala nem comparação. Estamos a falar de montanhas de água que se movem e estão em constante mutação devido à acção do vento e do fundo do mar. Os metros e os centímetros deixam de ser relevantes. O que eu sinto na Praia do Norte é que ficamos mesmo muito pequeninos. E isso é bom porque podemos crescer qualquer coisa. A Nazaré é a escola da humildade na vida”, resume o surfista português.

O risco está sempre presente, mas Hugo Vau aceitou que isso faz parte da escolha que fez. “Sabemos que o que fazemos é arriscado. Mas por isso é que nos preparamos tão bem. Quando vais de certeza levar com uma onda de 20 ou 30 metros, se não quiseres estar ali, não é por dinheiro nenhum do mundo que te convencem. Mas, se gostares, levar com uma onda daquelas é agradável. É bonito. É algo intenso. As vezes que me senti mais vivo foi depois de levar com uma onda daquelas e ficar debaixo de água, sem saber se vou sobreviver. Nas ondas da Praia do Norte, quando cais e elas te agarram, ficas nas mãos de um gigante, que está a torcer-te e a apertar-te. A força é tanta que nem consegues insuflar o colete para vir à superfície. É o sítio mais escuro que possas imaginar. Abres os olhos debaixo de água e aquilo é tudo preto. É uma viagem para o desconhecido. E é isso que faz deste um desporto tão especial e diferente dos outros.”