Brasil: os riscos da judicialização da política
Estaremos perante uma justiça de cariz populista e como tal potencialmente perniciosa à saúde institucional do Brasil
1. A confirmação da condenação e o alargamento da pena aplicada a Lula da Silva suscitaram um curioso e apaixonado debate político em Portugal. As posições em confronto polarizam-se em torno de duas interpretações muito claras: de um lado posicionam-se aqueles que sustentam a ideia da existência de um conluio entre o poder judiciário e as tradicionais elites oligárquicas brasileiras com o intuito de defenestrar a grande figura política e simbólica da esquerda e de anular qualquer perspectiva de regresso dos sectores mais progressistas ao exercício do poder; do outro lado situam-se os que consideram que um poder judiciário livre e independente está a combater com sucesso um fenómeno de corrupção generalizada que envolve também o PT e o próprio Lula da Silva. Para os primeiros estaremos perante uma justiça de classe, ferida de ilegitimidade e que, como tal, deve ser devidamente combatida na rua através de manifestações populares. Para os segundos qualquer crítica à presumível isenção dos juízes significa uma preocupante ameaça ao princípio da separação dos poderes, pondo assim em causa a própria natureza do Estado de Direito.
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1. A confirmação da condenação e o alargamento da pena aplicada a Lula da Silva suscitaram um curioso e apaixonado debate político em Portugal. As posições em confronto polarizam-se em torno de duas interpretações muito claras: de um lado posicionam-se aqueles que sustentam a ideia da existência de um conluio entre o poder judiciário e as tradicionais elites oligárquicas brasileiras com o intuito de defenestrar a grande figura política e simbólica da esquerda e de anular qualquer perspectiva de regresso dos sectores mais progressistas ao exercício do poder; do outro lado situam-se os que consideram que um poder judiciário livre e independente está a combater com sucesso um fenómeno de corrupção generalizada que envolve também o PT e o próprio Lula da Silva. Para os primeiros estaremos perante uma justiça de classe, ferida de ilegitimidade e que, como tal, deve ser devidamente combatida na rua através de manifestações populares. Para os segundos qualquer crítica à presumível isenção dos juízes significa uma preocupante ameaça ao princípio da separação dos poderes, pondo assim em causa a própria natureza do Estado de Direito.
Há quase dois anos mantive em Brasília uma longa conversa com uma das principais figuras do poder judicial brasileiro acerca deste mesmo assunto, o qual já então suscitava séria inquietação. A personalidade em questão dispõe de um amplo prestígio profissional, cívico e intelectual, outorgando assim às suas palavras uma credibilidade que não me suscitou nem suscita quaisquer reservas. Interrogado por mim sobre a validade da suspeita de que o processo Lava Jato estava politicamente orientado no sentido de promover a destruição do PT, respondeu-me categoricamente que não.
Na sua perspectiva, estaríamos a assistir ao início de uma nova fase na vida política e judicial do Brasil, caracterizada por um maior empenhamento no combate ao fenómeno da corrupção endémica que afectava todos os sectores políticos do país, uma larguíssima parte do funcionalismo público e a própria nata do empresariado nacional. As condenações e as elevadas penas aplicadas a alguns dos principais empreiteiros do Brasil e as decisões judiciais tomadas em relação a várias figuras públicas oriundas da velha política tradicional brasileira concorrem para a validação desta tese. Não creio contudo que ela traduza com absoluta exactidão o que se passa hoje no Brasil. Sendo verdadeira em tudo o que afirma revela-se insuficiente para explicar a presente realidade na sua totalidade. É compreensível que assim seja, dada a circunstância de ter sido enunciada por um homem inteligente e sério, mas inevitavelmente condicionado na sua objectividade analítica pela circunstância de integrar o próprio sistema judiciário.
Há uns meses, uma figura política brasileira merecedora de igual crédito, a quem coloquei a mesma questão, deu-me uma resposta que me parece mais consentânea com a realidade. Na sua leitura dos acontecimentos, uma parte significativa do poder judicial brasileiro, sentindo-se investida de uma missão redentora, estabelecera uma associação espúria com os principais agentes mediáticos, tendo em vista a concretização de uma verdadeira purga nacional. Estaríamos assim a presenciar uma perigosa judicialização da vida política de consequências verdadeiramente imprevisíveis. Juízes transformados numa espécie de salvadores públicos, inebriados pelas paixões populares que suscitam e pelo vedetismo momentâneo a que se alcandoram, propenderiam a decidir com leviandade e a condenar sem a necessária ponderação. A forma como decorreu todo o processo relativo ao antigo Presidente Lula da Silva revela até à náusea esses perigosos vícios comportamentais.
Não creio, pelos motivos atrás aduzidos, que se possa falar nem de uma justiça de classe nem de uma justiça verdadeiramente criteriosa. Estaremos antes perante uma justiça de cariz populista e como tal potencialmente perniciosa à saúde institucional do Brasil. É claro que a disseminação da corrupção em todos os sectores e por todos os níveis da vida pública do país constituiu um caldo de cultura absolutamente favorável ao surgimento de um processo desta natureza, e isto não pode ser escamoteado. Mas não podemos deixar de condenar este activismo judicial de pendor justicialista que atenta contra direitos fundamentais e prejudica o futuro da sociedade brasileira.
O Brasil passa por momentos muito difíceis, dirigido politicamente por figuras de escassa probidade, manchado pela ignóbil destituição parlamentar de uma Presidente séria e digna, enclausurado entre o nepotismo e o justicialismo, dominado por vagas de irracionalidade e de fanatismo que perturbam a convivência cívica e promovem o retrocesso da consciência política. É certo que há um outro Brasil, na ciência, no pensamento, na arte, na economia que se distingue pela exuberância criativa e se projecta no plano universal. Tenhamos esperança nesse outro Brasil.
2. Edmundo Pedro tinha o hábito de aparecer de quando em quando na Assembleia da República. O que o levava lá era a vontade de conversar sobre a actualidade política. Essas conversas, porém, rapidamente resvalavam para o domínio da História. Edmundo Pedro aparecia aos seus interlocutores como uma expressão heróica de grande parte do século XX português. Falava dos seus tempos de jovem prisioneiro político no Tarrafal, onde permaneceu 10 anos nas inclementes condições que são conhecidas, das várias participações em tentativas de golpe contra a ditadura de extrema-direita, na sua ruptura intelectual e emocional com o mundo comunista, no seu empenhamento na construção de uma democracia liberal e representativa, no seu esforço pela afirmação do Partido Socialista, na sua permanente disponibilidade para lutar pela liberdade e pela valorização da dignidade humana. Impressionava pela sua rectidão moral, pela sua lucidez intelectual e pela sua modéstia pessoal. Foi um homem de convicções fortes, que recusava simultaneamente o dogmatismo ideológico e o carreirismo partidário. Nesse sentido, o seu pensamento, o seu carácter e a sua vida coincidiram plenamente. Foi das pessoas mais interessantes que encontrei na vida política. Talvez porque Edmundo Pedro era muito mais do que um homem político. Era um combatente pela liberdade.